O que a Bíblia diz sobre apostas
O crescimento do
negócio de apostas no Brasil vem em um momento em que a população evangélica
aumenta e se consolida no país.
Se diversos
indicadores apontam que, em alguns anos, o protestantismo será maior do que o
catolicismo, o setor conhecido como das bets também se tornou quase
onipresente, das estampas em camisas de times de futebol aos ostensivos
anúncios em redes sociais.
Mas essas duas facetas
do Brasil contemporâneo são compatíveis? Para quem segue a Bíblia como cartilha
de vida, há controvérsias.
Se, por um lado, o
livro sagrado dos cristãos nada diz sobre jogos de azar ou apostas, por outro
há diversos elementos que, sim, condenam como pecado a jogatina.
É importante salientar
que a legislação brasileira não define as apostas esportivas como jogos de
azar, mas sim como "apostas de cota fixa" — os jogos de azar são
aqueles que dependem exclusivamente da sorte, segundo a classificação oficial.
Mesmo assim, as buscas
no Google sinalizam que muita gente está tentando entender se a religiosidade é
compatível com o jogo.
De acordo a ferramenta
Google Trends, o interesse por pesquisas relacionando os termos
"Bíblia" e "bets" ou "aposta" têm sido relevante
nos últimos cinco anos.
A plataforma
classifica a demanda das pesquisas em um índice de 0 a 100 — na última semana
do ano passado, esses termos estiveram na escala máxima do período; no final de
julho, o índice estava em 67.
A expansão dos
evangélicos, cujos membros tradicionais se fiam na Bíblia como livro
fundamental, pode ser comprovado pela multiplicação dos templos do segmento no
país, conforme a BBC News Brasil já revelou.
Uma pesquisa realizada
pela Universidade de São Paulo (USP) mostra que o número de igrejas
protestantes no país saltou de 17 mil em 1990 para quase 110 mil em 2019 —
naquele ano, foram abertos 17 templos por dia no território nacional.
O primeiro aspecto a
ser considerado sobre a questão na Bíblia é o tempo.
"A gente não tem
um texto bíblico sobre a questão dos jogos de azar porque, nos moldes como
funcionam hoje, eles não existiam antigamente", argumenta à BBC News
Brasil o historiador e teólogo Vinicius Couto, presbítero da Igreja do Nazareno
e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista
Livre.
Mas ele cita algumas
passagens que são entendidas como uma condenação bíblica à prática.
No livro dos Gálatas —
epístola que o apóstolo Paulo escreveu ao moradores da Galácia, hoje parte da
Turquia —, há um trecho que fala sobre "as obras da carne", que
deveriam ser evitadas a todo custo pelos cristãos.
O texto enumera:
"libertinagem, impureza, devassidão, idolatria, magia, ódios, discórdia,
ciúme, cólera, rivalidades, dissensões, facções, inveja, bebedeiras, orgias e
outras coisas semelhantes".
"Os autores
dessas coisas, eu vos previno, como já disse, não herdarão o Reino de
Deus", afirma a carta.
"São as obras
pecaminosas", explica Couto. "E ele termina dizendo [que o mesmo se
aplica a] 'coisas semelhantes'."
"Outra passagem
interessante é quando Paulo menciona que 'todas as coisas me são permitidas mas
nem tudo me convém'", acrescenta o teólogo, citando um trecho da primeira
epístola paulina aos Coríntios.
"Ou seja: você é
livre para fazer o que quiser, mas o comportamento cristão não deveria se
basear nessas questões", complementa.
Há outras passagens
emblemáticas que frequentemente são utilizadas para condenar as apostas. Na
primeira carta a Timóteo, Paulo adverte contra a ganância e o amor ao dinheiro,
lembrando que este "é a raiz de toda espécie de males".
No Antigo Testamento,
o livro dos Provérbios adverte quanto à ganância e o desejo por riquezas
rápidas. "O homem fiel será cumulado de bênçãos, mas quem se apressa a
enriquecer não ficará sem castigo", aponta.
O mesmo livro também
parece criticar quem se fia ao acaso, como é o caso de apostadores. "A
sorte é lançada no colo, mas toda decisão vem do Senhor", diz o trecho.
Nessa toada, há
diversas outras passagens. O que fez com que especialistas concordem: mesmo que
a Bíblia não condene especificamente os jogos de azar, seus princípios
desencorajam práticas relacionadas à ganância, má administração de recursos,
falta de confiança em Deus e potencial de prejudicar os outros e a si mesmo.
Professor na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o sociólogo Edin Sued
Abumanssur nota que embora a Bíblia "não diga nada sobre jogos de
azar", a "ideia de sorte" aparece com frequência, "sempre
no sentido de jogos adivinhatórios".
"Eles lançam a
sorte para decidir sobre alguma coisa, como se fosse a vontade de Deus que
resolvesse", comenta ele, à BBC News Brasil.
"No Antigo
Testamento era bastante comum e no Novo há algumas passagens, como quando eles
escolhem Matias como substituto para Judas, o que traiu Jesus, como um dos 12
apóstolos."
De acordo com
Abumanssur, a ideia de sorte sempre aparece como "uma coisa
aleatória".
"Tanto no Antigo
como no Novo Testamento há aspectos de como lidar com a sorte", pontua à
BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
No livro de Josué, do
Antigo Testamento, por exemplo, há uma passagem em que os israelitas, depois de
derrotados em uma batalha, lançam a sorte para entender o que estava
acontecendo.
"No Novo
Testamento, na [narrativa da] crucificação de Cristo, diz-se que os soldados
romanos estavam 'deitando sortes' enquanto Jesus estava sendo crucificado. Ou
seja, estavam jogando alguma coisa", acrescenta.
"Então a Bíblia
traz essas histórias todas revelando que essa prática de optar por meio da
sorte era recorrente", comenta o professor.
"Desde sempre os
homens tentam lidar com o imprevisível, o imponderável, e as culturas
desenvolveram mecanismos de consultas às estrelas, aos astros e através de
jogos das mais variadas formas. A Bíblia não esconde isso, que esteve sempre
presente na tradição humana."
Segundo ele, contudo,
a questão é um pouco mais complexa quando se pensa na figura do "crente em
si".
"A Bíblia
registra essa coisas mas há uma condenação ao apego a elas, porque seria uma
falta de fé no Deus que comanda a vida. A ansiedade pelo futuro, o apelo à
sorte, essa necessidade de encontrar respostas para um destino oculto é algo
condenado pela Bíblia porque, de alguma forma seria afronta a Deus."
• Igreja evangélica
Couto diz que
"majoritamente as igrejas protestantes" são contra jogos de azar,
"sejam as tradicionais, históricas, sejam as evangélicas
pentecostais". E isso diz respeito a jogatina em geral, não se
restringindo ao segmento das bets.
O teólogo explica que
a fundamentação crítica mais comum utilizada pelos evangélicos para condenar
tal comportamento são a imoralidade de um ganho de dinheiro que não seria visto
como "honesto" ou fruto do trabalho e o risco do vício. "Por
vício, é o sentido de a pessoa ser dominada por aquilo", diz.
A questão da
honestidade em se ganhar dinheiro está presente em trechos como o que também
está no livro dos Provérbios.
"A riqueza obtida
com desonestidade diminuirá, mas quem a ajunta com o próprio trabalho a
aumentará", afirma.
O sociólogo Abumanssur
comenta que embora a Bíblia não traga nada explícito, "nenhuma igreja
protestante admite essa coisa de jogos de azar". "É uma espécie de um
consenso, embora boa parte delas não tenha isso por escrito em seus estatutos",
afirma.
Uma exceção apontada
por ele é a igreja pentecostal Deus É Amor. "Nela, há um documento que
ordena como deve ser a vida do crente. E lá está escrito que eles não podem
praticar jogos de azar, não podem participar de nenhum jogo desse tipo",
conta.
Moraes ressalta que,
"na tradição protestante", sempre houve "uma condenação às
práticas dos jogos de azar".
Segundo o teólogo,
isso se originou do entendimento primitivo de que o povo de Israel era
diferente dos demais do entorno, portanto, "copiar" as mitologias e
crenças de outras civilizações do Oriente Médio significava "não acreditar
plenamente em Deus como aquele capaz de controlar sua vida e seu destino,
trazendo bênçãos".
"Seria como
flertar com magia, coisas oculta, aquilo que Deus não permitiu. Implicaria
enveredar por uma religiosidade pagã que, de alguma forma, desagradaria a
Deus", salienta Moraes.
"Na cultura
protestante, isso sempre foi muito forte. Em vários lugares do mundo, em um
primeiro momento, se condenou e ainda se condena essa prática dos jogos de
azar, porque essa prática revela falta de confiança, de fé em um Deus que seria
suficiente para comandar o destino do fiel, e ser soberano sobre sua
vida", pontua.
Ele lembra ainda que
questões filosóficas e econômicas permeiam a questão. Nesse sentido entende-se
que o ato de apostar não é exatamente uma desobediência a Deus, "mas algo
que pode levar a pessoa a um vício".
"Se a pessoa
deixa de controlar sua vida, deixa de ser senhora de sua vida porque se torna
dominado pelo vício, ela acaba mostrando que não depende de Deus, que ele não é
mais senhor de sua vida e acaba lidando com aquilo que não lhe pertence [o dinheiro
que não é fruto do trabalho]", explica Moraes.
"A tradição
protestante sempre lidou muito mal com a questão dos jogos de azar porque eles
acabam contrariando a leitura bíblica ao apelar para algo incerto que não tem a
ver com a dependência de Deus", resume o teólogo.
Segundo ele, para um
protestante, seja ele rico ou pobre, "Deus sempre vai dar na medida
certa", portanto a dependência precisa ser dele, e não de um site de
apostas ou qualquer coisa do tipo.
Mas o teólogo concorda
que, no Brasil contemporâneo, eivado de possibilidades de apostas, "esse
debate está se levantando" no meio evangélico. E ele vê uma dicotomia. De
um lado, igrejas históricas que combatem os jogos de azar, embora no privado
"muitos crentes façam sua fezinha". De outro, o universo protestante
que optou por "ressignificar" as apostas.
"São pessoas que,
ao ganharem, vão dizer que aquilo foi uma bênção de Deus na vida delas",
exemplifica Moraes.
• Igreja Católica
Couto lembra que, em
seu Catecismo, livro que expõe a fé e a doutrina, a Igreja Católica não proíbe
diretamente os jogos de azar. "Tanto que elas fazem, de maneira aberta e
comum, nas quermesses, coisas relacionadas a isso, como apostas e bingos",
comenta.
"Jogos de azar
não são um pecado para a Igreja Católica", afirma à BBC News Brasil o
sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura
da PUC-SP e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo.
Ele lembra que as
paróquias inclusive organizam e promovem bingos beneficentes, rifas e sorteios
em festas comunitárias.
"O problema é
quando o jogo se torna um vício, alguma coisa descontrolada para a pessoa. A
ideia central é sempre aquela de que a pessoa deve viver uma harmonia interna e
poder desenvolver plenamente as suas potencialidades", argumenta.
"Qualquer vício
leva ao uso desordenado das próprias capacidades e faz com que as pessoas
tendam a usar mal algumas capacidades e a perder outras."
Moraes avalia que
"tradicionalmente o discurso da Igreja Católica" nesse âmbito seja de
"ponderação".
Na filosofia, contudo,
ele lembra que grandes mestres da Igreja discutiram sobre a quem pertenceria o
"tempo livre" das pessoas, e o entendimento era que era algo que não
seria do homem, mas de Deus.
"Assim, como você
usa esse tempo, se você obtiver ganhos explorando um tempo que não lhe
pertence, isso pode ser entendido como pecado", contextualiza.
Fonte: BBC News Brasil
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