O nazismo era um movimento de esquerda ou
de direita?
"Cara, cai na
real! Ser de esquerda é ser a favor de milhares de mortes causadas pelo
comunismo e nazismo no mundo. Reflita!", diz uma mensagem de janeiro no
Twitter. "O socialismo/comunismo é uma ideologia de esquerda irmã do
nazismo", diz outra do final de abril. Outro participante da rede social
pergunta: "Quantas pessoas será que estão em grupos de libertários no
Facebook discutindo se nazismo é esquerda ou direita neste exato
momento?".
A discussão sobre se o
movimento nazista alemão - cujo governo matou milhões de pessoas e levou à
Segunda Guerra Mundial - teria as mesmas origens do marxismo ferve nas redes
sociais há alguns meses, com a crescente polarização do debate político no Brasil.
Mas historiadores
entrevistados pela BBC Brasil esclarecem o que dizem ser uma "confusão de
conceitos" que alimenta a discussão - e explicam que o movimento se
apresentava como uma "terceira via".
"Tanto o nazismo
alemão quanto o fascismo italiano surgem após a Primeira Guerra Mundial, contra
o socialismo marxista - que tinha sido vitorioso na Rússia na revolução de
outubro de 1917 -, mas também contra o capitalismo liberal que existia na época.
É por isso que existe essa confusão", afirma Denise Rollemberg, professora
de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Não era que o
nazismo fosse à esquerda, mas tinha um ponto de vista crítico em relação ao
capitalismo que era comum à crítica que o socialismo marxista fazia também. O
que o nazismo falava é que eles queriam fazer um tipo de socialismo, mas que
fosse nacionalista, para a Alemanha. Sem a perspectiva de unir revoluções no
mundo inteiro, que o marxismo tinha."
O projeto do movimento
nazista, segundo Rollemberg, previa uma "revolução social para os
alemães", diferentemente do projeto dos partidos de direita da época,
"que vinham de uma cultura política do século 19, de exclusão completa e
falta de diálogo com as massas".
Mesmo assim, ela diz,
seria complicado classificá-lo no espectro político atual. "Eles
rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que
estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro
caminho", afirma.
• Nacionalismo
A ideia de uma
"revolução social para a Alemanha" deu origem ao Partido
Nacional-Socialista alemão, em 1919. O "socialista" no nome é um dos
principais argumentos usados nos debates de internet que falam no nazismo como
um movimento de esquerda, mas historiadores discordam.
"Me parece que
isso é uma grande ignorância da História e de como as coisas aconteceram",
disse à BBC Brasil Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da
USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário.
"O que é
fundamental aí é o termo 'nacional', não o termo 'socialista'. Essa é a linha
de força fundamental do nazismo - a defesa daquilo que é nacional e 'próprio
dos alemães'. Aí entra a chamada teoria do arianismo", explica.
De acordo com
Blikstein, os teóricos do nazismo procuraram uma fundamentação teórica e
filosófica para defender a ideia de que eles eram descendentes diretos dos
"árias", que seriam uma espécie de tribo europeia original.
"Estudiosos na
Europa tinham o 'sonho da raça pura' nessa época. Quanto mais próximos da tribo
ariana, mais pura seria a raça. E esses teóricos acreditavam que o grupo
germânico era o mais próximo. Daí surgiu a tese de que, para serem felizes,
tinham que defender a raça ariana, para ficar longe de subversões e decadência.
(Alegavam que) a raça pura poderia salvar a humanidade."
A ideia de uma defesa
do povo germânico ganhou popularidade em um momento de perda de territórios,
profunda recessão e forte inflação após a Primeira Guerra Mundial - e tornou-se
o centro do movimento nazista.
"Era preciso
recuperar a moral do pobre coitado, que não tinha dinheiro e era 'massacrado
pelos capitalistas'", explica Blikstein. Nesse contexto, afirma, o nazismo
vendia a ideia de "reeguer o orgulho da nação ariana. O pressuposto disso seria
eliminar os não arianos. E essa teoria foi aplicada até as últimas
consequências".
• 'Marxistas e capitalistas'
Mesmo propagando a
ideia de que o nazismo planejava uma revolução social na Alemanha - o que
incluía, por exemplo, maior intervenção do Estado na economia -, o partido
fazia questão de deixar clara sua oposição ao marxismo.
"Os comícios
hitleristas eram profundamente antimarxistas", disse à BBC Brasil a
antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, que é estudiosa de movimentos
neonazistas.
"O nazismo e o
fascismo diziam que não existia a luta de classes - como defendia o socialismo
- e, sim, uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais. As escolas
nacional-socialistas que se espalharam pela Alemanha ensinavam aos jovens que
os judeus eram os criadores do marxismo e que, além de antimarxistas, deveriam
ser antissemitas."
Os judeus, aliás,
tornaram-se o ponto focal da perseguição nazista porque representavam tanto o
socialismo como o capitalismo liberal, mesmo que isso possa parecer antagônico
nos dias de hoje.
"Havia uma
simbologia do judeu como representante, por um lado, do socialismo
revolucionário - porque Marx vinha de uma família judia convertida ao
protestantismo, assim como muitos bolcheviques", diz a historiadora Denise
Rollemberg.
"Por outro lado,
os judeus eram associados ao capitalismo financeiro porque os judeus
assimilados (que assumiram as culturas de outros países, para além da nação
religiosa) que viviam na Europa tinham uma tradição de empréstimos de dinheiro
e de negócios."
• 'Precisão científica'
A "precisão
científica" do extermínio de judeus na Alemanha nazista também dificulta
as comparações com a perseguição política no regime socialista soviético, na
opinião de Izidoro Blikstein.
"Há muitos
genocídios pelo mundo, mas nenhum igual ao nazismo, porque este era plenamente
apoiado por falsa teoria científica e linguística e levada até as últimas
consequências. A União Soviética também tinha campos de trabalhos forçados, mas
não existia uma doutrina para justificar isso", afirma.
"Mas há traços
comuns entre o nazismo o regime (soviético) de Stálin. A propaganda, por
exemplo, e o fato de que ambos eram regimes totalitários, que controlavam e
legislavam sobre a vida pública e também privada do cidadão", admite.
Além dos judeus, o
regime nazista também perseguiu democratas liberais, socialistas, ciganos,
testemunhas de Jeová e homossexuais - algo que, hoje, contribui para que o
nazismo seja classificado como extrema-direita, e o aproxima de grupos que
pregam contra a comunidade LGBT, contra imigrantes e contra muçulmanos, por
exemplo.
"Todo esse
projeto de repressão, censura, campos de concentração e extermínio nazista era
direcionado a quem estava fora do que eles chamavam de 'comunidade popular', o
povo alemão. Mas alemães que eram democratas liberais e socialistas também eram
excluídos por serem contrários ao projeto nazista e colocarem em risco essa
comunidade popular", explica Denise Rollemberg.
No entanto, para
Blikstein, a ideia de raça é tão central ao nazismo que, assim como não se pode
usar o projeto de revolução social para classificá-lo como
"esquerda", também é difícil defini-lo como a "direita" que
conhecemos hoje.
"Dizer apenas que
Hitler era um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que
direita ou esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça,
embora esse conceito seja discutível e pouco científico", diz.
• 'Crise de referências'
Uma recapitulação do
projeto e do regime nazista, de acordo com os especialistas no assunto, aumenta
a confusão: deveria haver igualdade social e distribuição de renda, mas
imigrantes, judeus, opositores políticos e até filhos "não
talentosos" de alemães seriam excluídos dela por serem "menos
puros"; o Estado prometia interferir mais na economia para benefício dos
cidadãos, mas empresas privadas tiveram os maiores lucros com a máquina de
extermínio e de guerra nazista; o movimento dizia defender os trabalhadores,
mas sindicatos trabalhistas foram extintos, assim como o direito de greve; o
socialismo marxista era considerado ruim, mas o liberalismo também.
Como seria possível
defender todas estas ideias ao mesmo tempo?
"Quando o partido
foi constituído, ele tinha uma vertente mais à esquerda e uma mais à direita.
No início, tinha um discurso bastante antiburguês. Mas ao assumir o poder na
Alemanha, o grupo à direita foi fazendo mais alianças com a burguesia e expulsando
o grupo à esquerda", diz a historiadora da UFF.
"Além disso, o
nazismo nasce no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira
Guerra. Muitos passaram de um lado para outro. Os valores muitas vezes vão se
embaralhar, e esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o
problema."
Entre historiadores, a
tentativa de traçar paralelos entre o nazismo e o fascismo europeus e o regime
stalinista na União Soviética também não é nova, segundo Rollemberg.
"Todos eles eram
regimes totalitários, mas o totalitarismo pode estar de qualquer lado. Hoje
entendemos que há o totalitarismo de direita, como o nazismo e o fascismo, e o
de esquerda, como o da União Soviética."
Fonte: BBC News Brasil
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