quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O que explica recorde de incêndios no Pantanal

Imagine a cena: um caminhão rodando por uma estrada solta uma pequena faísca que é suficiente para fazer pegar fogo na vegetação ao lado.

O fogo se espalha tão rapidamente que alcança o próprio caminhão, que pega fogo e explode.

Pode parecer uma cena de filme de ação, mas aconteceu de fato, numa estrada do Pantanal. E uma série de fatores contribuem para tornar possível uma cena como essa na região.

De início, dá para ver que o Pantanal atingiu, entre agosto e setembro, a "Regra dos 30" (que é uma expressão comum entre as pessoas que trabalham com fogo): 30 dias sem chover, umidade abaixo de 30%, temperatura acima de 30ºC e ventos acima de 30 km/h.

Mas, além da conjunção de tantos 30s, essa é uma região forjada no fogo, dependente dele. É uma área úmida, onde não se imagina o fogo como parte da paisagem natural. Mas ele é fundamental para a manutenção das características do local.

Os lugares que mais queimam no Pantanal são também os lugares que mais inundam, semelhante ao que ocorre no delta do Okavango, em Botsuana. Nos períodos úmidos, há muita produção de matéria orgânica.

Muitos dos capins do Pantanal são adaptados ao fogo, e produzem muita matéria seca, ou seja, crescem e, quando rebrotam, o capim do ano anterior seca e permanece ali. Nos períodos secos, essa biomassa produzida fica disponível para queima.

Atualmente, o Pantanal está vivendo um período de uma seca extrema, que começou em 2019.

Nesse tempo, só houve um ano de cheia: 2023. Então, toda a biomassa produzida na cheia do ano passado é hoje material passível de entrar em combustão.

•        Como acontecem as cheias e secas no Pantanal?

O que chamamos de Pantanal é, na verdade, um lugar onde chove pouco. Da borda leste para a borda oeste do Pantanal, temos uma precipitação média de cerca de 1.000 mm/ano.

Seria quase clima quase de semiárido, não fossem as chuvas nas cabeceiras. Da parte norte do Pantanal, vêm as águas dos rios Paraguai e Cuiabá, que são os mais caudalosos. Da parte leste, principalmente dos rios Aquidauana e Miranda.

Quando esses rios vertem grande volume de água, eles transbordam e o Pantanal inunda.

E o que temos observado nesses últimos anos é um decréscimo das chuvas, de uma maneira geral, nas cabeceiras. Então, no Cerrado e um pouco já na transição para a Amazônia (áreas das cabeceiras desses rios), está chovendo menos.

Historicamente, a região tem os ciclos plurianuais de seca e cheia. A série mais longa de dados que temos é do rio Paraguai, onde a Marinha faz medições desde 1900. Do início das coletas até 1960, houve bastante oscilação, com anos mais cheios e anos mais secos.

Em 1960, o Pantanal entrou num ciclo de seca, até 1974, com alguns poucos anos de cheias no meio, como agora em 2023. De 1974 até 2018, o Pantanal viveu um ciclo de grandes cheias, até que, em 2019, voltamos ao padrão de 1960.

Há certamente na região uma questão cíclica. E isso se alia aos eventos extremos, que são efeito das mudanças climáticas. Estamos, portanto, vivendo um ciclo de seca, exacerbado pelos eventos extremos.

E estamos ainda em um período de aprendizagem. Como estamos num ciclo de seca que começou em 2019, depois de um longo período de cheias, as pessoas mais novas, mesmo as que estão acostumadas ao Pantanal, ainda não viveram um ciclo de seca como esse de agora. Para eles é uma novidade e pouca gente sabe o que fazer.

•        Resiliência e adaptação

Em 2024 convergiram todos esses fatores: a regra dos 30, a grande quantidade de biomassa produzida no ano anterior de cheias, um ciclo de seca, mudanças climáticas, período de aprendizagem.

Isso faz com que esse ano a região enfrente incêndios que superam o registrado no mesmo período de 2020, ano recorde de queimadas.

E a esses fatores se junta ainda outro: a capacidade de adaptação da flora local para essa alternância de fogo e água.

O Pantanal é mais preparado para o fogo do que a Amazônia. Por aqui, um ambiente, quando muito sensível, leva cerca de 20 anos para se recuperar.

Na Amazônia, há registro de regiões que demoraram mais de 40 anos para se recuperar, ou que nunca voltaram a ser o que eram.

Algumas áreas do Pantanal, como as matas ciliares, são mais sensíveis ao fogo.

Dependendo da intensidade, o fogo vai moldar como essa mata ciliar vai crescer, restrita a árvores que consigam se estabelecer nesses ambientes.

O Cerrado tem cerca de 12 mil espécies da flora, contando árvores, arbustos, ervas e todos os outros hábitos de crescimento.

O Pantanal tem apenas 2.500 para todos os hábitos de crescimento, porque sobrevivem aqui apenas as que conseguem driblar a questão da inundação e também do fogo.

Já os campos inundáveis são extremamente resistentes ao fogo: você queima hoje, amanhã eles começam a rebrotar.

Algumas gramíneas podem crescer junto com a inundação e chegar a 5m de altura — às vezes ficam maiores que a cana-de-açúcar.

Mesmo quando os campos não inundam, só a subida do lençol freático leva a uma produção grande de biomassa.

O efeito desse fogo associado a inundação é tornar a paisagem mais aberta. Depois que uma área inunda, só vão germinar as árvores que conseguem conseguem germinar embaixo d'água ou que resistem a inundação após a germinação no seco.

Com a ocorrência de fogo, essas árvores que germinaram e/ou cresceram sob a influência da inundação, podem morrer. A tendência é que os ambientes fiquem mais abertos, com árvores e arbustos substituídos por densas áreas de campo com gramíneas.

•        Nos grandes incêndios, perdem todos

Recentemente o governo federal aprovou a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, e o Mato Grosso do Sul também aprovou sua lei estadual do manejo.

Esse manejo envolve todo um trabalho educativo, de valorização do manejo tradicional que as pessoas fazem e definição dos momentos e lugares adequados para a realização desse manejo.

Não é só controle e combate de incêndios, mas um processo de conversar com as pessoas, planejar quem vai queimar, quando vai queimar, quantas áreas vão queimar. Tudo isso para reduzir a biomassa disponível para os períodos mais secos do ano.

Estávamos auxiliando o governo do estado na criação de um programa de fogo prescrito em fazendas com o uso da plataforma SIFAU, que foi desenvolvida pela UFRJ em parceria com a UFMS para auxiliar o planejamento do Manejo Integrado do Fogo.

Com o uso do fogo prescrito, é possível reduzir a biomassa através da queima preventiva num período em que não há risco de incêndio para evitar que, no período mais seco, exista combustível suficiente para gerar os grandes incêndios. É combater o fogo com fogo.

Quando o governo estava prestes a implementar o programa, os incêndios começaram. A queima prescrita ficou em segundo plano, e agora lidamos com o combate.

Isso leva a prejuízos em diversos níveis. Na questão de saúde, incêndios grandes produzem muita fumaça, que afeta a saúde das pessoas, com o aumento de doenças respiratórias.

Na frente econômica, o fogo pode destruir cercas, tratores e construções nas fazendas. Até o aeroporto de Corumbá acaba ficando fechado por dias quando não há visibilidade para pousos e decolagens.

Além disso, apesar da capacidade de adaptação da flora local, se o fogo se torna muito frequente, algumas espécies mais sensíveis vão eventualmente se tornar raras no sistema ou até sumir.

Uma pesquisa em andamento sobre liquens mostrou que as áreas de mata que pegaram fogo em 2020 não tinham liquens. Já áreas que pegaram fogo há 20 anos voltaram a tê-los.

É como um efeito sanfona, que acontece também com a fauna da região. Mas esse efeito sanfona tem um limite. Sem a implementação de uma política adequada de manejo do fogo, o Pantanal tende a sofrer cada vez mais com essa conjunção de fatores, agravados pelas mudanças climáticas.

 

•        É preciso retirar o Cerrado da agonia

Neste último 11 de setembro, houve poucas razões para comemorar o Dia Nacional do Cerrado. A temporada de incêndios que assola o país há semanas tem devastado o bioma, também conhecido como “coração das águas” e que abrange 10 estados e o Distrito Federal. A savana mais biodiversa do planeta se estende por uma área duas vezes menor do que a Amazônia, mas tem enfrentado um calvário equivalente, sem a mesma visibilidade da maior floresta equatorial do mundo.

É no Cerrado que se encontra o estado de Mato Grosso, o recordista em focos de incêndios nesta temporada, com mais de 20 mil ocorrências. É no Cerrado, ainda, que se encontra o conjunto de fatores que leva a uma reflexão sobre as prioridades nacionais em meio à crise climática. O bioma em estado de agonia abriga o coração do agronegócio, tido ora como vilão, ora como vítima da tragédia ambiental em curso; reúne uma biodiversidade única, além de ser o epicentro de bacias hidrográficas vitais; e, mais importante, é o ambiente natural onde estão incrustados os Poderes da República.

Pasma e paralisada com o avanço destruidor das chamas, a fumaça que encobre cidades inteiras e as doenças respiratórias provocadas pelo ar seco e com fuligem, a opinião pública assiste a uma ação descoordenada das autoridades brasileiras. O Executivo tem mostrado certo grau de diligência no enfrentamento da tragédia, embora esteja patente que o esforço tem sido insuficiente para conter as queimadas. O Judiciário, particularmente na figura do ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, tem cobrado providências da União e dos estados para combater o que o magistrado diagnosticou como “pandemia de incêndios” a castigar o país. E o Legislativo? Está omisso. Os parlamentares estão mais preocupados com as eleições municipais ou com a sucessão na Câmara dos Deputados, marcada para fevereiro de 2025. Está evidente que o Congresso Nacional tem prioridades outras do que a calamidade ambiental que se abate sobre o país.

Em uma iniciativa que remete aos tempos de outra catástrofe nacional — a pandemia de covid-19 —, setores da sociedade civil estão empenhados em sensibilizar o Poder público sobre a agonia do Cerrado. Na semana passada, representantes de entidades científicas e do terceiro setor entregaram ao presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, a Carta de Brasília 2024 em Defesa do Cerrado. No documento, os signatários afirmam que o bioma tem sido negligenciado há décadas, e as consequências estão cada vez mais próximas de se tornarem irreversíveis.

Entre as propostas para salvar o Cerrado, há uma sequência tão didática quanto desafiadora. Primeiro, é preciso interromper o processo de aniquilação do bioma, por meio de combate rigoroso a ações criminosas e à negligência. Em seguida, urge implementar políticas e práticas para abolir o modelo predatório de exploração econômica e estimular o desenvolvimento sustentável. Por fim, fazse essencial manter uma campanha permanente de valorização e preservação do bioma, em nome das futuras gerações e da sobrevivência do patrimônio ambiental brasileiro.

Em alto e bom som, o Cerrado pede socorro. É dever do Estado e da sociedade atender a esse chamado.

 

•        Estamos sufocando: o que ainda falta entender?

O ar está rarefeito, cheio de fuligem. Névoa seca e densa; cheiro de fumaça por todo o canto; redemoinhos de fogo; florestas devastadas pelo incêndio criminoso; pessoas desabrigadas; animais mortos; pés queimados; indígenas expulsos dos seus territórios. Biomas e mananciais em grave risco. O que se esperava para daqui a décadas — caso não tomássemos providências imediatas — já está se materializando neste tempo-espaço. É aqui e agora.

Já não falta tanto tempo para tornarmos nosso ambiente insuportável. E seguimos na mesma toada da destruição. Estamos esperando o que para entender que esta é a maior emergência? É isso o que afeta a vida e o futuro do planeta — futuro não, presente! Sem a proteção ao meio ambiente, não há economia pulsante; não há PIB crescendo; não há saúde. Nem ar, nem água, nem vida.

Estou sem paciência para a politização/ polarização ridícula — aquela da linha: ‘olha aí o governo que você elegeu’ versus ‘veja aí a herança que o teu governo deixou’. O apagamento do tema meio ambiente vem de tanto tempo que não dá para contar. Cientistas têm feito alertas em série sobre as ameaças; ativistas fazem protestos; cúpulas internacionais não chegam a consensos; acordos são assinados e descumpridos. O adiamento da prioridade é sinal de novo apagamento. Ignorância é fogo que arde e queima.

A devastação parece contar com apoio de uma espécie que não nasce em árvore: o dinheiro. O poder econômico dá as mãos ao poder político — aliás, creio que isso é uma coisa só — para sacrificar a vida do planeta. Dos escritórios às mansões com ar-condicionado, brotam as ideias de destruição.

Os mapas pintados de pontos laranjas, mostrando a dimensão das queimadas, e as imensas linhas de fogo alto ficam na nossa memória e entristecem. Assim como as terríveis enchentes e enxurradas que, ano a ano, pioram e levam vidas e histórias de vidas. Lembro-me dos tempos em que a seca no Nordeste produzia imagens também da fome e do desespero das famílias sem água e sem comida, enquanto larápios roubavam dinheiro público. Nada aprendemos? Continuaremos sem nada aprender?

Não falta informação, faltam boa vontade, conscientização, decência e vergonha na cara. Um planeta tão rico e diverso inerte à emergência climática, refém do desmatamento, assistindo pacificamente à devastação em escala. O que podemos fazer? Eu me pergunto — e você? Eu tenho me aproximado cada vez mais da natureza e isso é um bálsamo para o meu dia a dia. Caminhadas pelo Cerrado; canoa no lago.

Sabemos o básico para coletivamente mudar essa trajetória de destruição. Individualmente, podemos alterar a nossa rotina diária, mas não será o suficiente se não for um compromisso genuíno da sociedade. São necessárias políticas públicas mais agressivas, punições exemplares e compromissos reais.

A proposta de criar o Instituto de Pesquisa do Cerrado e a união de ativistas, do terceiro setor e de cientistas, como apresentamos recentemente na matéria Salvem o Cerrado, publicada na editoria Brasil, pode ser uma ideia bem interessante para proteger nosso bioma. O agro não pode ser inimigo, e há formas sustentáveis de prosperar, com tecnologia e ciência aplicada ao campo. Temos tratado isso no CB.Agro, trazendo temas e soluções pertinentes.

Bombeiros, brigadistas e policiais não serão em número suficiente para fazer sozinhos o que é dever de uma sociedade inteira, que deve ser levada a novos caminhos por quem está no poder. Solitariamente, podemos pouco. Solidariamente, faremos muito.

 

Fonte: BBC News Brasil/Correio Braziliense

 

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