segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Vinicius de Andrade: Colégio cívico-militar - uma estratégia da extrema direita

Projeto do governo Bolsonaro não tem qualquer preocupação pedagógica, se ancora na problemática da violência escolar, se maquia de colégio militar, mas é um instrumento de uma agenda muito bem calculada.

Você sabia que escola militar e colégio cívico militar não são a mesma coisa?

Eu mesmo, honestamente, confundia os dois conceitos até poucos dias atrás e aprendi a diferença em uma conversa com um amigo. Compartilhei com ele o vídeo de uma vereadora criticando o projeto de transformar um colégio de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em cívico-militar.

Disse a ele que não entendia o incômodo dela, pois eu mesmo já tive a oportunidade de visitar dois colégios militares do país e fiquei positivamente admirado. Além disso, é sabido que estes apresentam positivos resultados em índices de educação e aprovações em universidades de ponta. Foi quando ele me explicou que escola militar e colégio cívico-militar não são a mesma coisa.

Fiquei constrangido por ter me confundido por tanto tempo, mas tudo fez sentido rapidamente. A narrativa política da extrema direita acerca dos colégios cívico-militares me confundiu. Nesta coluna, começarei pontuando, de modo simplista, a diferença entre ambos e depois irei discorrer, com mais calma, sobre a questão política por trás.

•        Qual a diferença entre colégio militar e colégio cívico militar?

No Brasil, há 14 colégios militares. Em 1889, foi criado o Imperial Colégio Militar da Corte, que, após a Proclamação da República, viria a se tornar o Colégio Militar do Rio de Janeiro. Eles são geridos pelo exército brasileiro e historicamente apresentam bons resultados em termos de aprendizagem e em aprovações nos vestibulares. Não coincidentemente, muitos deles têm expressivas filas de espera, pois os pais associam conseguir matricular seus filhos com possibilitando um futuro próspero para eles.

Já os cívico-militares remontam a um passado mais recente e estão dentro de um contexto político muito específico: o governo de Jair Bolsonaro. O projeto nasce com o decreto presidencial de número 10.004, publicado no Diário Oficial da União, em setembro de 2019, cujo intuito era implantar o modelo em todo o território nacional.

Este modelo se pauta em inserir em colégios regulares membros das forças armadas que estejam na reserva, ou seja, aposentados. Quando isso não for possível, o Estado designará policiais militares ou membros do corpo de bombeiros. O financiamento para este modelo vem das secretarias estaduais de Segurança Pública e das próprias secretarias estaduais de Educação.

•        Narrativa tendenciosa para fortalecer a agenda

É sabido que no Brasil há altos índices de violência dentro dos colégios, entre os próprios alunos e também para com o corpo docente. Alinhado a isso, é bastante midiático os casos de indisciplina. Este cenário foi o pano de fundo para legitimar o projeto dos colégios cívico-militares.

Não estou banalizando a importância de pensarmos em uma política que trabalhe a questão da violência e da indisciplina. São pautas importantes e não triviais. Meu incômodo é o seguinte: a solução precisa, obrigatoriamente, envolver a entrada de policiais dentro dos colégios? Realmente não havia nenhuma outra opção de abordagem para a problemática?

A  narrativa de veiculação não poderia ser pautada em "projeto de colocar policiais dentro dos colégios para garantir a ordem”, afinal soa agressivo demais e seria mais difícil contar com a adesão popular. A estratégia, inteligente- diga-se de passagem, foi maquiar o projeto dos colégios cívico-militares com a imagem dos colégios militares, pois assim a aceitação seria mais fácil, dado o grande nível de reputação dos colégios militares.

No entanto, friso novamente, as propostas não são iguais. Os colégios militares existem há anos e contam com um sólido projeto pedagógico e com um time bastante preocupado com a aprendizagem do corpo discente. Já o outro, nasceu no governo de um presidente que notoriamente não se importa com a educação e cuja última preocupação, para não dizer que ela é inexistente, é para com a aprendizagem dos estudantes.

•        Qual a real intenção?

Na política, nenhum passo é aleatório. Todos compõem uma estratégia, e esta integra uma agenda. Claro que há estratégias ruins e com passos não sólidos, mas que, ainda assim, integram um objetivo maior. Isso na direita e na esquerda, na extrema direita e na extrema esquerda. É um jogo político.

O problema é que a extrema direita tem um longo histórico de não se importar verdadeiramente com a educação, no sentido da aprendizagem dos estudantes, da diminuição das desigualdades, do aumento da mobilidade social e do desenvolvimento do Brasil.

A educação não é a pauta de maior relevância para eles e, quando se aventuram na pasta é, de modo bastante simplista, para falar o que não sabem, se pautando em achismos e em fake News - mas nunca, repito, nunca, de modo aleatório ou ingênuo. Há sempre uma agenda por trás e uma estratégia para a operacionalizar.

Neste caso não é diferente. A aprendizagem dos estudantes não é o que pautou a criação do projeto dos colégios cívico-militares. Vou além e afirmo que nem mesmo a problemática da violência nos colégios, pois ela apenas criou uma oportunidade para que o projeto fosse concebido e aprovado.

Aqui provoco você, querido leitor, e pergunto: qual a intenção do governo de extrema direita com a inserção de policiais nos colégios?

Para mim, há objetivos no curto e no longo prazos. No curto, para serem agentes importantes para a implementação dos ideais e das pautas da extrema direita dentro dos colégios, ideais estes que não muito dificilmente desrespeitam as minorias e os direitos humanos. Para ilustrar: combate à famosa "doutrinação” dos professores, por exemplo.

No longo prazo, creio que pretendem criar um precedente para que, em algum momento, os colégios tenham também suas gestões e outras instâncias tomadas pela força militar. Absurdo? Creio que não. Já perdi a conta da quantidade de vezes que ouvi pessoas dizendo que a ditadura deveria voltar. Há uma ideia de que os militares são os únicos capazes de trazer ordem.  E a população geral, por falta de informação, muitas vezes associa a origem com as agendas da extrema direita, pois estes fazem um excelente trabalho nas mídias sociais.

 

•        Classe trabalhadora vulnerável e precarizada abre espaço para discurso fácil da extrema direita. Por Jordana Dias Pereira

Apesar do que se propaga nos veículos tradicionais, a “polarização” não é uma novidade no Brasil. André Singer (professor da USP) em um artigo de 2021 mostra em gráficos a evolução desde 1985 até 2020 de dois indicadores: intenção de voto dos candidatos do PSDB e PT; e autodeclaração de direita versus esquerda. O que esses indicadores mostram como padrão nos 40 anos de Nova República? Justamente, a polarização.

O período que saiu do “padrão” foi dos governos Lula 2 e Dilma 1 (2006-2014), quando houve um aumento significativo da parcela do eleitorado que não declarava resposta ou de dizia de Centro. Singer conclui que, nesses oito anos do auge do “lulismo”, houve uma tendência do que ele chama de desativação das predisposições ideológicas. Ou seja, a sensação de bem-estar proporcionada pelas políticas públicas (políticas de valorização do salário-mínimo, emprego, entre outras) despolarizou a disputa política. Coube a Bolsonaro (num contexto ainda de crise econômico-político-social), com uma postura radical, reativar o conservadorismo na eleição de 2018.

Neste sentido, a novidade nos últimos pleitos eleitorais não é a “polarização”, em geral, mas sim a substituição da direita PSDB por uma extrema direita com traços autocráticos – o bolsonarismo. O PSDB, que em 1998 tinha 99 deputados na Câmara Federal, em 2022 elegeu apenas 13 (mesmo número de deputados de PSOL, Podemos, PSB). Quem tem 99 deputados, hoje, é o PL de Bolsonaro.

A radicalização da direita não é um fenômeno nacional, mas marca a política de países da América Latina, EUA e Europa. Trump ocupou o Partido Republicano. Milei atropelou Macri. O que ajuda a explicar isso?

É difícil entender os fenômenos políticos e eleitorais sem olhar para economia e para a situação da classe trabalhadora. O que os dados evidenciam? Dados da OXFAM (Pesquisa Retrato das Desigualdades, 2024) mostram uma tendência de extra concentração de riqueza. Se tem alguns muito ricos de um lado, tem muitos muito pobres de outro. No Brasil, 63% da riqueza está nas mãos de 1% da população; 50% dos mais pobres possuem apenas 2% da riqueza. No mundo, enquanto 5 bilhões ficaram mais pobres depois da pandemia, 5 homens mais ricos dobraram sua fortuna.

Como está a situação da classe trabalhadora? Insegura e adoecida. Pesquisa publicada pelo CASB (Centro de Análise da Sociedade Brasileira, parceria entre as Fundações do PT, PSOl, PCdo B e Die Link alemão), em agosto de 2024, revela uma situação de precarização e insegurança financeira por parte da classe trabalhadora, que se preocupa com sua saúde e com sua renda. quatro em cada dez trabalhadores se sentem sob riscos psicológicos, e um a cada três teme por sua integridade física. Há insatisfação com a renda para 51% da amostra. Nesse sentido, 64% veem como principal ponto negativo no trabalho por conta própria o risco de ficar incapacitado e sem renda.

Além disso, dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) mostram que ter um trabalho não é mais sinônimo de estar fora da linha de pobreza. Ou seja, dado o alto custo de vida, a desproteção social e os baixos salários, cidadãos com trabalho podem estar abaixo da linha da pobreza, sem conseguir garantir o mínimo para si e sua família.

Soma-se a isso a sensação de vulnerabilidade diante das mudanças climáticas (queimadas, enchentes e outros desastres cada vez mais recorrentes) – o que dá contornos ainda mais dramáticos para uma perspectiva de futuro já pouco otimista.

Cria-se, assim, um terreno fértil para o avanço de figuras de extrema direita com saídas individualistas e de ódio. Coachs sem compromisso com a verdade e com a democracia, sem projeto de país ou de povo.

Assim como no auge da aprovação dos governos petista, parece que a forma de arrefecer a polarização e barrar o avanço da extrema direita é via garantia de direitos e bem-estar da classe trabalhadora – que também apresenta novidades e novas demandas. Mas isso fica para outro artigo.

 

Fonte: Deutsche Welle/Le Monde

 

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