quarta-feira, 30 de outubro de 2024

'O que deu errado com o capitalismo?': os questionamentos de banqueiro bem-sucedido de Wall Street

"O que deu errado com o capitalismo?"

Essa pergunta é o título do novo livro do investidor Ruchir Sharma, banqueiro que passou quase toda a sua carreira em Wall Street.

Ele trabalhou para algumas das maiores empresas do distrito financeiro de Nova York — uma experiência que, segundo ele, o colocou no ponto de vista ideal para observar como o dinheiro flui através da economia global.

Sua conclusão? O capitalismo de hoje não atingiu seu verdadeiro potencial.

Autor de livros de sucesso como The rise and fall of nations ("Ascensão e queda das nações", em tradução livre) e Breakout nations: In pursuit of the next economic miracles ("Nações emergentes: em busca dos próximos milagres econômicos"), Sharma é presidente da empresa de gestão de patrimônio Rockefeller Capital Management e fundador e diretor da empresa de investimentos Breakout Capital.

“Este livro é uma história revisionista do capitalismo”, diz Sharma sobre seu lançamento.

Parte do interesse do executivo em escrever sobre o assunto tem a ver com sua história pessoal.

O banqueiro cresceu na Índia nas décadas de 1970 e 1980, onde o cenário era “muito socialista”, lembra o autor, apontando exemplos como a nacionalização dos bancos.

"Cresci aspirando a ser capitalista" nesse contexto, conta o autor.

Sharma foi depois viver com a família em Cingapura, onde ficou impressionado com a liberdade econômica e a “prosperidade”, em contraste com o que via em seu país natal.

Esse contraste influenciou diretamente sua visão do mundo.

Seu próximo destino foi os Estados Unidos, a maior economia do mundo.

Trabalhando nas entranhas do capital, Sharma começou a perguntar-se por que nos países ocidentais tantos jovens dizem que prefeririam viver no socialismo.

Por isso, ele começou a refletir sobre o que houve no sistema capitalista, a ponto de muitos terem se tornado céticos.

Em "O que deu errado com o capitalismo?" (no original, What went wrong with capitalism), o autor argumenta que parte da culpa recai sobre os gastos gigantescos dos governos, viciados em dívidas, e sobre os bancos centrais, ao estimularem a economia injetando dinheiro no sistema, em vez de deixarem que as forças do mercado restabeleçam o equilíbrio.

Ao mesmo tempo, salienta, "nas últimas décadas houve uma perversão do capitalismo".

"As pessoas que se beneficiam do capitalismo não deveriam ser os grandes beneficiários”, diz ele.

"Algo está errado quando vemos que as pessoas que mais prosperaram nos últimos 20 anos são as mesmas que têm grande acesso a financiamento. Houve uma explosão de bilionários."

Hoje, os Estados Unidos abrigam mais de 800 supermilionários (coletivamente, a riqueza deles chega a quase US$ 6 trilhões, segundo a Forbes), mais do dobro do que era antes da pandemia.

Mas Ruchir Sharma afirma que, embora os supermilionários sejam um alvo óbvio para os críticos do aumento da desigualdade, existe um culpado mais oculto: a queda na produtividade.

Se as empresas produzirem mais, diz ele, o bolo econômico pode crescer para todos, permitindo que elas aumentem os salários sem causar inflação.

Ele critica que, nas últimas décadas, as chamadas “empresas zumbis" são mantidas vivas graças aos bancos centrais determinados a manter as taxas de juro baixas, como ocorreu ao longo da década de 2010.

Além disso, bancos em dificuldades e considerados grandes demais para falir têm sido apoiados por resgates governamentais, uma política da qual ele discorda.

•        'Os loucos anos 1920'

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que tais ações eram consideradas prejudiciais à forma como o capitalismo deveria funcionar.

Revendo a história americana, Sharma volta à década de 1920, uma época que muitos associam a uma era glamorosa de jazz, à libertação nos costumes e à prosperidade crescente.

Contudo, após o fim da Primeira Guerra Mundial, entre 1920 e 1921, ocorreu uma profunda crise econômica que durou relativamente pouco, mas foi muito dolorosa. Ela foi antecessora da Grande Depressão de 1929.

Mas Sharma diz que devem ser tiradas lições da sua antecessora, a crise de 1920-1921

O empresário defende que há lições importantes sobre a política de não intervenção aplicada naquele momento.

Lições, aponta ele, que muitas vezes parecem ter sido esquecidas.

O que aconteceu nesses anos? Por que a política anti-intervenção foi tão ruim?

Os gastos e empréstimos do governo dos EUA dispararam durante a Primeira Guerra Mundial.

Mais tarde, à medida que a economia tentava adaptar-se aos tempos de paz, as pessoas correram para comprar bens que anteriormente eram racionados — e a inflação aumentou.

Além disso, as tropas que voltaram para casa aumentaram rapidamente a força de trabalho buscando emprego.

À medida que a recessão se instalou, os preços caíram e a atividade empresarial entrou em colapso, mas a Reserva Federal insistiu em aumentar os impostos.

Quase 500 bancos nacionais faliram em 1921, quando a produção industrial parou e o desemprego dobrou.

Isto pode parecer devastador, mas Sharma diz que a abordagem de não intervenção — deixar a crise continuar o seu curso, sem injetar dinheiro na economia e sem intervir para salvar os bancos — funcionou.

A abordagem permitiu que aqueles com fraco desempenho fossem eliminados da economia e que a crise terminasse em apenas 18 meses, argumenta.

“Temos uma prosperidade incrível após o período sem intervenção”, observa. “À medida que as pessoas aprendem a seguir sem intervenções, os fracos são escanteados.”

•        E na atualidade?

Ao contrário do que aconteceu naquele momento, em anos mais recentes, as respostas dos governos e dos bancos centrais às crises econômicas têm sido muito diferentes.

Há o exemplo da crise de 2008, quando grandes bancos foram resgatados.

“A recuperação econômica [dessa crise] foi fraca. Muitos economistas pensaram que a lição foi que deveríamos ter feito mais”, diz Sharma.

Alguns anos depois, na pandemia de covid-19, no meio de uma brutal crise humana e econômica, mais uma vez as autoridades intervieram injetando grandes quantias de dinheiro.

“Os governos anunciaram grandes planos de isolamento social e geriram meios de estímulo. A ideia era a de que era melhor errar por excesso do que por falta de ação", afirma o autor.

“Sim, os governos devem intervir nas crises. Mas desta vez o estímulo foi tão grande que fez com que a inflação e também os preços dos ativos subissem.”

Ele se opõe, salienta, ao excesso de intervenção estatal e monetária.

Sharma diz que, até a década de 1970, as autoridades relutavam para intervir na economia e salvar o setor privado.

O problema é que agora "existe uma cultura de resgate".

•        Intervir em épocas de crise

Do outro lado da balança, há muitos economistas que defendem intervenções econômicas em tempos de crise.

Um deles é Ben Bernanke, antigo presidente da Federal Reserve, o banco central dos EUA, que liderou o resgate ao banco de investimento Bear Sterns no início de 2008.

“Fiquei preocupado, mas senti-me muito confortável com a decisão”, disse Bernanke ao programa Marketplace da BBC, uma década após o resgate.

“Se o Bear Stearns tivesse falido de forma descontrolada, isso teria repercutido no sistema financeiro, causando muitos danos.”

Pouco depois, outros bancos de investimento ficaram à beira do abismo e Alistair Darling, então ministro da Fazenda do Reino Unido, interveio no maior resgate bancário da história britânica.

“Claro que é assustador, foi como uma catástrofe batendo na porta. Mas demorei um nanossegundo para pensar que não poderíamos deixar isso acontecer.”

Quem está certo então? Deveriam os políticos intervir e apoiar as empresas privadas em momentos de crise, ou a sociedade deveria aceitar o sofrimento a curto prazo para obter ganhos de produtividade futuros?

Por ora, Ruchir Sharma diz que alguns planos devem ser delineados, antes que a próxima crise chegue.

“Vamos traçar os limites agora”, diz ele, sugerindo que os governos tenham um roteiro caso ocorra uma crise financeira.

"Vamos fazer um plano hoje”, diz ele. “Não sinto que estejamos nos planejando."

 

¨      A complexidade do capitalismo contemporâneo. Por Fenando Nogueira da Costa

Para realizar uma análise do sistema capitalista contemporâneo a partir dos princípios da complexidade, instabilidade e intersubjetividade, é necessário ir além dos modelos tradicionais lineares e reducionistas para incorporar uma abordagem mais dinâmica e interconectada. No contexto da nova ciência paradigmática, enfatiza-se a natureza emergente e multifacetada desse sistema complexo.

Metodologicamente, estruturarei a análise abaixo em três partes: elementos constituintes, interconexões e propósito do sistema capitalista.

Os elementos são os componentes individuais constituintes do sistema. No capitalismo contemporâneo, esses elementos incluem, entre outros: (i) empresas e corporações transnacionais: os principais agentes econômicos organizadores da produção e venda de bens e serviços, em escala nacional e internacional, coordenam grandes cadeias de suprimentos globais; (ii) trabalhadores e famílias consumidoras: atuam como mão de obra produtiva e consumidores de bens e serviços, influenciam o custo das empresas e a demanda agregada do mercado e acumulam sobra de renda para enriquecimento financeira.

(iii) Estados e governos: regulam o sistema, intervêm em crises, determinam políticas fiscais e monetárias, participam como grandes agentes econômicos via empresas estatais inclusive exportadoras e lançam títulos de dívida pública; (iv) bancos e demais instituições financeiras: destacadamente o mercado de ações de empresas transnacionais, são plataformas para a alocação de capital na economia mundial, a especulação a respeito dos valores de mercado dos diferentes ativos existentes e a acumulação de riqueza financeira de trabalhadores e capitalistas, integrando investidores institucionais como fundos de pensão, bancos de investimento internacional e fundos mútuos (hedge funds).

(v) Tecnologia e inovações digitais: motores de transformação produtiva via empreendimentos, redefinem relações de trabalho, consumo e comércio global; (vi) meio ambiente e recursos naturais: base material de onde são extraídos insumos para a produção, mas também um elemento natural sofredor das consequências danosas do sistema produtivo; (vii) instituições internacionais e organizações supranacionais: FMI, Banco Mundial, OMC, ONU etc. regulam a governança global e mediam conflitos econômicos; (viii) movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs): representam agentes de contestação e transformação social, reagindo a desigualdades ou injustiças geradas pelo sistema através de lutas identitárias.

Esses elementos são interdependentes. Seu comportamento sistêmico capitalista não pode ser compreendido isoladamente, pois estão em constante interação uns com os outros, gerando efeitos de feedback ou retroalimentação.

As interconexões são as relações dinâmicas entre os elementos do sistema. Produzem comportamentos emergentes e muitas vezes não lineares. As principais interconexões do capitalismo contemporâneo incluem: (a) fluxos de capital global: o capital flui livremente entre mercados, setores produtivos e países, movido por especulações sobre valores de mercado, políticas de investimento e diante crises econômicas. Decisões de investimento em um país hegemônico, como os EUA ou a China, têm impactos globais como a GCF 2008; (b) Cadeias Globais de Valor (CGV): produtos são produzidos em diversos países com economias de escala em sistemas de produção de seus componentes fragmentados, envolventes de mão de obra mais barata, tecnologia acessível e recursos naturais de diferentes partes do mundo mais acima da linha do Equador.

(c) Políticas públicas e regulação: governos locais influenciam o mercado através de regulações, políticas fiscais e monetárias. Em contrapartida, as corporações influenciam os governos por meio de lobby e financiamento de campanhas; (d) inovações tecnológicas e suas externalidades: a inovação tecnológica redefine as interações entre capital e trabalho (como automação, robotização e Inteligência artificial), alterando a distribuição de renda e o emprego, ao mesmo tempo sendo capaz de criar mercados e destruir setores econômicos obsoletos.

(e) Interdependência ambiental: a relação entre o sistema produtivo e o meio ambiente está conectada de forma crítica. A extração de recursos naturais gera externalidades (como mudança climática e perda de biodiversidade) e elas retroalimentam o sistema por meio de impactos sociais e econômicos globais; (f) desigualdade e conflito social: o sistema capitalista contemporâneo gera e sustenta desigualdades sociais e econômicas alimentadores de ciclos de conflito social, movimentos de resistência e políticas redistributivas, as quais, por sua vez, afetam as condições de estabilidade política e social do sistema.

Essas interconexões no capitalismo contemporâneo são caracterizadas por feedback loops – ciclos de retroalimentação, onde a saída de um sistema é usada como entrada para operações futuras –, tanto positivos quanto negativos. Amplificam ou estabilizam certos comportamentos.

Por exemplo, a globalização aumenta a interdependência entre os países e amplifica as crises. Foram os casos da Grande Crise Financeira (GCF) de 2008 e do “pandemônio da pandemia” de 2020-2021 com choque comercial e inflacionário.

O propósito do sistema capitalista contemporâneo é visto, de maneira reducionista ou marxista, como apenas a maximização do lucro e da acumulação de capital. Entretanto, ao adotar uma visão mais complexa, entendemos esse propósito ser múltiplo, adaptativo e emergente. Eu ousaria dizer: ingovernável e/ou incontrolável.

O objetivo imediato das corporações transnacionais e dos participantes de mercados de ações, em bolsa de valores globais, é a acumulação persistente de capital por meio da exploração de recursos, trabalho e inovação tecnológica. Por isso, o capitalismo contemporâneo está continuamente em busca de novos mercados, recursos e mão de obra, para se expandir, sendo atraído por desregulamentação de fronteiras e normas em uma integração econômica global.

Parte do dinamismo do capitalismo está em sua capacidade de gerar inovações tecnológicas disruptivas. Reestruturam a economia e a sociedade, criando formas de produção automatizadas e consumo via comércio eletrônico, por exemplo.

Ele busca criar e atender à demanda por consumo das famílias. Por sua vez,  a expansão de mercado alimenta novos ciclos de produção, inovação e acumulação.

Embora o sistema gere crises periódicas e instabilidade, de acordo com as oscilações entre os valores de ativos existentes e os custos de produção de ativos novos, ele também tem um propósito adaptativo de autossustentação. As crises são vistas como oportunidades para reestruturação e inovação dentro do sistema, sugerindo uma capacidade resiliente de adaptação.

O propósito do sistema é contestado por movimentos sociais e reage em re-evolução sistêmica sem comando central. Movimentos sociais, questões ambientais e debates sobre desigualdade estão reformulando os caminhos do capitalismo, porque forças internas e externas o pressionam para se adaptar a novas realidades sociais, políticas, culturais, demográficas e naturais.

Para seguir os princípios da complexidade, instabilidade e intersubjetividade, a análise desse sistema não deve assumir a hipótese de ele estar em busca de equilíbrio econômico e/ou possuir uma lógica determinista de progresso linear. Ao contrário do dito pela ortodoxia econômica ou a marxista, é necessário reconhecer ele estar transcendendo os pressupostos tradicionais.

O capitalismo contemporâneo é um sistema altamente interconectado, com múltiplos agentes, interesses e forças agindo de maneiras não lineares. Pequenas alterações, em um ponto do sistema (como políticas governamentais ou inovações tecnológicas), costumam ter grandes impactos globais e imprevisíveis.

O sistema é caracterizado por crises periódicas, inovações disruptivas e mudanças rápidas, com padrões emergentes de crescimento e colapso. A estabilidade costuma ser uma exceção temporária, não uma regra.

Ele é moldado por percepções, expectativas e decisões de diversos agentes com conflitos de interesses, incluindo governos, corporações, investidores institucionais, trabalhadores e consumidores. Os valores, ideologias e percepções de risco, por exemplo, influenciam o comportamento dos agentes, refletindo uma natureza intersubjetiva e adaptativa do sistema sem ser “economia de comando”.

Para uma intervenção eficaz no sistema capitalista contemporâneo, é essencial compreender ele ser complexo, adaptativo e mutável. A intervenção, mesmo local, deve ser pensada de maneira sistêmica, levando em conta as interconexões globais, a natureza emergente dos comportamentos e as dinâmicas de feedback geradoras de instabilidade.

Qualquer tentativa de intervenção ou regulação deve ser consciente das limitações da previsibilidade e do potencial de consequências não intencionais. Os agentes dentro do sistema, sejam governos, corporações ou movimentos sociais, atuam de maneira interdependente e com graus variados (e variáveis) de influência e poder.

 

Fonte: BBC Business Daily/A Terra é Redonda

 

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