terça-feira, 1 de outubro de 2024

'Mulheres que têm direito ao aborto vão à ilegalidade por medo de outras violências', diz fundadora do Projeto Vivas

"Mesmo quando previsto em lei, o acesso ao aborto no Brasil passa por obstáculos sociais, burocráticos e, em diversos momentos, violentos", pontua Rebeca Mendes, ativista e fundadora do Projeto Vivas – uma organização não governamental que ajuda, de forma multidisciplinar, a encurtar o caminho aos serviços de aborto legal no Brasil ou no exterior.

Este sábado, 28 de setembro, é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. A 7 dias do primeiro turno das eleições municipais, Mendes destaca, em entrevista ao Brasil de Fato, a responsabilidade dos municípios na garantia do serviço de saúde. "O papel do município, do Estado em geral, é garantir que as políticas adotadas pelo Ministério da Saúde sejam cumpridas. Cabe às prefeituras, também, implementar políticas que facilitam o acesso ao aborto legal. E a gente precisa estar atenta nessas eleições ao histórico dos candidatos nesse sentido", diz.

"Há candidaturas da extrema direita, como a tentativa de reeleição do Ricardo Nunes, por exemplo, que fechou um serviço de aborto legal em São Paulo. Até onde a gente sabe isso aconteceu por questões ideológicas, de um bolsonarismo que vem atuando em todo o país", cita a ativista.

O serviço ao qual Mendes se refere é o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, cuja oferta para o procedimento de aborto legal foi interrompida em dezembro de 2023. O hospital era referência no país e o único em São Paulo a realizar o procedimento em gestações acima de 22 semanas, uma necessidade frequente das vítimas de violência sexual que engravidam, especialmente crianças. O caso foi levado, em julho deste ano, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

Ainda segundo a ativista, a suspensão do serviço pelo hospital em São Paulo foi um dos maiores obstáculos que a ONG enfrentou em sua história recente. "A prefeitura alega que foi um fechamento estratégico, mas faltou um detalhe: avisar às mulheres que estavam em acompanhamento", conta. "A gente teve que fazer o processo de redirecionar essas mulheres para outros hospitais, porque a prefeitura não fez nada. E no Cachoeirinha, vale dizer, nós conhecíamos a equipe, confiávamos no procedimento. Há outros hospitais em São Paulo onde não há equipe ou há desculpas diversas para não fazer o aborto", reforça.

À época da suspensão do serviço do Vila Nova Cachoeirinha, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo informou, em nota, que "atende todas as demandas de procedimentos com determinação legal em observância à legislação".

"Nesse contexto, a gente vê muitas mulheres que têm direito ao aborto legal e preferem ir para a insegurança da ilegalidade por medo de sofrer outros tipos de violência. Violências institucionais, violências obstétricas", diz. "O maior entrave que temos no nosso país, sem dúvida, é a criminalização em si. Quando você coloca um cuidado de saúde num código penal, você afasta até mesmo aquelas que têm direito."

•        Projeto Vivas

No Brasil, o Vivas conduz casos previstos em lei aos hospitais habilitados para realizar o procedimento, o que nem sempre é um processo simples. "As mulheres entram em contato conosco pelo WhatsApp e aí, no momento do acolhimento, nós vemos se o relato que ela nos conta cabe em um dos três permissivos legais [no Brasil], ou se é uma situação em que a gente encaminha para outro país", diz. "Quando a gente detecta que é o caso, por exemplo, de violência sexual, nós fazemos todo o acolhimento e encaminhamos ela para o serviço mais próximo a ela ou ao serviço mais próximo com o suporte necessário para acolhê-la, dependendo das necessidades naquele momento."

Há ainda casos em que a interrupção da gravidez é proibida no Brasil, mas possível de maneira legal e segura em outros países da América do Sul. "Nesse caso, nós auxiliamos a viagem dessa pessoa ao país, como Argentina ou Bolívia, onde a legislação oferece mais suporte do que a nossa", explica Mendes, que também trabalha como advogada.

•        Luta pelo aborto legal

A ideia de criar um projeto que oferece auxílio e informação às pessoas que precisam abortar surgiu da experiência pessoal de Rebeca Mendes. Em 2017, ela virou símbolo de luta pela descriminalização do aborto quando conduziu sua necessidade de um procedimento seguro e legal no Brasil ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A liminar, elaborada em parceria com o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e Instituto Anis bioética, argumentavam pela dignidade, liberdade e saúde de Mendes. Ainda assim, foi negada pelo STF. A então estudante de direito então, auxiliada por outras entidades, realizou o procedimento de forma legal na Colômbia – a maneira como foi procurada por outras mulheres que desejam o mesmo levou, mais tarde, à criação do Projeto Vivas.

"Em 2017 eu estava no meio da faculdade de Direito, mãe de dois filhos de 6 e 9 anos, e acabei engravidando", conta. "Eu usava um contraceptivo que me deixava muito mal e decido, naquele momento, que vou fazer a troca da injeção que eu tomava para o DIU. Busquei o SUS e encontrei um processo super burocrático", relembra. Segundo Mendes, a simples escolha pelo método não bastava para a equipe de saúde. Foi necessário um longo acompanhamento que, entre idas e vindas, durou quase um ano. "O procedimento [de inserção do DIU] ia acontecer em dezembro. Em novembro, descobri que estava grávida", diz.

"Desde o primeiro momento eu sabia que eu não queria. Mas o problema maior, após a minha decisão, era fazer isso com segurança", relembra. Mendes pontua que, especialmente por ser mãe de duas crianças, não estava disposta a correr riscos em procedimento inseguro. Na busca por suporte entre ativistas, Mendes conheceu a professora Debora Diniz, antropóloga, pesquisadora e defensora da pauta de descriminalização do aborto no Brasil. "E aí ela me fala que o caminho que eu poderia seguir, que fosse o da legalidade, seria se eu entrasse com um pedido de total de urgência dentro da ADPF [Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental] 442, solicitando um aborto legal mesmo não estando dentro dos permissivos já existentes", recorda. Alguns dias depois, o pedido foi negado pela ministra Rosa Weber.

"Mas a atenção que o caso ganhou fez com que algumas organizações da América Latina me convidassem a conhecer o trabalho delas. Foi quando fui a Bogotá, na Colômbia, conversar com organizações. E lá eu descobri que apesar de ser um país tão religioso quanto o nosso, o meu caso, em que a gestação oferecia risco à minha vida, era legalizado". No dia seguinte Rebeca foi fazer o procedimento. "Foi algo tão simples, tão rápido, durou 15 minutos", recorda. "E então isso ficou muito na minha cabeça e gerou uma indignação enorme: como a minha vida virou um inferno em busca de um cuidado de saúde tão simples".

 

•        Pleno funcionamento do direito ao aborto está ameaçado na Argentina de Milei

A lei do aborto legal, seguro e gratuito na Argentina está sob ameaça no governo de extrema direita de Javier Milei. Além de tentativas de cancelar a lei no Legislativo, o governo a sabota e tenta desmontá-la ao não repor estoques de medicamentos e outros insumos necessários para garantir o acesso a quem precisa, segundo profissionais e ativistas argentinas que trabalham com o tema ouvidas pelo Brasil de Fato.

"O mais grave é a falta de insumos", diz Silvina Ramos, socióloga e pesquisadora titular do Projeto Mirar, um observatório do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes) da Argentina, que visa monitorar a implementação da Lei do Aborto Legal. "E se não temos insumos, não temos política [pública]. Sem insumos para o aborto, não temos como fazer os abortos."

A Lei pela Interrupção Voluntária da Gravidez (lei IVE/ILE), aprovada há quase quatro anos pelo Senado argentino, entrou em vigor efetivamente em janeiro de 2021 e dá um significado concreto para o Dia da Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, celebrado neste sábado (28).

O projeto, apresentado no governo do ex-presidente peronista Alberto Fernández, foi uma conquista de anos de luta popular. "Quando falamos de saúde integral, estamos falando de uma mudança promovida ao redor dos debates sobre a lei do aborto e do asseguramento de aspectos psicológicos, econômicos e sociais que envolvem a saúde completa", afirma Carlota Ramirez, diretora provincial de Equidade de Gênero na Saúde na província de Buenos Aires.

Ao Brasil de Fato, a funcionária que foi diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva da província de Buenos Aires, também denuncia que o governo pouco faz para estimular e proteger o direito ao aborto para as mulheres argentinas e vai além: "Quanto a métodos contraceptivos, o governo nacional envia muito poucos, e a província compra o necessário para abastecer os serviços".

De acordo com dados oficiais, não há nenhum motivo aparente para derrubar ou enfraquecer a aplicação de lei já que ela vinha dando resultados. Somente em 2023, a lei do aborto legal na Argentina forneceu 166.164 tratamentos seguros, adequados e gratuitos; em 2020, último ano antes da aprovação da lei, foram apenas 18.590.

Julia Martino, ativista da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, e integrante do movimento Incidencia Feminista, denuncia que o governo Milei apenas reparte o estoque já existente dos medicamentos misoprostol (provocador do esvaziamento uterino) e mifepristona (inibidor do hormônio progesterona), essenciais para os procedimentos.

"Por causa disso, todas as províncias estão com falta de insumos para garantir as interrupções da gravidez. Algumas delas, que têm recursos e vontade política, compram insumos e seguem garantindo as interrupções, mas as demais províncias não. Tudo depende do compromisso e da vontade dos profissionais e equipe dos serviços de saúde", disse ao Brasil de Fato.

Além disso, a lei possibilitou criar o Plano Nacional de Prevenção da Gravidez Não Intencional na Adolescência (Enia), programa aplicado nas províncias as taxas mais altas de gravidez na adolescência. O Enia foi um dos responsáveis pela redução de 50% da gravidez em adolescentes, e garantia assistência, orientações sobre saúde sexual e abusos e distribuição de anticoncepcionais para jovens e adolescentes. Este plano foi cortado por Javier Milei em abril de 2024.

•        Ataques no legislativo

Apenas dois meses após a chegada ao Poder Executivo, o partido do ultraliberal enviou para a Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2024, um projeto de lei (PL) que pedia a revogação do direito ao aborto promulgada no final de 2020. O PL da deputada do partido reacionário La Libertad Avanza, Rocío Bonacci, pretendia retroceder a legislação para antes do ultrapassado Código Penal de 1921, ao eliminar também o direito de aborto em caso de violência ou risco para a saúde da gestante.

A proposta previa pena de um a três anos de prisão para mulheres que abortassem, e pena de um a quatro anos para quem realizasse o aborto. Se houvesse morte da gestante, a pena seria de até seis anos. Profissionais de saúde que auxiliassem no procedimento, após a pena, não poderiam exercer a função profissional pelo dobro do tempo da pena. Milei apoiou diretamente o projeto em uma publicação no X em março deste ano.

O PL foi derrotado e o porta-voz presidencial passou a dizer que a derrubada da lei não estaria mais na agenda oficial do presidente, e que o foco do seu governo será, por enquanto, buscar o controle da inflação e superávit econômico.

A socióloga Silvina Ramos diz não acreditar que o governo Milei tenha força no Congresso para derrubar a lei, por ela ter "muita legitimidade, foi muito debatida na Argentina, e a sociedade acompanhou fortemente". "O governo Milei não tem sustentação política para tentar uma derrubada da lei", diz.

•        Como funciona a lei do aborto legal

A legislação possibilita realizar um aborto seguro e gratuito até a 14ª semana de gestação pelo próprio sistema de saúde da Argentina, que garante o acompanhamentos psicológicos e sociais pré e pós-aborto. A lei também prevê o fornecimento de medicamentos contraceptivos para toda e qualquer pessoa que possa gestar.

A lei, que faz parte do escopo da saúde pública, prevê um tratamento digno em qualquer centro de saúde do Estado, e deve fornecer todas as informações necessárias, além de respeitar todas as crenças, sem discriminação e com total confidencialidade.

Qualquer pessoa a partir de 16 anos não precisa de assistência ou autorização para realizar o aborto. Entre 13 e 15 anos, a assistência ou autorização será obrigatória apenas se o procedimento não for invasivo e com risco para a saúde, como, por exemplo, o uso do medicamento misoprostol. Agora, até os 13 anos, será necessário a assistência e acompanhamento de um maior de idade, que tenha uma relação socioafetiva com a criança que realizará o procedimento.

O método mais seguro, e de disponibilidade obrigatória em todos os centros de saúde durante o primeiro trimestre de gestação, é o uso do misoprostol, com distribuição e instrução de uso gratuitas, segundo a lei. Este medicamento também pode ser tomado com a mifepristona; os dois fármacos combinados aumentam a efetividade e segurança do procedimento legal. O método alternativo ao medicamentoso é a Aspiração Manual Endo Uterina (Ameu), realizado apenas nos centros de saúde e hospitais, por ser uma intervenção cirúrgica que requer anestesia.

"Os resultados [da implementação] se mostraram muito positivos. Foram duplicados os serviços que fornecem o procedimento em todo o país [de 907 para 1.982], aumentaram as quantidades de tratamentos com misoprostol e a aprovação de comercialização da mifepristona. Tudo para oferecer serviços apropriados e de qualidade", ressalta Silvina Ramos.

A pesquisadora também ressaltou a importância dos laboratórios públicos de produção do misoprostol que existiam no país, e eram responsáveis por suprir a maior fatia do medicamento para as 24 províncias.

•        Maré verde

A chamada “maré verde”, marchas por direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, tomaram as ruas do país em 2018. Este chamado que reuniu milhares de pessoas pelo país, deu nome e inspirou outros movimentos de países latino-americanos por direito de escolha sobre o próprio corpo.

A "maré verde" refere-se aos lenços verdes usados na Argentina durante os protestos, e simboliza mulheres que lutam por equidade de gênero e direito de escolha que vivem em um continente onde três a cada quatro abortos são considerados inseguros, segundo pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A atividta Julia Martino lembra que a sanção da lei do aborto legal foi produto de um longo processo de luta coletiva das argentinas.

"As mulheres deste país estão organizadas há muito tempo, e fomos, aos poucos, conquistando direitos. Em 20 anos de atividade, a Campanha foi uma articulação fundamental para o sucesso da lei IVE, através de diversas estratégias: a apresentação do projeto de lei, o diálogo com outros movimentos como o dos direitos humanos, do sindicalismo, das juventudes e das mulheres políticas. Foi uma estratégia de comunicação e mobilização."

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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