sábado, 2 de novembro de 2024

A tragédia dos comuns e a utilização de emendas parlamentares no Brasil

A aprovação, no último dia 09 de outubro, de uma Proposta de Emenda à Constituição permitindo ao Congresso Nacional colocar sob revisão decisões do Supremo Tribunal Federal é mais um capítulo no embate político envolvendo o legislativo e o judiciário brasileiro. Rusga essa motivada pelo controle do orçamento da União e a destinação de recursos de emendas parlamentares. 

PEC nº. 28/24, de autoria do deputado federal Reinhold Stephanes, propõe que decisões dos ministros do STF possam sofrer revisão pelo plenário do congresso, ou, de acordo com o artigo 102 da proposta “se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá sustar os seus efeitos pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas”. 

O texto, além de claramente inconstitucional, pois fere a independência entre os poderes, é parte de um processo político que tenta depreciar a imagem da suprema corte do país, enquanto fomenta a apropriação dos recursos da União pelos membros do parlamento brasileiro. A manutenção do clima de tensão entre os poderes garante a permanência das políticas de repasse de verbas para bases eleitorais que são fruto do orçamento impositivo aprovado pela primeira vez no país em 2015. 

De lá para cá, são dez anos de uso de verbas do orçamento federal. Muitos desses gastos ocorrem sem transparência sobre os autores, os projetos e o destino real dos recursos utilizados. Um rápido levantamento utilizando dados do portal da transparência aponta que apenas nos últimos cinco anos foram empenhados quase R$170 bilhões do orçamento federal para financiar obscuramente as políticas individuais dos parlamentares.

A grave violação dos “preceitos fundamentais regentes da administração, da execução do orçamento público e das finanças públicas, bem como os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade, da eficiência e da publicidade” foi esse o motivo que levou o PSOL, em junho de 2021, acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de paralisar as transferências financeiras e forçar o Congresso Nacional a revisar o modelo buscando maior transparência na alocação de recursos. 

Na ADPF 854 DF, o partido argumenta tratar-se de um verdadeiro “orçamento paralelo” e que o elemento de condicionalidade da liberação de recursos evidencia desvio de finalidade na distribuição dos recursos do orçamento. 

Em sua decisão pela suspensão dos pagamentos, a ministra Rosa Weber argumenta contra a “captura do orçamento público federal em favor dos interesses paroquiais dos congressistas” e faz um alerta contundente sobre o risco institucional que corremos enquanto país se continuarmos com essa prática.   

Naquele momento, a resposta dos parlamentares foi o Projeto de Resolução do Congresso Nacional nº. 04/2021 que, aprovado pelo Senado Federal em novembro de 2021, trouxe um pouco mais de transparência para os recursos aprovados no orçamento de 2022. 

Agora em 2024, coube ao ministro Flavio Dino determinar novamente a suspensão dos pagamentos por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 7697. O objetivo é novamente evitar abusos gerados pela falta de transparência.

A tarefa de desemperrar o fluxo de recursos para as bases eleitorais coube ao senador Ângelo Coronel, do PSD da Bahia, que, responsável pelo orçamento de 2025 está peregrinando entre os líderes do Executivo e do Legislativo, a fim de refinar seu projeto de alteração das regras sobre os recursos federais utilizados pelos parlamentares. 

O movimento para derrubar a importância do STF e alijá-lo do seu dever constitucional tem como objetivo enfraquecê-lo ao ponto de ser dominado por um Congresso Nacional cada vez mais tosco, fisiológico e perdulário. Não faz sentido que num ambiente onde esses mesmos parlamentares utilizam sua rasa retórica para defender superávits fiscais haja tamanho disparate na aplicação do dinheiro do contribuinte. 

O enfraquecimento do STF não é uma mera consequência aleatória da situação política atual. É fruto de um bem desenhado projeto para derrubar as instituições que funcionam no país utilizando para isso subterfúgios de cunho ideológico como cortina de fumaça para decisões pouco republicanas que só diminuem nosso tamanho enquanto sociedade. A escolha como alvos de Alexandre de Moraes, Rosa Weber e agora Flavio Dino apenas confunde o cidadão.

E quem se beneficia desse cabo de guerra virtual são parlamentares alheios às nossas reais necessidades de investimento. 

  • Impacto na democracia brasileira

Diante desse contexto de crescente tensionamento, se faz necessário empreender esforços para esmiuçar a raiz do descontentamento dos parlamentares com decisões tomadas no âmbito da Corte. 

Ao analisarmos as eleições de 2024, levantamentos apontam que nas 100 cidades mais beneficiadas pelas chamadas “Emendas Pix”, ou seja, transferências especiais de recursos enviados diretamente por parlamentares para contas bancárias dos municípios, 93% desses  foram reeleitos. 

Em Macapá (AP), segunda maior beneficiária dessa modalidade de emenda, o prefeito reeleito Dr. Furlan (MDB) recebeu 85,08% dos votos. Durante seu mandato como chefe do executivo municipal da capital do Amapá, o município recebeu R$128 milhões desse tipo de transferência. Só o senador Lucas Barreto (PSD), seu aliado, indicou R$45 milhões no período mencionado. 

As alianças construídas para a distribuição das emendas não se restringem a meras regras de afinidade política. O grau de parentesco de alguns prefeitos com parlamentares em Brasília também pode influenciar no apetite para a concessão das benesses. É o caso de cidades cuja prefeitura é administrada por parentes de deputados e senadores, essas são as campeãs de recebimento de emendas pix.

Chama a atenção a falta de critérios para obtenção dessas transferências. Inclusive, fica claro que o fator determinante para se conquistar quantias vultuosas das emendas não são as necessidades gerais da população brasileira, e sim acordos políticos e outros laços de afinidade pessoal que não comportam o princípio da isonomia. 

Belém, com cerca de 1,3 milhões de habitantes, governada por Edmilson Rodrigues (PSOL), foi contemplada com R$23 milhões no mandato do atual prefeito. Enquanto isso, Novas Russas (CE), cidade com 32,4 mil pessoas, recebeu quase o mesmo valor no mesmo período, R$18 milhões. Desse total, R$14 milhões foram enviados pelo deputado federal Junior Mauro (PL), marido da prefeita da cidade. 

Em Belém, o prefeito terminou a corrida eleitoral na terceira posição, com 9,78% dos votos e sequer avançou para o segundo turno. Embora Edmilson Rodrigues tenha convivido com baixos índices de aprovação durante seu governo, chama atenção a discrepância dos valores recebidos em comparação com cidades bem menores. 

Números extraídos do Portal da Transparência e do Siga Brasil (portal do orçamento do Senado Federal) apontam que, se considerarmos todas as emendas parlamentares enviadas entre 2021 e 2024, 50 dos 51 prefeitos que tentaram a reeleição nos 100 municípios com mais emendas por eleitor obtiveram sucesso, uma taxa de incríveis 98%. 

O pleito recém-terminado de 2024 registrou o maior índice de reeleições de prefeitos da história. 81% dos chefes do poder executivo das cidades brasileiras foram reconduzidos para um segundo mandato no último dia 06 de outubro, e outros ainda disputam o segundo turno. 

É inegável que o novo protagonismo vivido pelos parlamentares na execução do orçamento público tem modificado a correlação de forças no cenário da política brasileira, o que deveria, no mínimo, nos levar a um exercício de profunda reflexão sobre a conjuntura de captura do orçamento que vivenciamos atualmente. 

Como bem definiu o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, ao analisar o processo orçamentário brasileiro dos últimos anos, a adoção dessa nova lógica deu “espaço a prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento das políticas de interesse coletivo”. Ao inflar suas bases eleitorais com emendas milionárias com o único objetivo de patrocinar seus projetos de poder e suas alianças com políticos locais, a classe política brasileira transforma o orçamento público em moeda de troca nas eleições, em completa dissonância com os anseios da população. 

Para todo o exposto, parece ser possível compreender o nível elevado de aborrecimento de vários membros do Congresso Nacional no termômetro da relação com a Suprema Corte. Afinal, o projeto político eleitoral de um grande número desses atores está alicerçado, única e exclusivamente, na irrigação desenfreada de frações do orçamento público executado de forma desvirtuada, ineficiente e pouco transparente. Ao que parece, esqueceram que seu dever é estudar e aprimorar a legislação brasileira em benefício de toda a sociedade.

A tentativa ávida de limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal se traduz numa empreitada sabidamente inconsistente. A própria Constituição vigente, ao adotar acertadamente um mecanismo de freios e contrapesos, exerce papel fundamental na prevenção de abusos e concentração de poder, protegendo a democracia. 

O art. 60, §4º, III da Constituição Federal reverbera a vontade do constituinte originário, quando reunido em Assembleia Nacional, de ordenar o princípio da separação entre os poderes como cláusula pétrea. Ou seja, um dispositivo constitucional que não pode ser alterado, nem mesmo por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição. Ademais, em seu art. 102, a mesma Carta Magna determina que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”, o que pode ser traduzido, tranquilamente, da seguinte forma: o STF é quem terá a última palavra se tratando de interpretação constitucional, mesmo contra a ira dos parlamentares. 

  • Narrativas falaciosas

Em artigo intitulado “as emendas de relator e as narrativas falaciosas”, escrito em conjunto por Paulo Hartung, Marcos Mendes e Fábio Giambiagi, em 2022, os autores refutaram alguns dos mitos mais comuns envolvendo a utilização de recursos orçamentários por parlamentares. 

O primeiro deles é sobre esse tipo de prerrogativa de utilização de verbas federais ser a regra geral no mundo. No documento, os autores afirmam que embora o Congresso Nacional tenha o papel de votar o orçamento, não se encontra em nenhum outro país um volume tão grande de recursos movimentado por membros do legislativo como acontece no Brasil. 

Em comparação com os Estados Unidos, por exemplo, o percentual das despesas discricionárias utilizadas pelos parlamentares de lá para financiar projetos em seus redutos eleitorais é de 1%, enquanto aqui, segundo os autores do estudo, esse percentual chega a 30%.

O número de emendas parlamentares também é algo avultante, passando com facilidade as 6.000 proposições anuais. Em comparação com Portugal, um outro exemplo levantado por Hartung, Mendes e Giambiagi, o Brasil chega a criar cerca de 30 a 40 vezes mais dependendo do ano de comparação. 

Um outro forte argumento contra o uso indiscriminado de emendas está ligado à natureza da federação brasileira. Aqui, tanto a União, quanto estados e municípios têm seus próprios orçamentos e responsabilidades. Segundo os autores, “à União cabem funções como a defesa nacional e o ensino superior, aos estados, funções como a infraestrutura rodoviária intermunicipal, o ensino médio ou a rede hospitalar de referência, aos municípios, os investimentos e serviços de impacto local”, e concluem “nesse ordenamento legal, não faz sentido que recursos federais sejam utilizados para fazer estradas locais, ginásios esportivos e praças municipais”.

Isto é, considerando que estados e municípios têm suas obrigações e orçamentos próprios e o apoio fundamental do Fundo de Participação dos Municípios para tratar de demandas locais e regionais da população. Então, qual seria o sentido de entregarmos parte significativa do montante disponível para investimento nas mãos dos parlamentares?

Outro argumento defendido pelos autores está ligado à lógica errada de que os parlamentares, por conhecerem melhor suas regiões, teriam maior assertividade na alocação dos investimentos já que “decisões isoladas e descoordenadas aumentam exponencialmente a chance de haver estradas apenas parcialmente asfaltadas, excesso de provisão de serviços em um município e falta em outro”. 

Gastos orçamentários precisam de coordenação e estudos técnicos como garantia de sua viabilidade e responsabilidade, não podem ser feitos livremente como mandam as cabeças de 594 parlamentares brasileiros preocupados apenas com seus redutos eleitorais. 

  • A tragédia dos comuns e o laissez-faire orçamentário

O termo “tragédia dos comuns” foi primeiramente cunhado pelo biólogo Garrett Hardin em 1968, quando descreveu com brilhantismo a busca por benefícios individuais propagada por Adam Smith em “A Riqueza das Nações”, o que não levaria ao crescimento do bem estar comum e sim resultaria no uso excessivo dos recursos disponíveis.

Nas palavras do biólogo americano: “Adam Smith contributed to a dominant tendency of thought that has ever since interfered with positive action based on rational analysis, namely, the tendency to assume that decisions reached individually will, in fact, be the best decisions for an entire society”. E conclui que: “if the assumption is not correct, we need to reexamine our individual freedoms to see which ones are defensible”. 

Para Garrett Hardin, ao avaliar os pós e contras da utilização de recursos comuns para atingir sucesso individual, as pessoas tendem a privatizar os ganhos com a exploração da riqueza de todos e socializar os prejuízos advindos dessa utilização e exploração do bem comum.

Esse comportamento fica mais evidente quando observamos a socialização da exploração das riquezas naturais do planeta para aumento do crescimento econômico de determinado país individualmente. Enquanto os maiores líderes econômicos globais mantêm suas máquinas funcionando a pleno vapor para obtenção de lucro e enriquecimento de seus cidadãos, a poluição resultante do trabalho dessas máquinas torna-se um passivo com o qual o mundo inteiro precisa lidar, irônica e indecentemente prejudicando as populações dos países mais pobres. 

Traçando um paralelo com a situação de nossas emendas parlamentares, estas são consumidas com voracidade pelo desejo eleitoreiro dos parlamentares enquanto recursos disponíveis no orçamento federal poderiam ser destinados para a ampliação de programas sociais e para financiar obras de infraestrutura. Por exemplo, os valores empenhados desde 2020 até outubro de 2024 para financiar as emendas parlamentares giram em torno de 170 bilhões de reais. Por curiosidade, o programa Bolsa Família que atende diretamente dezenas de milhões de famílias no Brasil anualmente gira em torno do mesmo valor. Para o orçamento de 2024 foram destinados R$168,5 bilhões para as famílias atendidas pelo programa. 

Poderíamos ter o aumento do atendimento às famílias que precisam dos programas sociais para sobreviver, mas estamos entregando o orçamento para deputados federais e senadores fazerem política e se manterem onde estão com graves prejuízos à democracia.

Estamos deliberadamente, através da concessão de direito sobre parte significativa do orçamento público aos parlamentares, aumentando a concentração de poder e renda em algumas famílias e grupos políticos enquanto vemos agravar a nossa desigualdade social e a participação popular no processo democrático. 

Daron Acemoglu, economista turco recém laureado com o prêmio Nobel de economia, escreveu justamente sobre o papel das instituições dos países em seus desenvolvimentos econômicos. Para o economista, instituições nacionais que permitem a participação popular no processo decisório estão diretamente relacionadas ao crescimento dessas nações, enquanto instituições que afastam a população do poder fazem a sociedade caminhar no sentido contrário ao desenvolvimento.  

Nesse sentido, o desequilíbrio político causado pela utilização das emendas parlamentares por deputados e senadores com o mero critério de proximidade política e influência estratégica sobre determinadas localidades do país se encontra com a crítica de Garrett Hardin ao laissez-faire orçamentário na exploração de recursos finitos. 

Para os autores, “o efeito desse conjunto de elementos é a realidade de um país onde o investimento em infraestrutura é metade do que os especialistas sugerem que deveria ser, mas onde se gastam dezenas de bilhões de reais em pequenas obras que não são inúteis, ou poderiam até fazer sentido, mas, definitivamente, não com o uso de recursos federais”. 

Hartung, Mendes e Giambiagi já alertaram, também contrariamente à lógica de Adam Smith, que “pessoas agindo racionalmente em favor de seu interesse próprio acabam prejudicando o interesse coletivo”.  O resultado da busca incessante por sucesso individual, dinheiro e prestígio, práticas cafonas dos parlamentares brasileiros, é fazer o restante da nossa sociedade amargar os prejuízos ambientais, materiais, financeiros, econômicos e sociais das escolhas individuais dos membros do Congresso Nacional enquanto esses se lambuzam com a parte do orçamento de todos nós.

 

Fonte: Por Leonardo Delfino da Silva e Rafael Cabral Maia, no Le Monde

 

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