quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O autoengano do tempo breve

“Não há outra luz, nem outra noite. Este sol, esta lua e estas estrelas são os mesmos que os teus ancestrais aproveitaram e que manterão os teus netos.” Inspirada no romano Cícero, essa é uma das passagens mais emblemáticas contidas no ensaio Philosopher, c’est apprendre à mourir, de autoria do filósofo francês Michel de Montaigne.

Ele tratou de colocar em realce o exercício da reflexão como uma forma de afastar o medo diante do perecimento e como um modo de os seres humanos aprenderem a morrer, para que então desfrutassem da sabedoria de saber viver. Enfatizou: “o estudo e a contemplação, de alguma forma, retiram a nossa alma do corpo e, ao ocupá-la fora dele, geram uma situação de aprendizado e de semelhança com a morte; toda a sabedoria e todo o discurso do mundo, finalmente, confluem para esse ponto de nos ensinar a não temer a morte.”

Quando completou 62 anos, Simone de Beauvoir disse que começou a sentir os sinais do que era ser uma pessoa idosa, e então, para tratar do assunto com profundidade, escreveu o livro Velhice. As pessoas, ao saberem de seu interesse pelo tema, diziam-lhe que não se preocupasse, pois ela “não era velha”, ao que Beauvoir replicava: que estava a escrever o livro “exatamente para quebrar a conspiração do silêncio sobre o assunto.” Conspiração do silêncio, isso é mesmo assim: a invisibilidade cotidiana de idosos; as pessoas idosas que se apegam a posições de poder negando-se a abandonar o palco, muitas vezes, sob o apoio e o mutismo de interesses ocultos; o não dito de uma “indústria da juventude e da beleza” que promete o prolongamento da vida, e ignora os insuperáveis limites do tempo biológico da existência humana, o tempo breve.

É um dado adquirido que o desenvolvimento científico na medicina, um regime nutricional criterioso e um modo de vida equilibrado prologam a vida, mas a ideia de uma “eterna juventude”, além de ser irreal, estigmatiza a idade cronológica, fazendo com que determinados comportamentos sejam vistos como caricatos. E ridículos. É preciso perceber que, a certa altura da vida, vai sendo possível realizar uma retrospectiva do tempo vivido sem incorrer em autocomplacência, pois o testemunho individual converte-se no inventário das experiências de muitos, de todos que, pertencendo a uma geração, “dissolvem-se” nas características de uma época.

Há vários episódios que se revelam tristes na esfera pública, sob a perspectiva  das considerações a respeito do tempo e do aprendizado acerca do saber morrer. Dois são mais visíveis.

Um diz respeito ao ocaso físico e cognitivo de lideranças políticas que se negam a sair de cena. Contra todas as evidências, insistem num protagonismo que se lhes escapa, a todo momento, através do andar inseguro, dos esquecimentos constantes e do olhar disperso, enfim, através da perda de funcionalidades. Um segundo episódio refere-se ao comportamento de políticos e militares que são senhores das guerras, promotores de aniquilamentos humanos, déspotas de conquistas e da imposição de suas vontades pelas armas.

Em ambos os casos, os personagens desconhecem o significado do “aprender a morrer” e se comportam como se fossem viver para sempre. Agem nos marcos do tempo histórico, mas esquecem que o seu tempo de vida é biológico, isto é, cronologicamente, têm a finitude brevemente delimitada diante de si. Reina a conspiração do silêncio de um mundo que não aprendeu a (con)viver (Faixa de Gaza, Sudão, Haiti, Iêmen…), onde a barbárie, após anos de declínio secular, se tem manifesto de duas maneiras.

Em primeiro lugar, por meio do colapso dos sistemas de regras e comportamentos morais pelos quais as sociedades fazem a gestão das relações entre os seus membros e, em menor medida, entre os seus membros e os de outras sociedades. Em segundo lugar, por meio da reversão do que, mais especificamente, podemos chamar de projeto do Iluminismo, ou seja, o estabelecimento de um sistema geral das referidas regras de comportamento moral, consubstanciado nas instituições dos Estados e voltado ao progresso racional da humanidade.

Boa parte das atrocidades cometidas, nas atuais guerras, decorrem da combinação entre o colapso dos sistemas de normas morais e da reversão do ideário racional-humanista do Iluminismo. Colapso e reversão levados a cabo por agentes políticos que, ao ignorarem o tempo biológico, a vida concreta das pessoas,  não demonstram sensibilidade em relação às catástrofes humanitárias que muitas das suas ações produzem.

Em um de seus poemas, António Ramos Rosa diz-nos: “onde mora a memória obscura, onde/onde esse cavalo persiste um relâmpago de pedra/onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece.” Mesmo sem ter a percepção do fato, pode dizer-se que o trovador português realçou, com a sabedoria da agudeza poética, a atual conspiração do silêncio, que, não tomando em conta o tempo breve, ignora o saber (con)viver e é prisioneira do autoengano.

 

Fonte: Por Ivonaldo Neres-Leite, no Jornal GGN

 

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