Anatomia de um apagão: A crise da
privatização dos serviços públicos
O apagão em São Paulo
e o crescente movimento global de reestatização de serviços essenciais
evidenciam as falhas de um modelo de privatização que prioriza o lucro sobre o
bem-estar público
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São Paulo, a maior
metrópole da América Latina, mergulhou novamente na escuridão em outubro
passado, marcando o terceiro grande apagão em menos de um ano. Mais de 3
milhões de moradores ficaram sem energia, não por algumas horas, mas por dias
consecutivos, evidenciando a fragilidade de um serviço essencial. No centro da
crise, figura a Enel, multinacional italiana que, desde a aquisição da AES
Eletropaulo em 2018, é responsável pela distribuição de energia na capital
paulista. A empresa tem sido alvo de severas críticas, com acusações de
negligência e má gestão que ganham cada vez mais força entre a população e
especialistas.
Em 1999, a Eletropaulo
foi privatizada apenas 18 anos após sua fundação. Na época, o Governo do Estado
de São Paulo justificou a venda pela situação financeira crítica da companhia,
marcada por um elevado endividamento que impedia novos investimentos e comprometia
a qualidade do atendimento. O processo, marcado por controvérsias, foi
viabilizado com recursos públicos através de financiamento do BNDES, e resultou
na venda da estatal ao consórcio Lightgás, liderado pela empresa americana AES,
pelo valor mínimo de R$ 1,7 bilhão estipulado no edital.
A venda, contudo, teve
desdobramentos problemáticos: o consórcio não quitou integralmente a dívida,
que deveria ser paga em nove parcelas. Em 2004, o BNDES perdoou quase 200
milhões de dólares em juros acumulados em troca de uma promessa de pagamento da
dívida principal, um acordo que levantou ainda mais dúvidas sobre o os rumos
dessa privatização. O cenário subsequente incluiu o sucateamento da
infraestrutura, a falta de investimentos estratégicos, o fechamento de agências
e cortes profundos no quadro de funcionários, enquanto a dívida da companhia
continuava a crescer, atingindo R$ 5,5 bilhões, dos quais R$ 1,2 bilhão eram
devidos ao próprio BNDES.
Entre 1998 e 2001, a
AES Eletropaulo destinou US$ 318 milhões em dividendos para o exterior,
beneficiando seus acionistas estrangeiros, mesmo com a rede elétrica precisando
urgentemente de modernização e manutenção. Esse fluxo de dividendos contrastava
com a crise operacional local e expôs um dilema central da privatização: a
prioridade aos acionistas internacionais em detrimento dos investimentos
necessários. Em 2001, a companhia reportou um lucro de US$ 273 milhões, mas, já
no ano seguinte, apresentou um prejuízo de US$ 3,5 milhões, refletindo uma
gestão financeira instável e incapaz de gerar segurança institucional.
Esse histórico de
gestão precária culminou, uma década depois, em uma explosão de insatisfação
entre os consumidores. Em 2010, os efeitos da privatização ficaram evidentes
nos dados: o Procon de São Paulo registrou um aumento significativo nas queixas
contra a AES Eletropaulo, totalizando 3.715 atendimentos entre janeiro e agosto
daquele ano. Esse número foi 28 vezes superior ao de reclamações contra a CPFL,
segunda empresa mais mencionada, revelando uma discrepância alarmante e a
gravidade dos problemas enfrentados pelos clientes da AES Eletropaulo. Com uma
infraestrutura cada vez mais sucateada, redução de funcionários e fechamento de
agências, a AES Eletropaulo se transformou em um símbolo das falhas do modelo
de privatização que, em vez de priorizar o interesse público e a qualidade do
serviço, favoreceu a transferência de dividendos a acionistas internacionais,
mesmo diante de uma crise operacional local.
Em 2018, diante de uma
situação financeira precária e sob forte pressão pública, a AES decidiu vender
sua participação na Eletropaulo, justificando a decisão como parte de uma
estratégia de reciclagem de capital e foco em operações mais lucrativas. Naquele
ano, a italiana Enel, uma gigante do setor elétrico com controle majoritário do
governo italiano, assumiu a operação da Eletropaulo. Com uma presença marcada
no Brasil, incluindo concessões no Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo, a Enel
passou a atender mais de 18 milhões de pessoas apenas na região metropolitana
de São Paulo.
Na ocasião do
fechamento do negócio, o presidente da Enel no Brasil anunciou um plano de
investimento de mais de 900 milhões de dólares até 2021, com a promessa de
reverter a precariedade do serviço, que, segundo a companhia, era consequência
da falta de investimentos adequados pela Eletropaulo. No entanto, ao longo
desse período, a Enel investiu aproximadamente 600 milhões de dólares, valor
consideravelmente abaixo do prometido. Em contrapartida, a empresa dobrou seus
lucros e reduziu seu quadro de colaboradores em 35%, levantando questionamentos
sobre o compromisso com a qualidade do serviço e o impacto desse modelo de
gestão no atendimento ao consumidor.
Desde que a Enel
assumiu a Eletropaulo, as reclamações de consumidores não pararam de crescer.
Apagões prolongados e dificuldades para obter atendimento eficiente
intensificaram o volume de queixas registradas pelo Procon, expondo a
discrepância entre as promessas de melhorias e a realidade enfrentada pela
população. Esse quadro motivou a Assembleia Legislativa de São Paulo a
instaurar, em 2023, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar
os constantes problemas de interrupção no fornecimento de energia, as falhas no
atendimento ao consumidor e questionamentos sobre a política de cobrança,
agravados durante e após a pandemia, período em que as reclamações dispararam.
O episódio crítico de
3 de novembro de 2023, que causou um apagão de grandes proporções, intensificou
ainda mais o escrutínio sobre a Enel. A lentidão no restabelecimento dos
serviços em diversas áreas da cidade reforçou as críticas à empresa e alimentou
as investigações da CPI, destacando a precariedade da infraestrutura e a falta
de investimentos proporcionais ao lucro obtido pela companhia.
O relatório inicial
apontou que a ENEL São Paulo lidera o número de queixas de consumidores devido
à falta de confiabilidade no serviço de fornecimento de energia, com destaque
para os constantes apagões e atrasos no restabelecimento do serviço. Esse problema
se intensificou após o grande apagão de novembro de 2023. As audiências da CPI
trouxeram à tona depoimentos alarmantes: apenas 66% da infraestrutura da Enel
atende aos padrões de desempenho estabelecidos pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL). Esse índice indica que 34% da área de concessão da Enel opera
abaixo das normas mínimas de qualidade e continuidade exigidas, revelando um
déficit significativo no atendimento e uma rede de distribuição fragilizada,
incapaz de garantir confiabilidade para os consumidores.
O documento da CPI
criticou duramente a manutenção da infraestrutura da Enel, apontando problemas
como a insuficiência de equipes de campo e a má gestão da vegetação próxima às
linhas de transmissão. A falta de manejo adequado de árvores ao redor dos cabos
elétricos foi identificada como um fator crítico para quedas de energia,
especialmente em eventos climáticos extremos, quando galhos e árvores entram em
contato com as linhas, gerando curtos-circuitos e interrupções no fornecimento.
A ausência de manutenção preventiva e a limitação de equipes especializada para
agir prontamente nessas situações agravam os riscos e comprometem a capacidade
da Enel de assegurar um fornecimento contínuo de energia.
A Enel também foi alvo
de numerosas reclamações devido a cobranças irregulares, muitas vezes baseadas
em leituras estimadas devido a supostos “impedimentos” para acessar os
medidores. Esse método gerou cobranças inesperadas e, em alguns casos, valores
muito acima do esperado. Diversos consumidores relataram ainda ter recebido
contas zeradas com a justificativa de “análise de cobrança”, para depois serem
surpreendidos com cobranças retroativas consideráveis, sem explicações
adequadas ou prévia notificação.
A CPI, ao expor a
limitação das práticas de cobrança e a deficiência no atendimento, apontou uma
questão central: até que ponto o modelo de concessão privado, com prioridade
nos interesses de acionistas internacionais, realmente atende às necessidades
de infraestrutura e assistência dos cidadãos?
• O dilema da privatização nos serviços
essenciais
O apagão em São Paulo
e a ineficiência da Enel ilustram as consequências de um processo de
privatização acelerado e desenfreado nas últimas décadas, promovido pela
promessa de que o setor privado traria mais eficiência e qualidade aos serviços
públicos essenciais. Essa lógica, amplamente defendida por economistas e
políticos neoliberais, não se concretizou. Em vez de um serviço mais acessível
e eficiente, o que se observa são aumentos tarifários constantes, deterioração
progressiva no atendimento e uma insatisfação popular crescente.
Um dos princípios
centrais da retórica neoliberal é a crença de que a gestão privada é
naturalmente mais eficiente que a pública. No entanto, a realidade dos serviços
essenciais mostra que essa lógica falha em setores como energia, água,
saneamento e transporte, onde o lucro imediato não pode guiar a prestação de
serviços. Nesses setores, o objetivo principal deve ser o atendimento universal
e acessível à população. Contudo, a privatização transfere a gestão desses bens
comuns para empresas concentradas na maximização dos lucros, resultando
frequentemente em precarização dos serviços e exclusão das parcelas mais
vulneráveis da sociedade.
O movimento global de
valorização do capital privado na infraestrutura, impulsionado pelo que a
economista Daniela Gabor chama de Consenso de Wall Street, incentiva governos a
promoverem grandes projetos de infraestrutura financiados por capital privado,
transformando o setor público em facilitador de investimentos. Esse modelo
subordina o Estado ao capital financeiro, limitando sua autonomia para
implementar políticas públicas independentes e resultando na mercantilização do
desenvolvimento social e econômico.
Na prática, o Consenso
de Wall Street se materializa por meio de reformas que transformam o Estado em
um ente “de-risking”, cuja função é diminuir os riscos dos investimentos
privados através de parcerias público-privadas e reformas fiscais e regulatórias,
além de subsídios e garantias. Para viabilizar esses projetos, utiliza-se uma
estrutura híbrida de financiamento que combina dívidas, ações, garantias e
seguros, alavancando capital público para atrair o privado. Em instituições
como o BNDES, o Estado aloca recursos e assume riscos iniciais, tornando os
projetos mais atrativos ao mercado financeiro. Essa abordagem expõe a
infraestrutura pública à lógica de mercado, priorizando a rentabilidade sobre a
acessibilidade e a qualidade dos serviços essenciais.
A Enel, em São Paulo,
é um exemplo claro dessa lógica aplicada ao setor de energia. Desde a
privatização, a empresa não apenas deixou de realizar investimentos essenciais
para a estabilidade do serviço, mas também impôs aumentos tarifários
significativos que pesam sobre o orçamento das famílias, sem oferecer a
correspondente melhoria na qualidade dos serviços prestados. Os apagões
frequentes, o aumento das tarifas e a crescente fragilidade do sistema revelam
um modelo que, enquanto maximiza lucros para investidores, deixa de lado as
necessidades essenciais da população.
O caso da Enel
evidencia a contradição central da privatização dos serviços essenciais: ao
transferir a responsabilidade pela gestão de bens públicos para empresas
guiadas pelo lucro, o Estado reduz seu papel de provedor e regulador, enquanto
o capital financeiro transforma os serviços básicos em mercadorias. É um modelo
que, empenhado em alcançar rentabilidade, compromete a garantia de qualidade,
acessibilidade e universalidade dos serviços públicos, deixando a população
exposta a um sistema em que as demandas sociais são secundárias frente aos
interesses dos investidores.
• Comparando com outras experiências:
Lições Internacionais
Um movimento global de
re-nacionalização de empresas de energia tem ganhado força em países como
Estados Unidos, Austrália, Espanha, França e Reino Unido, que começam a
reavaliar os efeitos da privatização no setor energético. Um exemplo recente
dessa mudança é a re-nacionalização da EDF, principal fornecedora de energia da
França. No primeiro ano após a reestatização, a companhia registrou lucros
superiores a dez bilhões de euros, contrastando fortemente com o prejuízo de
dezessete milhões de euros reportado no ano anterior.
A decisão do governo
francês de retomar o controle da EDF veio em resposta à disparada das tarifas
após o início da guerra na Ucrânia. Sem sucesso nas negociações com os
controladores privados para conter os aumentos, o governo optou por comprar as
ações da companhia, visando recuperar o controle sobre um serviço essencial e
estabilizar os preços para os consumidores.
No Reino Unido, os
setores de energia e saneamento foram privatizados nos anos 1980, durante o
governo de Margaret Thatcher, sob a promessa de serviços mais eficientes. No
entanto, o que se seguiu foram décadas de desastres ambientais, aumentos
tarifários constantes e investimentos insuficientes. Em 2019, um movimento
crescente de reestatização começou a ganhar força, com o Partido Trabalhista
defendendo a retomada do controle público de serviços essenciais, como
transporte, saneamento e energia. A insatisfação popular com os resultados da
privatização impulsionou um debate nacional sobre os impactos negativos dessa
política. A recente reestatização da National Grid, operadora do sistema
elétrico, foi justificada pela necessidade de reduzir tarifas e aumentar a
segurança energética diante das mudanças climáticas.
Em outros países que
ainda mantêm sistemas de energia sob controle estatal, como México, China e
África do Sul, o discurso político também acompanha essa transição, com uma
redução significativa da ênfase na privatização. Isso ocorre devido aos
desafios e consequências observados nas experiências de privatização ao redor
do mundo. A necessidade de segurança energética, amplificadas pelas mudanças
climáticas e instabilidades geopolíticas, estão levando esses países a
favorecer uma gestão estatal que priorize o acesso universal, a
sustentabilidade e a estabilidade dos preços, em vez de depender de
investidores privados que buscam lucros imediatos.
• A necessidade de repensar o modelo
O apagão em São Paulo
e o crescente movimento global de reestatização de serviços essenciais
evidenciam as falhas de um modelo de privatização que prioriza o lucro sobre o
bem-estar público. As experiências de países como França e Reino Unido oferecem
lições valiosas para o Brasil. É hora que governos e sociedade civil repensem o
papel do setor público e considerem alternativas que assegurem o acesso
universal e de qualidade a esses serviços, colocando as necessidades da
população acima dos interesses financeiros. Caminhos como a reestatização e a
criação de modelos de gestão pública participativa podem proporcionar maior
transparência, controle social e eficiência, tratando serviços essenciais como
direitos fundamentais, e não como mercadorias. Assim, o Brasil teria uma chance
de corrigir o curso atual, assegurando que a infraestrutura pública atenda ao
interesse coletivo e contribua para uma sociedade mais justa e inclusiva.
Fonte: Por Tamara
Zambiasi, no Le Monde
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