Vício em jogos: popularização das bets cria
novo perfil de dependência
Quando se fala em
adicção ou dependência, é comum pensar no abuso de substâncias como álcool e
drogas ilícitas, mas outro perfil de comportamento aditivo vem chamando a
atenção: o vício em jogos de azar. O tema não é novo, mas com a popularização
das chamadas “bets”, ou casas de apostas online, o fenômeno começa a ganhar
contornos que, a depender da maneira como for conduzido, pode desencadear um
novo problema de saúde pública a longo prazo.
Basta pensar na
evolução disso ao longo do tempo. Há alguns anos, o intervalo entre o apostar e
descobrir o resultado era maior. As apostas nas casas lotéricas, no jogo do
bicho, não traziam um resultado imediato. Com a era das bets, isso mudou. Tudo
acontece em poucos minutos: a aposta, o resultado, a frustração ou euforia, e a
possibilidade de uma nova jogada.
“A possibilidade do
jogo está na palma da mão, extremamente fácil. São inúmeros jogos no modelo
caça-níquel, que é uma das coisas mais aditivas, justamente porque o reforço é
imediato. Com as bets você tem um caça-níquel ambulante, porque se não está rolando
o jogo de futebol, tem o de vôlei, de basquete, você pode jogar o dia todo”,
aponta Elizabeth Carneiro, psicóloga e especialista em dependência química pela
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Uma pesquisa feita
pelo Instituto Datafolha em dezembro de 2023, com cerca de dois mil brasileiros
acima de 16 anos, revelou que 15% já realizaram algum tipo de aposta online.
Dentre aqueles que jogaram, os jovens entre 16 e 24 anos são a maior parcela.
Durante a edição desse
ano do Brain Congress, maior congresso de neurociência do país, que reuniu
neurologistas, psiquiatras e psicólogos do Brasil e do mundo, o tema foi
protagonista de inúmeras palestras. O tom foi marcado pela necessidade de
ampliar o debate das possíveis consequências do aumento da prevalência do jogo
patológico a longo prazo, principalmente em razão da movimentação para
regulamentar as apostas online, cassinos e jogo do bicho.
• O jogo patológico no cérebro
No cérebro, ao jogar,
é ativado o mecanismo dopaminérgico de recompensa, relacionado à sensação de
prazer e excitação. Hábitos adaptativos também liberam os neurotransmissores da
satisfação, mas o processo não é instantâneo, exige esforço e paciência, a exemplo
da prática de exercícios físicos, que aciona o mesmo mecanismo. O processo
envolve diversas estruturas, como o hipotálamo, comum a todos os indivíduos.
Mas outras estruturas também exercem um papel grande na adicção, como o córtex
pré-frontal (responsável pela tomada de decisão planejada), o hipocampo
(responsável pela formação de memórias e associação às pistas ambientais) e a
amígdala (mecanismo de consciência das emoções).
Antônio Carlos Cruz,
psiquiatra e coordenador do programa de residência médica em psiquiatria do
Hospital Juliano Moreira (BA), explica: “Quando há um desequilíbrio nessa
circuitaria, fica difícil ter a perspectiva de uma pergunta simples e crucial:
eu quero fazer isso mais uma vez? E se sim, quantas vezes ainda? Porque o
controle inibitório e a tomada de decisão planejada estão prejudicados, o
funcionalismo e o circuito de recompensa vão modificar a motivação e o circuito
de saliência vai desviar o prazer de atividades como futebol e atribuir ao
jogo.”
Segundo ele, com os
comportamentos compulsivos, o que ocorre é um “atalho” até a recompensa. Quanto
menor o esforço para atingir a sensação de prazer, mais apelo a substância ou o
comportamento tem. É por isso que é mais rápido uma pessoa desenvolver dependência
química do crack, que tem a ação iniciada em três segundos, do que da cocaína,
que leva pelo menos 5 minutos para agir.
Na esfera social, é
possível identificar duas grandes narrativas que tornam o ato de jogar mais
sedutor. A primeira é a “grande chance”, na qual o jogador de uma realidade
socioeconômica mais fragilizada vê na aposta um caminho para mudar de vida
através de uma jogada de sorte. A segunda fala sobre “poder e a admiração”, e
atrai o jogador pela excitação e pela experiência de glória social ao vencer
uma jogada – uma vez que a distorção cognitiva o faz acreditar que o resultado
está atrelado à sua expertise, e não ao acaso.
Hermano Tavares,
psiquiatra e coordenador do ambulatório integrado dos Transtornos do Impulso
(AMITI) do Instituto de psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (Ipq-HC-FMUSP), salienta que é preciso
educar a população sobre o propósito do jogo: “É preciso ficar claro que o jogo
não é uma forma de investimento, não é complemento de renda. Para jogar, você
tem que estar pré-disposto a perder aquilo que você ralou para ganhar. O azar
não é má sorte, é a aleatoriedade necessariamente embutida na previsão. Não
depende dos esforços do jogador, tem sempre um elemento de aleatoriedade que
participa em graus variáveis”, salienta.
• O transtorno do jogo
O transtorno do jogo
passou a integrar a categoria de “transtornos relacionados ao uso de
substâncias e transtornos aditivos” somente na última edição do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, na sigla em inglês),
publicada em 2013. Das adicções comportamentais, como compulsão alimentar, em
sexo e em internet, o jogo patológico é o único reconhecido oficialmente como
um diagnóstico pelo volume de evidências científicas que demonstram que os
padrões cerebrais envolvidos no processo de jogar compulsivamente são os mesmos
encontrados em dependentes de substâncias químicas.
“É fundamental pontuar
que o comportamento de uma pessoa com transtorno do jogo não é nada diferente
do dependente químico que, conforme a doença se agrava, vai deturpando os
próprios valores e passando por cima de questões morais para corresponder ao vício”,
destaca Carneiro. Atualmente, ela tem se dedicado a estudar o perfil do jogador
patológico brasileiro.
O desenvolvimento da
dependência está associado a fatores genéticos, ambientais, sociais e
psicológicos. Pessoas que têm parentes de primeiro grau que jogam ou apresentam
outras formas de adicção, principalmente abuso de álcool, tendem a ser mais
vulneráveis ao desenvolvimento do transtorno do jogo. Traços de personalidade,
como impulsividade e dificuldade de regulação emocional; ou a preexistência de
outras condições psiquiátricas, como depressão e transtorno bipolar, também são
fatores de risco – de acordo com um artigo da Associação Americana de
Psiquiatria, 96% dos indivíduos que têm problemas com jogos preenchem critérios
para outros transtornos mentais.
Vale destacar que não
são todas as pessoas que apostam ou jogam que desenvolvem o transtorno do jogo.
Na verdade, a maioria consegue levar a atividade de maneira recreativa, mas
aquelas que reúnem multi fatores de risco estão mais expostas a desenvolverem a
doença.
• Um clique de distância
No Brasil, plataformas
e casas de apostas foram proibidas por décadas. Foi apenas em 2018 que a
legislação brasileira passou a liberar a atuação de empresas de apostas
esportivas no país, embora muitas mantivessem sede em outros territórios,
devido a um gap regulatório. De lá para cá, a presença das bets aumentou
significativamente. Empresas do nicho estão presentes em eventos esportivos
como patrocinadoras, em publicidades veiculadas na TV aberta, em banners na
internet, nos conteúdos de influenciadores digitais e muito mais.
E, diferente do
tradicional jogo do bicho, por exemplo, que tem um histórico e estética de
contravenção, as plataformas de apostas esportivas tem um apelo especial no
país do esporte. Logo, não demorou muito para ser encarada como uma atividade
familiar, assunto do almoço da firma e competição entre os amigos no estádio de
futebol. E atingiu um status de normalização que, de acordo com Carneiro,
apresenta um risco significativo a longo prazo.
“O grau de
disponibilidade é absurdo. O marketing é muito semelhante com o utilizado pela
indústria do tabaco décadas atrás. E a luta contra o tabagismo foi bem sucedida
graças a uma política pública de restrições. Quais são as drogas mais
consumidas do mundo? As legalizadas, porque isso favorece o acesso e a
banalização. A pessoa pensa: ‘se meus pais bebem, se meus amigos bebem, isso é
algo natural’. O nosso futuro é tenebroso em relação à legalização dos jogos de
aposta.”
Em dezembro de 2023,
foi aprovada a lei que regulamenta casas de apostas físicas e virtuais, eventos
esportivos reais, jogos online semelhantes aos encontrados em cassinos, como
roleta, pôquer e caça-níqueis – como o popular jogo do tigrinho. Agora, o Projeto
de Lei 2234/2022, que tramita no Senado, visa autorizar também o funcionamento
de bingos, cassinos e jogo do bicho, além de criar regras para os jogos de
azar.
• Sistema vulnerável
O novo PL traz a exigência
de um capital social específico, regras de publicidade e de taxação e a
determinação dos que estão proibidos de jogar – como pessoas jurídicas, agentes
vinculados aos órgãos de fiscalização ou às empresas dos jogos, e pessoas
“excluídas ou suspensas do registro de jogadores e apostadores, em decorrência
de autoexclusão ou de decisão judicial”. Esse último grupo diz respeito a
pessoas com compulsão por jogos que, voluntariamente, pedirem a inclusão no
Registro Nacional de Proibidos (Renapro); ou aquelas que, em decorrência do
vício, sejam interditadas judicialmente a pedido de familiares.
O objetivo é mitigar
os riscos de adicção, mas não há como saber se a medida surtirá esse efeito,
uma vez que a pessoa dependente sofre de distorções cognitivas que atrapalham
no próprio reconhecimento da doença, como pontua a especialista da Unifesp: “Quando
a pessoa busca tratamento, é porque o quadro já está muito avançado, numa
gravidade muito maior.”
É comum que a pessoa
sinta que tem o controle sobre a situação, que o episódio de perda foi devido a
uma falha de estratégia e não pela natureza do jogo de azar e negue precisar de
ajuda. Não é à toa que a maioria dos pacientes com problemas com jogos chega
aos consultórios já nas fases moderadas e graves do transtorno, quando a doença
já impactou relacionamentos pessoais, carreira e vida financeira.
Tanto a lei aprovada
em dezembro quanto o PL que tramita no Senado contam com o adendo de que parte
do dinheiro recolhido pelo governo – que varia entre 12% e 17% da arrecadação
total dos estabelecimentos – deve ser destinado a áreas como Ministério da Educação,
segurança pública, esporte e saúde. O montante reservado para “medidas de
prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos,
nas áreas de saúde” fica entre 1% e 4% da verba advinda dos impostos.
Uma das emendas
apresentadas propõe a criação da Campanha Nacional Janeiro Branco, que teria
como objetivo a “promoção de medidas de prevenção da primeira aposta,
conscientização sobre os malefícios da jogatina e a importância de se evitar os
jogos de azar”. Além disso, um dos dispositivos do PL estabelece um sistema de
publicidade semelhante ao feito com o tabaco, que determina que avisos sobre os
riscos do jogo patológico devem estar presentes nos ambientes de apostas.
• Mudança de perfil preocupa
Há ainda uma
preocupação com a mudança do perfil do jogador, que está cada vez mais jovem.
Embora os sites estabeleçam a idade mínima em 18 anos, é comum que os pais
abram contas para os adolescentes e a atividade seja realizada em família, seja
em casa ou eventos esportivos. Essa familiaridade com o ato de apostar e o
hábito de presenciar membros da família apostando está associada a riscos mais
altos de desenvolver problemas com jogos no futuro, como descreve o artigo
publicado na “Addictive Behaviors” em 2022, que avaliou a transmissão
intergeracional de comportamentos aditivos.
E não para por aí.
Quanto mais nova a criança ou adolescente, maior o risco de se aventurar no
universo das apostas ao longo da infância e adolescência aumenta, uma vez que
córtex pré-frontal, área do cérebro responsável pela tomada de decisão e
controle, não está completamente formado nesta fase da vida. Por isso, fica
mais difícil avaliar os riscos envolvidos na atividade e controlar impulsos.
Além disso, a
facilidade no acesso online a jogos de azar e apostas e a presença de
divulgação em diferentes plataformas midiáticas, dificulta a fuga das chamadas
pistas ambientais, nome dado para estímulos externos que podem desencadear ou
exacerbar o comportamento compulsivo, como sites específicos, influencers e
marcas associadas às casas de apostas, eventos esportivos, entre outros. Isso
significa que, para uma pessoa que sofre de jogo patológico, o simples ato de
navegar na internet ou assistir a uma partida do seu time de futebol pode
dificultar a recuperação, como reforça Elizabeth Carneiro:
“Quando o paciente
está no início do tratamento, é comum pedir que ele evite lugares associados ao
hábito de jogar. Nesse caso, isso é extremamente difícil, porque as propagandas
estão nas redes sociais, nos estádios, os círculos sociais estão envolvidos
nisso. É uma fase que exige colaboração e cumplicidade por parte da rede de
apoio da pessoa adicta.”
Os prejuízos não ficam
apenas na esfera pessoal. De acordo com o Conselho Nacional sobre o Problemas
de Jogo (NCPG, na sigla em inglês), organização da sociedade civil
norte-americana, é estimado que nos Estados Unidos, por exemplo, o custo social
anual do jogo patológico seja de US$14 bilhões, incluindo perda de emprego,
falência, gastos com saúde relacionados doença e outros.
• Preocupação com vício em jogos começa
agora
O tratamento do
transtorno do jogo, assim como de outras formas de dependência, consiste
principalmente na Terapia Cognitiva-Comportamental (TCC), uma abordagem
terapêutica que busca modificar o comportamento do paciente a partir da
reestruturação de pensamentos considerados inadequados – ou correção das
distorções cognitivas. A participação da família também é fundamental para que
a pessoa tenha uma rede de apoio na jornada de recuperação.
Há uma discussão sobre
a inclusão de psicofármacos como suporte no tratamento, mas ainda não há
consenso. Hermano Tavares, coordenador do AMITI, conta que, até o momento, a
classe que tem se mostrado mais promissora é a dos antagonistas de opióides,
que contempla medicações como naltrexona, usada principalmente no tratamento do
alcoolismo.
“O uso de medicamentos
nesse momento ainda é uma coisa muito discutida, apesar de estudos já muito
consistentes. Não há uma pílula mágica, mas os antagonistas opióides melhoram e
muito a eficácia do tratamento, há uma resposta muito satisfatória nesse sentido”,
pontua.
Diante desse novo
cenário de flexibilização dos jogos de azar online, há a preocupação de que o
Sistema Único de Saúde (SUS) não esteja preparado para lidar com uma possível
escalada dessa adicção. Atualmente, os transtornos relacionados ao uso de
substância e de comportamento aditivo fazem parte do escopo dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), que conta com 2.836 unidades espalhadas pelo
Brasil – um número já deficitário para a necessidade da população brasileira.
Para Tavares, é
esperado que a demanda por tratamento para o transtorno do jogo aumente em até
quatro vezes nos próximos anos. Por isso, ele ressalta que essa é a hora dos
profissionais de saúde mental se habilitarem no manejo da condição. E defende
que é preciso um controle rígido sobre o sistema de apostas: “É preciso saber
se a pessoa está apostando mais do que aquilo que declara como renda, por
exemplo. Porque se estiver, ou é fraude ou é doença, e as duas coisas são nossa
responsabilidade enquanto sociedade.”
Fonte: Futuro da Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário