sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Câncer e morte de crianças intrigam comunidades próximas a lavouras de frutas

ATÉ OS QUATRO MESES, Ana Laura Freitas era saudável e esperta. Antes de completar um ano, no entanto, a bebê perdeu a vida após enfrentar problemas respiratórios e ser diagnosticada com um câncer infantojuvenil raro e agressivo.

“Ela iniciou a quimioterapia, mas teve quatro paradas cardíacas e faleceu”, comenta com a voz embargada a mãe Silvana Freitas, 28 anos, moradora da comunidade de Tomé, em Limoeiro do Norte, no Ceará.

Laura faleceu em maio deste ano, com apenas 11 meses, de leucemia linfocítica aguda. O caso reforçou uma suspeita dos moradores, de que o alto consumo de agrotóxicos por lavouras de frutas na região está adoecendo a comunidade.

No Baixo Jaguaribe, onde fica a vila de Tomé, ocorrem duas vezes mais internações por câncer do que nos municípios vizinhos sem produção de frutas em larga escala. Registram-se também quatro vezes mais mortes por câncer.

Os resultados são de um estudo publicado em 2017 por pesquisadores da UFC (Universidade Federal do Ceará), que analisaram dados de 2000 a 2012. Eles estudam há anos os impactos do uso extensivo de pesticidas em comunidades rurais do estado.

“Não é coincidência que os locais onde ocorrem mais casos de câncer infantojuvenil estejam próximos a perímetros irrigados”, afirma o pesquisador Saulo da Silva Diógenes, membro do Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde), da UFC. “As pulverizações levam à contaminação da água e criam um ambiente de risco que favorece o desenvolvimento do câncer infantojuvenil”, explica.

Tomé é cercada por grandes lavouras de banana, melão, mamão, acerola, coco, goiaba, pitaya e tomate, que recebem aplicações de pesticidas com frequência.

“Minutos após as pulverizações serem realizadas, fica um cheiro forte no ar, chega a ser incômodo”, queixa-se Silvana.

Outro estudo do Núcleo Tramas constatou “fortes evidências” de que casos de malformações congênitas e puberdade precoce na mesma comunidade rural, que tem apenas 3 mil habitantes, tinham “relação com a intensa exposição dessas crianças e de suas famílias aos agrotóxicos na região”.

Pesquisadores ouvidos pela Repórter Brasil apontam dificuldades para realizar pesquisas que comprovem a relação entre agrotóxicos e doenças. Uma delas é a falta de acompanhamento dos casos suspeitos pelos órgãos públicos de vigilância. Mas os cientistas apresentam cada vez mais estudos estabelecendo essa conexão.

Segundo Diógenes, por exemplo, pesquisas já demonstraram que os agrotóxicos alteram a forma de expressão dos genes das células responsáveis pela produção dos óvulos e espermatozoides.

“As manifestações vão acontecer tanto na pessoa exposta naquele momento, quanto nas gerações seguintes”, explica o pesquisador. No caso das crianças, as chances dos cânceres se desenvolverem é maior, pois o sistema imunológico não está formado”, continua.

O surgimento repentino de casos de câncer, abortos espontâneos e doenças congênitas instaurou o medo na comunidade, que evita consumir a água que chega às torneiras.

“O canal que fornece água para a comunidade é o mesmo usado pelas empresas para irrigar os cultivos. Ninguém tem confiança de beber essa água. Quem tem dinheiro compra água mineral ou toma a água fornecida pela empresa”, conta Silvana.

A empresa em questão é a Agrícola Famosa, que fornece água potável em carros-pipa à população uma vez por semana. A Repórter Brasil entrou em contato com a companhia para saber como é feito o tratamento da água fornecida e questionar se a empresa conhece as denúncias contra os agrotóxicos. Até o momento, no entanto, a firma não respondeu.

•                        Suspeitas envolvendo agrotóxicos serão debatidas na COP30

O caso da pequena Laura é um dos muitos relatos dramáticos expostos durante o Tribunal Popular dos Agrotóxicos, um ato simbólico realizado por movimentos sociais no fim de outubro na Faculdade de Direito da UFC, em Fortaleza.

A sessão apresentou uma peça de acusação simbólica que destaca os impactos do uso extensivo dos pesticidas sobre o meio ambiente e o SUS (Sistema Único de Saúde). O documento também critica isenções fiscais a esses produtos no Brasil, maior consumidor de pesticidas do mundo.

As conclusões serão discutidas e julgadas durante sessão especial do Tribunal Penal Internacional na COP30, a ser realizada em novembro de 2025 em Belém (PA). O tribunal é um organismo internacional permanente criado pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário. A corte investiga e julga indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão quando os casos são ignorados pelo Judiciário dos países membros.

“Esse tribunal deve julgar os crimes praticados por instituições financeiras que apoiam o agronegócio e consequentemente o uso de agrotóxicos”, explica a advogada Magnólia Said, do Esplar, uma ONG que atua no semiárido com comunidades dedicadas à agricultura familiar no Ceará.

No estado se deu a primeira condenação de uma multinacional pela contaminação de um trabalhador por agrotóxicos. Ao longo de três anos, Vanderlei Matos trabalhou realizando misturas de pesticidas em uma fazenda e foi a óbito por uma doença grave no fígado provocada pelas substâncias químicas.

A empresa condenada foi a Del Monte, multinacional do setor de frutas que tinha fazenda na região rural de Limoeiro do Norte, mesmo local onde fica a comunidade estudada pelos problemas de saúde em crianças.

O Ceará foi também o primeiro estado, e único até agora, a aprovar uma lei que proíbe a pulverização aérea. Trata-se da Lei Zé Maria do Tomé, de autoria do deputado estadual Renato Roseno (Psol). Aprovada em 2019, a lei leva o nome de José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, executado com 17 tiros em abril de 2010. O líder comunitário e ambientalista lutava pela proibição da pulverização aérea de agrotóxicos em Limoeiro do Norte.

Após cinco anos da aprovação da lei, Roseno diz ser possível perceber resultados da medida. “Ao contrário do que o setor alardeava, não houve queda da produção de banana. Houve aumento de 2019 pra cá. Ou seja, o discurso fatalista, que somente seria possível produzir com pulverização aérea, era falso”, destaca o parlamentar.

•                        Outras comunidades próximas a lavouras também relatam adoecimento

O tribunal popular também ouviu relatos de adoecimento no assentamento Maceió, localizado a 60 km da área urbana de Itapipoca, no litoral cearense, onde vivem cerca de 900 famílias vizinhas a plantações de coco.

Foi na comunidade que o adolescente Paulo Igor Martins, de 14 anos, foi a óbito em apenas 16 dias.

Em janeiro de 2019, ele saiu de um aparente simples quadro de fadiga, pele e olhos amarelados para falência total do fígado. No atestado de óbito consta “hepatite fulminante”.

Parentes, médicos e enfermeiros estranharam o adoecimento repentino do adolescente, relembra a mãe, Israelita Martins, de 40 anos. Nos primeiros dez dias de sintomas, ela e o filho foram ao posto de saúde diversas vezes, recebendo sempre medicamentos para hepatite. “Ele sempre foi um menino muito vivo, elétrico, saudável. Nunca teve problema de saúde”, recorda.

Após a morte do filho, Israelita diz que os médicos pediram que ela deixasse o corpo no hospital para estudos, mas ela se recusou e o levou para ser enterrado junto à família.

Ela conta que o menino cresceu em área cercada por lavouras de coco que recebem pulverizações de agrotóxicos de forma constante.

Ainda segundo Israelita, a fonte de água que abastece a comunidade é a mesma utilizada por várias empresas para irrigar as lavouras de frutas. “Nunca foi feito um teste para saber se essa água está contaminada, mas por muito tempo os agrotóxicos foram lançados por cima da lagoa”, observa.

Uma profissional de saúde que atuou no assentamento Maceió, mas que prefere não se identificar, afirmou à reportagem que surgiram muitos casos de câncer, autismo e depressão no local entre os anos de 2018 e 2023. Em 2017, quando ela chegou na comunidade, “só tinham casos simples de pneumonia e bronquite”, afirma.

Segundo o Painel Oncologia Brasil, do Datasus, Itapipoca registrou um aumento considerável de casos de câncer a partir de 2018. No período de cinco anos entre 2013 a 2017, a média era de 14 casos por ano na cidade. Nos cinco anos seguintes (2018 a 2022), a média anual foi de 227 casos – 1.500% a mais do que no quinquênio anterior.

Não há dados específicos sobre o assentamento Maceió. A profissional de saúde conta que os casos da comunidade foram notificados e encaminhados para tratamento no serviço público, mas “não foi realizada nenhuma investigação sobre as causas”. A secretaria de Saúde de Itapipoca foi procurada, mas não retornou até o momento. O espaço segue aberto a manifestações.

O pesquisador Diógenes também critica a falta de investigações por parte dos órgãos de saúde. “A vigilância de saúde ambiental e de saúde do trabalhador deveria investigar o que houve para, por exemplo, um jovem sofrer uma hepatotoxicidade tão grosseira. Qual o contexto ambiental e de exposição a que ele foi submetido?”, questiona.

•                        Pesquisadores dizem que vigilância precisa investigar casos

Cientistas ouvidos pela reportagem também apontam dificuldades para a produção de estudos sobre os impactos dos agrotóxicos. O primeiro deles é o financiamento, “pois essas pesquisas são caras e recebem cada vez menos recursos”, explica Mariana Soares, pesquisadora da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso).

A toxicologista e médica do Trabalho Virgínia Dapper também aponta a falta de investigação dos casos como um dos problemas. “Cada caso de agravo decorrente da exposição aos agrotóxicos deveria ser entendido como um caso sentinela que deveria desencadear um processo de investigação no território, promovendo ações intersetoriais e participativas de prevenção, proteção e cuidado”, destaca.

Na visão da pesquisadora e professora aposentada da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Sônia Hess, “as evidências científicas disponíveis já são suficientes e mostram que há uma população extensa sendo contaminada pelos agrotóxicos”.

Para Hess, os órgãos de saúde têm ciência disso, mas o lobby do agronegócio dificulta a investigação dos casos, opina.

A médica Dapper conta que já chegou a ser “confrontada e chamada de ‘mentirosa’ por representantes do agronegócio, quando apresentava as evidências científicas dos impactos dos agrotóxicos na saúde”.

Para Diógenes, quando uma comunidade apresenta essas queixas, é “importante escutar, pois eles estão no território e vivem na pele o problema”, diz. “Quando a comunidade da Chapada do Apodi alertou sobre os casos de câncer, nós fomos lá e comprovamos com os estudos que havia relação direta com os agrotóxicos”, observa.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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