sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Brasil Paralelo: programa que capta ‘mecenas’ para combater a esquerda já chegou a 284 escolas e ONGs

Quando escolheu o Centro Educacional Conselheiro, o CEC, uma escola privada tradicional do município de Nova Friburgo, na zona serrana do Rio de Janeiro, Joana finalmente relaxou. Depois de alguns meses em dúvida, ela confiou que o CEC seria o lugar ideal para que sua filha pudesse concluir o ensino fundamental. Mas a ilusão durou pouco. E a culpa, segundo a mãe, é da invasão da produtora de extrema direita Brasil Paralelo na unidade escolar.

“Minha filha estudou lá por dois anos, de 2021 a 2023. Ela gostava bastante da escola. Era um ambiente acolhedor, com professores dedicados e uma estrutura que sempre nos passou segurança”, relata Joana. Tudo começou a mudar quando ela passou a receber e-mails da direção da escola anunciando uma parceria com a Brasil Paralelo.

A CEC é uma das mais de 285 instituições que a Brasil Paralelo anuncia como parceiras do Projeto Mecenas, o “maior e mais importante” da produtora.

Funciona assim: pagando um valor superior a mil reais (em valores de 2022), os chamados Membros Mecenas bancam “bolsas” para “melhorar a educação e a cultura” no Brasil. Na prática, esse dinheiro custeia assinaturas da Brasil Paralelo para escolas e instituições filantrópicas exibirem seus documentários e cursos para os alunos.

O objetivo da produtora é combater o suposto domínio da esquerda nas instituições educacionais, segundo reuniões entre a empresa e os membros de 2023 e 2024 e mensagens obtidas pelo Intercept Brasil. É um ganha-ganha: além de ampliar seu domínio em instituições de ensino, a empresa também aumenta sua base de assinantes com um discurso caritativo.

Em 2022, apenas uma “bolsa” custava R$ 1.668. O preço caía conforme mais “bolsas” fossem compradas: 75 bolsas saíam por R$ 23.880, o equivalente a R$ 318,40 cada. Assim, o programa incentiva grandes doadores.

As informações sobre o projeto são restritas a seus membros, mas o Intercept teve acesso a vídeos de 17 reuniões, assim como aos relatórios enviados aos membros.

Em uma das reuniões, a Brasil Paralelo afirmou ter 400 mil assinantes e uma comunidade de 6 mil membros Mecenas. Nas reuniões virtuais, identificamos a presença de pequenos empresários, médicos e profissionais liberais, sobretudo do sul do país, entre os Mecenas.

Os números divulgados internamente pela produtora impressionam: em junho de 2024, 23.100 pessoas, entre estudantes e famílias, foram impactadas pelos conteúdos bancados pelos membros Mecenas. Em fevereiro, eram 4.757 assinaturas que já haviam sido distribuídas por meio do programa.

A Brasil Paralelo procura instituições alinhadas ideologicamente para o projeto, mas também incentiva que os mecenas façam indicações de entidades e escolas para receberem as bolsas.

“Sabemos que o progressismo investe há décadas em falsos projetos sociais com o objetivo de emburrecer o povo, destruir valores familiares, normalizar o crime, incentivar o aborto. Não tendo condições de se defender, essas famílias acabam sendo reféns desse ‘cativeiro cultural’, tornando-se massa de manobra eleitoral”, explica uma uma mensagem enviada por um dos representantes da empresa a um interessado em entrar para o programa, deixando claro o objetivo do projeto.

•                        Economia paralela: o clube dos mecenas

Os membros Mecenas são tratados como uma espécie de clube, com benefícios e incentivos. “Você não será igual aos outros membros, você será o membro mais próximo da Brasil Paralelo” foi a frase que a produtora disse para convencer um assinante a se tornar um Mecenas, em relato publicado no Reclame Aqui. Outro relatou ter ganhado uma caneca.

Em junho de 2024, a Brasil Paralelo lançou um clube de benefícios, com descontos em serviços como academias e restaurantes, principalmente para divulgar empresas de outros mecenas – um “conceito de economia paralela”, explicou um representante da produtora na reunião de junho.

Há também encontros presenciais para incentivar a adesão ao programa. Os pagantes mais generosos, que financiam mais de 100 bolsas – ou seja, gastaram R$ 34.680 por ano, em valores obtidos pelo Intercept –, têm direito a encontros anuais com os outros mecenas.

As reuniões explicam alguns desses eventos presenciais. No início de abril de 2024, por exemplo, a produtora anunciou um “encontro exclusivo” com Michael Schellenberger, o jornalista por trás do Twitter Files, o vazamento de informações do X que Elon Musk soltou para atacar o STF brasileiro.

Em São Paulo, em junho, outro desses encontros reuniu o deputado Marcel van Hattem, do Novo, e o economista Hélio Beltrão com os membros. No mesmo mês, a Brasil Paralelo disponibilizou camarotes para o evento com Jordan Peterson – aquele divulgado por Cristina Junqueira, a CEO do Nubank, que causou uma crise de reputação no banco.

Nas reuniões virtuais, a Brasil Paralelo apresenta os resultados do programa, descreve os documentários em produção, apresenta os números com entusiasmo e fala sobre aspectos estratégicos na sua produção de conteúdo. Por exemplo, formar professores com valores alinhados aos da produtora.

Em fevereiro, um dos temas discutidos com os membros foi a Conferência Nacional de Educação, a Conae. Nós mostramos, em janeiro, que o evento quase foi aparelhado por bolsonaristas.

Na reunião com os membros daquele mês, o roteirista da produtora Helton Medeiros citou a Conae para falar sobre a importância de estar na “linha de frente” da educação para atingir as pessoas que “vão moldar e construir as próximas legislações voltadas à educação”, mencionando a conferência.

Os conteúdos pagos da Brasil Paralelo incluem cursos como “o que é capitalismo” e “harmonia conjugal”, segundo o material de divulgação. A produtora divulga conteúdos conservadores, que questionam o feminismo e desafiam consensos, como o aquecimento global.

Um outro questiona a versão de Maria da Penha sobre a violência doméstica que sofreu, e transforma Marco Antônio Heredi, o agressor condenado, em possível inocente. A peça foi alvo de repúdio de pesquisadores e entidades ligadas aos direitos humanos. Um ano depois da divulgação massiva do material, Maria da Penha foi incluída no Programa de Proteção de Testemunhas do Ministério dos Direitos Humanos por ter sido alvo de ameaças. Um dos roteiristas do episódio disse, em uma reunião com os membros Mecenas, que o “caso Maria da Penha não era bem assim como diziam”.

Muitos conteúdos, como o documentário que diz que o golpe de 1964 aconteceu por conta de uma ameaça comunista no Brasil, são considerados revisionismo histórico e refutados por historiadores. E os críticos foram ameaçados de processo pela produtora, preocupada em descolar sua imagem do bolsonarismo radical e se posicionar como um ‘Netflix de direita’.

Um dos conteúdos carro-chefe do Mecenas é a série infantil Pindorama, que reforça a narrativa colonialista do “descobrimento” do Brasil por Pedro Álvares Cabral. O desenho, que pinta o colonizador português como herói, foi exibido para 180 crianças na Casa da Criança Santa Ângela Osse, na favela de Heliópolis, em São Paulo.

“A gente começa nos 6, 7 anos, que é o público para começar a entender a mensagem”, disse a coordenadora do projeto, Thaís Diniz, na reunião aos membros. Segundo ela, o desenho foi exibido para pelo menos 400 crianças só naquela instituição.

Para a pesquisadora Renata Nagamine, que analisou a Brasil Paralelo em seu pós-doutorado do núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do Cebrap, a produtora atualiza uma narrativa sobre história que era corrente no Brasil há décadas, e difere do modelo pluralista consagrado na Constituição de 1988. “São narrativas diferentes que concorrem em um espaço específico, que é a escola, um espaço privilegiado de sujeitos que irão recontar essa história”, explica.

“A escola é percebida como esse espaço de modelagem do futuro. E por isso tem estado no centro do que na análise a gente chama de disputa no Brasil, sobretudo na última década”, explica. “O ensino da história aparece como crucial porque naquele espaço o sujeito em formação se constitui com essa imaginação do passado. A reimaginação do passado importa porque ela participa da modelagem do futuro”.

•                        Instituto que defende homeschooling é case de sucesso

Faltavam 10 dias para o segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Em uma sala pequena, no bairro de Pajuçara, na periferia de Natal, crianças e adultos sentados em cadeiras de plástico se aglomeravam em uma tela de computador.

O espaço tinha uma parede estampada com os dizeres “ciências e geografia”, além da figura de um átomo, mas o conteúdo ali era outro: uma reunião com representantes da Brasil Paralelo.

Os adultos e crianças estavam em um encontro no Instituto Recebs, uma organização que defende a educação domiciliar e forma tutores para ensinar crianças em casa. Acrônimo de “Resgate da Educação Clássica no Ensino Básico e Superior”, o instituto defende que os pais têm “direito de escolha” sobre colocar ou não os filhos em uma escola, e conta com uma plataforma própria de ensino.

Era nessa plataforma, criada pelo vice-presidente do instituto, o jornalista Claiton Appel, que a Brasil Paralelo despejaria seu conteúdo. Leonardo Barbosa e Thaís Diniz representavam a produtora na reunião, em um encontro registrado no Instagram do instituto.

Fachada do Instituto Recebs exibe banner que divulga parceria com a Brasil Paralelo.

Appel afirma ter conhecido a Brasil Paralelo em 2018, quando procurava “filmes de qualidade na internet para passar para as crianças”. Topou com a produtora e gostou do que viu. “Eu quis assinar logo de cara, mas não tinha condição”, ele contou, em uma entrevista à produtora.

Sua mulher, Carmem Helane, fundadora do instituto, afirma que o documentário “Pátria Educadora”, que entrevistou figuras como Luiz Phillipe de Orleans e Bragança , foi o que fez a sua cabeça. “Eu chorei quando assisti. Na hora eu pensei em levar tudo isso para os pais das crianças. Poderia fazer muito bem para a educação delas e para ajudar na vida das famílias, já que, infelizmente, muitas famílias daqui são desestruturadas”, ela narrou, também para a Brasil Paralelo.

O casal, então, recorreu à produtora para conseguir uma bolsa e usar o conteúdo com  as crianças do instituto. Deu certo. “Nós choramos muito”, disse Appel. “Conseguimos passar bons valores para as crianças. Até mesmo jovens que não conseguem ler, assistem, os pais colocam conteúdos da BP para eles assistirem e aprenderem”.

O casal se orgulha de manter o instituto com “90% de recursos próprios”. Neste ano, no entanto, a organização recebeu pelo menos R$ 30 mil de uma emenda parlamentar do deputado estadual Coronel Azevedo, do PL. Segundo Appel, são 1.300 pessoas na rede do Recebs.

Appel, ex-diretor da Ordem dos Jornalistas do Brasil, tinha uma coluna no Jornal da Cidade Online, conhecido por conteúdos de extrema direita, e também na própria Brasil Paralelo.

O instituto ostenta com orgulho a parceria com a produtora, e a divulgação é mútua: a Brasil Paralelo fez um vídeo sobre o Recebs e publicou textos elogiosos sobre seus fundadores. Esse é considerado um dos cases de sucesso do projeto Mecenas.

Foi Appel quem recebeu no aeroporto Thaís Diniz, o diretor de marketing Danilo Feitosa em maio de 2023. O vice-presidente da Recebs segurava uma faixa de boas vindas aos representantes da produtora no saguão de desembarque, feito devidamente registrado nas redes sociais da Brasil Paralelo. 

“A gente ajuda eles com apoio através dos nossos membros com acesso à plataforma da Brasil Paralelo”, disse Diniz, apresentada como “coordenadora Mecenas”, em entrevista à Rádio Local 94FM. Na plataforma, ela explicou, “as pessoas têm a oportunidade de estudar através da auto educação com os conteúdos da Brasil Paralelo. Esse é o projeto Mecenas, um mecenato”.

Além de atender crianças e famílias vulneráveis, a Recebs também ganha dinheiro oferecendo cursos sobre homeschooling, modalidade de ensino domiciliar que é ilegal no Brasil. A organização fornece materiais e formação para interessados na modalidade, a um custo de R$ 300 por criança no nível fundamental.

O instituto, em seu site, toma cuidado para dizer que “não incentiva o ensino domiciliar”, apenas auxilia os pais que já tomaram essa decisão e fornece materiais didáticos em sua plataforma de ensino. Nela, há os conteúdos da Brasil Paralelo.

Segundo o site, um colégio “parceiro”, chamado Luz do Ensino, fornece documentos necessários para comprovar a presença dos alunos nos estudos, ou para transferir o estudante para o ensino regular, declaração de IR, histórico escolar e outros documentos para fins burocráticos.

O único rastro do colégio Luz do Ensino, no entanto, é seu site na internet. O CNPJ foi criado há pouco mais de um ano. Seus donos são os mesmos Claiton Appel e Carmem Souza. E ele fica no mesmo endereço do Instituto Recebs. Na fachada, um muro pintado informa que ali são oferecidos cursos de ensino fundamental e médio e aulas de reforço – um banner com o logotipo de Brasil Paralelo faz propaganda da parceria.

Segundo o Ministério da Educação, não há na legislação educacional brasileira nenhuma previsão ou possibilidade de atendimento exclusivamente domiciliar nessa faixa etária. “As famílias que não matriculam crianças e adolescentes na escola podem ser responsabilizadas por abandono intelectual”, disse o ministério, por meio de sua assessoria de imprensa.

•                        ‘Eles forçavam a barra para a gente assistir aos conteúdos’

Entre as organizações que receberam os conteúdos da Brasil Paralelo financiado por terceiros também estão o G10 Favelas, em uma parceria celebrada por um colunista da Folha, a Amigos do Bem, premiada ONG que atua com projetos sociais no sertão nordestino, e o Instituto de Formação de Líderes, organização que atua formando lideranças ultraliberais.

Só na CEC, em Nova Friburgo, são 550 alunos que têm acesso aos conteúdos da Brasil Paralelo por meio de 650 assinaturas. No início do ano, o longa “História do Comunismo”, da produtora, foi exibido aos alunos do ensino médio da escola.

O Intercept teve acesso às mensagens da escola aos pais sobre o tema. Nos primeiros contatos, a CEC informava que os conteúdos da plataforma seriam disponibilizados gratuitamente para os alunos e suas famílias. A princípio, Joana não viu grandes problemas na parceria.

“Achei que poderia ser algo inofensivo, talvez até uma oportunidade de ampliar o repertório cultural da minha filha. Mas com o tempo, comecei a perceber que o envio de e-mails se tornou mais frequente e insistente. Não era apenas um ou outro conteúdo, mas uma avalanche de material sendo promovido diretamente pela escola”, comenta, preocupada.

Além dos e-mails, as redes sociais da escola também passaram a refletir essa nova parceria. “Eles começaram a postar muito sobre a Brasil Paralelo, fazendo resenhas dos vídeos, muitas vezes com um tom de validação do conteúdo”, diz Joana. Um dos diretores tornou-se particularmente ativo, compartilhando vídeos na página da escola, em que analisava os materiais da produtora, segundo ela.

Na última postagem feita sobre a Brasil Paralelo, a escola indica o filme “Unitopia”, sobre uma suposta doutrinação de esquerda e viés marxista nas universidades públicas brasileiras.

Renata Nagamine, do Cebrap, chama atenção para o fato de que a própria Brasil Paralelo, assim como o público que consome suas produções, não se considera de extrema direita – mas, sim, se apresentam como direita, conservadores ou apenas só liberais. “A Brasil Paralelo anuncia a ambição de falar para todos”, diz Nagamine. Como exemplo, ela cita o fato de diferentes políticos, de várias matizes diferentes, passarem pelos programas da produtora.

Em entrevista ao Intercept, ela já explicou que isso pode significar uma radicalização da direita. “No processo em que a Brasil Paralelo se constitui como um ator político relevante, o centro se deslocou para a direita”.

Na escola em Nova Friburgo, o efeito foi percebido. Com o aumento das publicações e a frequência com que o nome da produtora aparecia associado ao da escola, Joana começou a sentir que algo estava errado.

“Não era só uma parceria educacional; parecia uma tentativa de doutrinação. E isso me deixou muito desconfortável, porque eu não queria que minha filha fosse exposta a esse tipo de ideologia sem um contexto mais amplo e crítico” desabafa.

Além das sugestões para que os pais e alunos assistissem aos conteúdos em casa, a CEC também promove exibições de filmes da Brasil Paralelo dentro da escola. Um e-mail que o Intercept teve acesso informa que uma das atividades da educação infantil em um dia letivo foi assistir o um filme “através da plataforma Brasil Paralelo”.

“Eles forçavam a barra para a gente assistir os conteúdos”, diz Joana. Foi por isso que ela finalmente decidiu tirar a filha da escola no fim de 2023. “É uma experiência traumatizante trocar uma criança de escola. Não era algo que a gente queria fazer. Mas era uma pressão tão grande para ver esses filmes que nos incomodou a ponto de preferir sair da escola”, explica.

A CEC segue parceira da Brasil Paralelo. A escola não respondeu aos questionamentos enviados pelo Intercept. Instituto Recebs e Brasil Paralelo também ignoraram nossos e-mails.

 

Fonte: Por Tatiana Dias e Paulo Motoryn, em The Intercept

 

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