A disputa pelos recursos públicos
O contexto de
reconstrução nacional do Estado e das políticas públicas no Brasil, após a
catástrofe autoritária e ultraliberal desencadeada desde 2016, exige a
combinação do fortalecimento das instituições representativas da democracia e a
reconstrução das instâncias da democracia participativa, criadas após a
Constituição Federal de 1988.
A partir da vitória de
Lula, o Governo Federal vem encaminhando, juntamente com atores da sociedade
civil e as comunity politics, a reconstrução das esferas socioestatais de
participação social que foram destruídas ou enfraquecidas desde 2016, e
principalmente durante o governo de Jair Bolsonaro. Foram retomados conselhos
nacionais e conferências, e institucionalizada a articulação interconselhos,
todas instâncias importantes para a democratização da gestão governamental e a
efetivação de políticas ligadas aos direitos da cidadania.
A instauração do
Conselho de Participação Social (CPS), vinculado ao Gabinete de Transição, que
funcionou como órgão de assessoria ao presidente eleito, indicou linhas gerais
para a relação entre o novo governo e a sociedade civil, assim como as respectivas
políticas de participação a serem efetivadas em nível federal.
No âmbito da
estratégia de participação social, após a vitória democrática, o Orçamento
Participativo Nacional (OPN) surgiu como uma possibilidade real, apesar da
complexidade de funcionamento dessa modalidade na escala federal. O
Observatório das Metrópoles e a Rede Brasileira dos Orçamentos Participativos
(RBOP) apresentaram uma proposta, no início de 2023, para implementá-lo, e veem
promovendo atividades para a retomada dos Orçamentos Participativos na agenda
política das cidades, já que é decrescente o número de municípios que adotam
essa prática no país, um paradoxo em relação à expansão internacional, conforme
aponta o Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos.
O tema do Orçamento
Participativo Nacional foi abordado na campanha eleitoral de 2022, quando Lula
o apresentou em contraponto ao “orçamento secreto. A prática intransparente de
congressistas deveria ser substituída pela abertura democrática de participação
e controle da sociedade. Em 2023, sob o impacto da vitória democrática, a
realização do Plano Plurianual Participativo (2024-2027), pelo Governo Federal,
demonstrou que a escala nacional não impediu a participação social na
elaboração da proposta orçamentária.
Foram 4 milhões de
acessos no Brasil Participativo, na internet, sendo 34.310 participantes nas
plenárias presenciais das 27 capitais, 1,4 milhão de inscritos na plataforma
digital, 8.254 propostas e 1,5 milhão de votos. O Brasil deu mais uma
demonstração de ousadia na invenção democrática, sendo o único país de grande
escala geográfica a realizar esse tipo de prática para definir prioridades de
políticas, em parceria com organizações e movimentos sociais e de governo
estaduais.
Portanto, a negativa
do Governo Federal em seguir adiante, a partir de 2024, no processo de
elaboração participativa do Projeto de Lei Orçamentária (PLO) em nada tem a ver
com as possíveis dificuldades do salto de escala (scaling-up) nas práticas dos
Orçamentos Participativos. Ressalte-se, ainda, contra o argumento das
dificuldades da big escala, as iniciativas inovadoras de Orçamentos
Participativos que já ocorreram e vem ocorrendo hoje em estados da Região
Nordeste, com destaque para o caso consolidado da Paraíba, desde 2011, sob
direção e protagonismo do PSB, a partir da experiência de João Pessoa.
Essa iniciativa foi
seguida pelos estados do Maranhão e do Piauí (ambos governados pelo PT), além
do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, que agora decidiram iniciar o processo.
Todavia, não conta com o governo do Ceará, apesar da experiência do atual governador
na coordenação do Orçamento Participativo de Fortaleza, há alguns anos. São
modelos participativos distintos, em que a incidência popular nas decisões é
ainda restrita a uma pequena parcela dos recursos, mas que demonstram o quanto
a democracia participativa, seja presencial ou virtual (ou híbrida), é possível
mesmo em escalas que vão além dos municípios, a exemplo do que já fez
pioneiramente o Rio Grande do Sul durante o governo de Olívio Dutra (PT,
1999-2002).
A estratégia política
do governo federal em não abrir a discussão do orçamento com a sociedade civil
tem efeitos negativos, tanto em nível federal como nos demais níveis
subnacionais de governo. Em primeiro lugar, porque a disputa dos recursos
públicos vem ocorrendo de forma restrita à institucionalidade dos poderes do
Executivo, do Legislativo e do Judiciário, campo em que o governo federal não
tem relação de forças favoráveis.
Nessa situação, é
claro que os setores dominantes do mercado, da mídia empresarial corporativa e
no Congresso Nacional tem maior poder de influência. O campo popular está fora
desse jogo de cartas marcadas. Trata-se de uma estratégia do governo Lula que repete
o primeiro ciclo dos governos liderados pela esquerda, nos quais se optou pela
inexistência de qualquer programa mobilizador da população e dos segmentos mais
atuantes da sociedade civil. É necessário lembrar que apesar do Orçamento
Participativo Nacional também constar do programa eleitoral na campanha de
2002, o ensaio participativo realizado em 2003 também foi abortado, baseado no
falso argumento de que ele poderia incentivar o excesso de demandas populares
que seriam frustradas pelas limitações orçamentárias.
Agora, mais uma vez, o
projeto de governo da esquerda repete a estratégia que supõe a passividade dos
setores subalternos. Ocorre que diferentemente do ciclo da década de 2000,
quando o crescimento econômico garantiu apoio popular, o modelo tradicional de
democracia aparece hoje aos olhos dos cidadãos/as fortemente desgastado e pouco
confiável, legado também da década de crise econômica iniciada em 2014, dos
episódios reais de corrupção, da demonização da política a partir de 2016, além
da destruição das políticas provocada pelo neoliberalismo do qual se alimenta a
extrema-direita.
É visível o
crescimento dos sentimentos antipolítica e antissistema na sociedade
brasileira. Nesse contexto, o Brasil caminha para o parlamentarismo, com
passividade de atores progressistas da sociedade civil e dos movimentos
sociais, que parecem alheios aos fatos.
Considerando a vasta
experiência dos Orçamentos Participativos em centenas de metrópoles e cidades
no país, durante as últimas três décadas, é possível afirmar que, se efetivada
e bem conduzida, de forma transparente e em conjunto com atores da sociedade
civil, a gestão orçamentária participativa poderá se constituir em importante
contranarrativa no enfrentamento do retrocesso representado pela captura dos
recursos públicos, pelas forças fisiológicas e patrimonialistas no Congresso
Nacional, articuladas localmente.
Os cerca de R$ 50
bilhões das emendas impositivas já se fizeram sentir nas eleições municipais
desse ano, provocando desequilíbrio na competição devido aos recursos
disponibilizados às prefeituras, elos das redes conservadoras do Congresso
Nacional.
Nesse contexto de
retrocessos, um Orçamento Participativo bem conduzido poderá contribuir para a
criação de uma arena pública de discussão sobre a geração e o uso dos recursos
públicos, onde atores da sociedade civil possam se posicionar e participar ativamente
da disputa concentrada nessa parte fundamental do coração do Estado. O
Orçamento Participativo Nacional poderá ajudar uma parte da sociedade
constituída por organizações e movimentos sociais a entrar nesse jogo de
garroteamento e cerco do Governo Lula.
Veja-se que a ação
justa e correta do STF – ao entrar nessa disputa estratégica das emendas –
forneceu justificativas para ações no Congresso Nacional que pretendem retirar
poder dessa instância da república, caminho utilizado pela extrema-direita nos
processos de desdemocratização que estão em curso em vários lugares do mundo.
Os Orçamentos Participativos não são panaceia para os males da democracia
representativa, mas inegavelmente eles contêm enormes potenciais
democratizantes na relação entre o Estado e a sociedade.
Como mostram pesquisas
acadêmicas, nas últimas décadas, nenhum procedimento de inovação democrática no
mundo contém maior potencial de inclusividade política e social do que os
Orçamentos Participativos, quando eles são para valer, algo que também se aplica
ao seu potencial redistributivo em bem-estar urbano. Eles permitem incluir os
setores populares de modo ativo na decisão de políticas, reconfigurando as
bases em que se dá o exercício do poder e a hegemonia de classes na sociedade.
Também permitem
politizar questões que são aparentemente técnicas, como a política fiscal e as
formas justas de financiamento das políticas públicas, tema de alto relevo para
a eficácia da democracia na provisão de bem-estar, que em geral fica restrita aos
meios técnicos governamentais e às elites de especialistas dos mercados, além
dos parlamentares.
Uma segunda
contribuição democratizante do Orçamento Participativo Nacional diz respeito ao
seu provável efeito estimulante junto aos governos subnacionais, em especial os
municípios, articulando o uso dos recursos federais repassados e induzindo o
aumento da participação, da transparência e do controle social nas cidades,
inclusive sobre as emendas impositivas, que se generalizaram nas casas
legislativas do país.
Como mostrou o ciclo
de expansão dos Orçamentos Participativos, nos anos 1990/2000, muitas
prefeituras do campo progressista e mesmo liberal-conservador, assim como a
atuação de atores civis locais, são incentivadas a adotar práticas mais
democráticas e participativas quando outras instituições também o fazem. Sem
dúvida, o Orçamento Participativo Nacional poderá exercer um
efeito-demonstração de apoio à resistência democrática por meio do estímulo à
disseminação de Orçamentos Participativos locais e estaduais, que precisam de
apoio quando a própria democracia liberal se encontra ameaçada.
O possível temor de um
Orçamento Participativo de “confronto” com o Congresso Nacional não se
sustenta, haja vista a aprovação do PPA participativo, em 2023. Além do mais,
renunciar de antemão às divergências naturais sobre as melhores formas de
elaboração dos orçamentos pelos governos é renunciar à disputa de hegemonia dos
projetos políticos. É capitular diante dos projetos autoritários, elitistas e
neoliberais.
Por outro lado, no
contexto em que se aprofunda o sequestro dos recursos para fins eleitorais e de
poder, o quadro é de passividade dos movimentos sociais e atores civis do campo
democrático e progressista, diminuindo sobremaneira a margem de manobra do governo
federal. Esse quadro de fragilidade contrasta com o ativismo e a mobilização
dos setores sociais e políticos da extrema-direita, que detém a iniciativa
pública apesar da derrota eleitoral em 2022 e do fracasso do golpe em janeiro
de 2023.
Nenhum ator civil
relevante dos movimentos sociais apresentou até agora alguma iniciativa de
mobilização em defesa dos recursos públicos em bases transparentes,
constitucionais e republicanas. O golpe da captura dos recursos do Executivo
parece ser apenas uma briga entre os poderes. Sem dúvida, a crise social, a
precarização do trabalho e a fragmentação da sociedade de consumo reforçada
pelo hiper individualismo digital está impactando a capacidade de ação coletiva
dos movimentos e organizações sociais do campo progressista, mas isso não
explica por si só a passividade observada diante do sequestro dos recursos que
faltam às políticas públicas e que estão modificando o sistema político para o
parlamentarismo, sem mudar a Constituição Federal.
Esse quadro exige que
os atores civis do campo progressista e de esquerda reajam, sob pena de os
retrocessos da democracia serem irreversíveis, amarrando estrategicamente o
país na aliança do atraso fisiológico de direita – nas redes que unem
prefeituras e congressistas – com o projeto neoliberal das elites sob a
hegemonia ideológica da extrema-direita. Acreditamos que uma das formas
possíveis dessa reação – sem panaceia – é o aprofundamento da democracia,
utilizando o que o Brasil criou e exportou ao mundo, o Orçamento Participativo.
Fonte: Por Luciano
Fedozzi, em A Terra é Redonda
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