A íntima relação entre o trabalho
precarizado e o sofrimento psíquico
O filósofo Mark Fisher
abre o livro Realismo Capitalista escrevendo sobre como há na sociedade uma
sensação de que não apenas o capitalismo é o único sistema político e econômico
viável, mas também de que agora é impossível até mesmo imaginar uma alternativa
ao capitalismo. Fisher faz uma analogia com uma pessoa depressiva, “que
acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma ilusão
perigosa”.
E depressão e o
capitalismo estão intimamente ligados, afirma o sociólogo Gabriel Peters,
professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“A depressão, a
ansiedade e o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH)
possuem fontes sistêmicas, coletivas e estruturais. A lógica da sociedade
contemporânea – e do capitalismo tardio, em particular – produz montantes muito
significativos de sofrimento e essas experiências de sofrimento socialmente
determinadas precisam ser explicadas pela sociologia também”, disse em
entrevista durante o I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao
adoecimento mental, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e os grupos
de pesquisa Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE).
No seminário, Peters
citou o livro Fatigue d’être soi (A fadiga de ser si mesmo, em tradução livre),
do antropólogo francês Alain Ehrenberg, para mostrar como o diagnóstico
psiquiátrico da depressão acompanhou as transformações do capitalismo tardio.
“Ehrenberg elenca o fato de que hoje um componente fundamental no diagnóstico
da depressão tem menos a ver com tristeza e mal-estar e mais a ver com aqueles
sintomas relacionados à inação, letargia, incapacidade de funcionar”, afirmou
Gabriel Peters.
Para o professor,
autor do livro Ordem social como problema psíquico: do existencialismo
sociológico à epistemologia insana, não surpreende que a depressão se torne um
problema de saúde pública para a Organização Mundial da Saúde (OMS) justamente
quando se torna a principal causa de incapacitação para o trabalho. Segundo a
OMS, em 2019, quase um bilhão de pessoas viviam com algum transtorno mental.
“Também não surpreende
que boa parte do tratamento clínico da depressão – tanto psicoterapêutico
quanto medicamentoso – seja menos voltado para restituir a felicidade ao
indivíduo que se tornou infeliz e mais voltado a refuncionalizar esse
indivíduo, torná-lo mais uma vez capaz de trabalhar, de interagir socialmente”,
afirmou Peters, completando que “essa geração mais nova de antidepressivos são
menos pílulas da felicidade e mais pílulas da atividade, para tornar o
indivíduo mais uma vez capaz de operar no mundo”.
Não é apenas com
remédios, já que há uma multiplicidade de dispositivos pelos quais os
trabalhadores tentam corresponder às exigências do capitalismo. “Por exemplo,
quando eu tomo café para combater a sonolência numa reunião de trabalho, eu
estou usando um dispositivo neuroquímico; quando eu uso um aplicativo de
meditação para relaxar ou para administrar meu tempo eu estou me valendo de um
dispositivo tecnológico”, elencou.
Ao mesmo tempo que
exige um indivíduo com foco para trabalhar ou estudar por longas jornadas, o
mesmo sistema oferece um ambiente repleto de distrações que foram criadas para
viciar. “Existe uma expertise em psicologia do vício que foi deliberadamente utilizada
no Spotify, no Instagram, no TikTok e em várias outras plataformas para deixar
o indivíduo ligado à máquina. Entram também as soluções medicamentosas, que
servem tanto para combater transtornos como para otimização do desempenho. A
ritalina pode ser prescrita para uma criança por um psiquiatra a partir de um
diagnóstico de TDAH, mas pode ser tomada por uma acadêmica que quer virar à
noite escrevendo”, exemplifica.
Essa miríade de
estímulos do capitalismo rege não só o trabalho, mas também o lazer. Peters
cita o livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, do crítico cultural
estadunidense Jonathan Cary, para mostrar que o sono é o único período do dia
em que nós somos inúteis ao capitalismo, tanto como produtores quanto como
consumidores. “Se eu não estou trabalhando, mas estou acessando o Instagram ou
assistindo a um seriado na Netflix, continuo sendo útil ao capitalismo.
É só no momento em que
durmo, que mergulho na inconsciência, que eu me torno completamente inútil. O
capitalismo tenta alvejar esse período de inutilidade do indivíduo por diversas
maneiras, inclusive a via neuroquímica”, disse.
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Ansiedade e precarização do trabalho
A precarização imposta
aos trabalhadores também tem um componente importante quando se fala de
sofrimento psíquico: a ansiedade. Para Peters, tem a ver, sobretudo, com as
incertezas em relação ao futuro. “A precarização significa instabilidade no
trabalho, incerteza em relação à renda que vai ser retirada do trabalho. Isso
por si só já é uma maneira de forçar as pessoas à autoexploração”, enfatizou.
Peters também critica
o discurso do empreendedorismo que tenta refrasear perdas de garantias
trabalhistas e perdas de proteção social dos trabalhadores como supostas
virtudes. “Em vez de falar da falta de direitos, esse discurso vai elogiar a
flexibilidade e a suposta autonomia que se tem para construir o seu próprio
horário. Até mesmo vai elogiar a aventura e o risco, que são maneiras, digamos,
de dar um componente heroico ao que é uma instabilidade, uma precarização. E,
mais uma vez, esse discurso pode penetrar na própria subjetividade dos
trabalhadores”.
Ele explica que no
trabalho contemporâneo existem certas coações para que o trabalhador mantenha,
pelo menos, a máscara da persona de empreendedor. “Parte desse trabalho
contemporâneo precarizado envolve você vender não só suas competências, mas
toda uma personalidade para o mercado. Então, o motorista da Uber é avaliado
pelo bom humor, pela gentileza, etc. Todo o discurso gerencial sobre recursos
humanos envolve essa ideia, por exemplo, de que você tem que vestir a camisa da
empresa, de que você não pode reclamar”, disse.
“Em vez de falar da
falta de direitos, se elogia a flexibilidade e a suposta autonomia que se tem
para construir o seu próprio horário”
É uma forma também de
despolitizar o trabalho. “Muitas vezes o trabalhador sofre, mas não encontra um
espaço para veicular esse sofrimento. Uma pessoa que vai escrever no LinkedIn
sobre a última experiência que teve numa empresa, vai escrever sobre o chefe
que a demitiu, só que, na medida em que ela tem a intenção de ser contratada
por uma outra empresa, provavelmente ela vai construir uma narrativa rósea do
que viveu, vai dizer que aprendeu muito e vai deixar de lado toda espécie de
sofrimento que ela pode ter vivenciado até o ponto da demissão”.
Para Peters, o
indivíduo em depressão se assemelha a um empreendedor colapsado. “O elemento da
atividade foi substituído pela inatividade radical e esse é um ponto claro em
que o diagnóstico de depressão se encontra com o burnout. É interessante que
quando o filósofo Byung-Chul escreve Sociedade do Cansaço, nesse ‘cansaço’ do
título está tanto o burnout quanto a depressão”.
A epidemia de
depressão verificada pela OMS é um “alarme civilizacional”, diz Peters, porque
o capitalismo exige demais dos corpos dos indivíduos, até o ponto do colapso.
“Assim como o desenvolvimento tecnológico não pode continuar sem destruir o
próprio ecossistema da Terra, é como se o capitalismo, e esse modelo de
subjetividade capitalista, não pudesse continuar funcionando sem deixar de
gerar esse montante de milhões e milhões de indivíduos que colapsam no
sofrimento depressivo”, afirma.
<><> Um
trabalho com propósito
Se o sofrimento
psíquico também tem fontes sociais, estruturais e sistêmicas, o combate a esse
sofrimento também passa por ações coletivas e políticas. Peters defende a
existência de políticas públicas para construir condições de trabalho que
protejam a saúde mental dos trabalhadores. “Essa pandemia de depressão não é só
um agregado de sofrimentos individuais: o sistema capitalista está exigindo
demais dos indivíduos. Não é, obviamente, negar a importância do tratamento
individual, da psicologia clínica, até mesmo da psiquiatria, mas é dizer que
esse tratamento individualizado é insuficiente”, afirma.
“Se você está numa
sociedade adoecedora, a única coisa que um tratamento individual vai poder
fazer é tentar garantir sua adaptação maior ou menor a essa sociedade
adoecedora sem combater as causas sistêmicas desse adoecimento”, pondera,
completando que há múltiplas maneiras de fazer esse combate.
Uma delas é combinar,
por exemplo, o trabalho com a partilha do sofrimento com outros trabalhadores e
estudantes. “Na vida acadêmica isso é extremamente comum. Somos meio que
coagidos para nos apresentarmos uns aos outros como intelectos puros e não como
essas criaturas de carne e vísceras que sofrem de insônia, ansiedade, etc.
Simplesmente partilhar essas vulnerabilidades em vez de vestir essa máscara da
invulnerabilidade, já é um início importante”, acredita.
Para o trabalho não só
deixar de ser um fator de adoecimento, mas também ser uma fonte de prazer,
Peters afirma que a ideia de um trabalho significativo tem de ser reconstruída.
“Alguns considerariam utópica, mas acredito em um sistema social que pudesse
desvincular, pelo menos em alguma medida, renda e emprego”, diz.
A ideia de renda
básica universal, por exemplo, é uma maneira de fazer isso. “Responde ao
desemprego como um problema sistêmico e recupera o trabalho como uma atividade
significativa. Nesse mundo, o trabalho fundamental da vida da pessoa não é
necessariamente o que dá a ela o ganha-pão, mas é o que dá a ela o senso de
propósito, seja engajamento comunitário, seja envolvimento artístico e assim
por diante.
O trabalho nunca é só,
ou pelo menos nunca deveria ser, o ganha-pão. Se ele é só o ganha-pão, acaba
tendo efeitos psicológicos degradantes para o indivíduo”, conclui.
Fonte: Por Maria
Carolina Santos, em Marco Zero
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