O histórico massacre em escola russa que
deixou 334 mortos e expôs ponto fraco de Putin
No dia em que a cidade
de Beslan, na Rússia, começou a enterrar seus mortos, havia tanto carro na rua
levando caixões que se formou um engarrafamento a caminho do cemitério.
Na pequena cidade do
Cáucaso, todos haviam perdido um parente ou conheciam alguém que havia morrido
no cerco à Escola Número Um.
O ataque terrorista,
lançado por militantes fortemente armados, principalmente da Chechênia, durou
três dias.
No total, 334 pessoas
morreram — sendo 186 crianças.
No início de setembro
(3/9), o cerco que terminou repentinamente com explosões devastadoras completou
20 anos, mas ainda é possível ouvir o lamento das mães de Beslan.
O luto tomou conta da
cidade em ondas.
Consigo imaginar o
caixão branco aberto de Alina, de 11 anos, no quintal da casa dela, com suas
bonecas colocadas cuidadosamente ao seu lado.
E vou sempre lembrar
de Rima, que passou três dias amontoada no sufocante ginásio da escola com os
netos e centenas de outros reféns, com bombas presas às cestas de basquete
acima deles.
Na época, ela afirmou
que tinha vergonha de ter sobrevivido.
Enquanto ela e os
netos corriam para a saída, em meio aos tiros, eles tiveram que passar por cima
do corpo morto de um garotinho.
"Deus nos perdoe
por isso", suplicava Rima, em meio a lágrimas.
• Primeiras lições da doutrina de Putin
Em 2004, o sofrimento
de Beslan foi sentido em toda a Rússia — e repercutiu no mundo todo.
Antes de mais nada, a
tragédia foi causada pelas dezenas de homens e mulheres que invadiram a escola,
atirando para o alto e fazendo centenas de pessoas petrificadas como reféns.
Eles encurralaram mães
com bebês e balões, e meninas com laços brancos enormes no cabelo. Famílias
inteiras que estavam comemorando o primeiro dia de volta às aulas.
Os militantes encheram
o ginásio com explosivos, e começaram a executar os reféns homens.
Naquele verão, a
guerra brutal de Vladimir Putin contra os separatistas na Chechênia — lançada
quatro anos antes — já havia ultrapassado as fronteiras da república do sul da
Rússia.
Um dia antes do início
do cerco de Beslan, 10 pessoas foram mortas quando uma mulher-bomba chechena
detonou explosivos do lado de fora de uma estação de metrô de Moscou. Antes
disso, militantes suicidas explodiram dois aviões em pleno voo — e houve um ataque
mortal em um festival de música.
Mas, há duas décadas,
há perguntas persistentes e preocupantes sobre como Putin e seus oficiais
lidaram com o ataque em Beslan, em sua determinação de não "ceder"
diante dos terroristas.
Será que eles, ao
menos, tentaram negociar?
Por que alegar que os
autores do ataque não fizeram exigências políticas quando haviam pedido que as
tropas russas se retirassem da Chechênia?
Será que mais crianças
poderiam ter sido libertadas?
E, mais gravemente,
por que as equipes de resgate efetuaram disparos de tanques e usaram
lança-chamas quando ainda havia centenas de reféns dentro da escola?
Para muitos, o cerco
de Beslan ofereceu as primeiras lições cruciais sobre o Putinismo, incluindo
que ele não pouparia nada nem ninguém para acabar com aqueles que o
desafiassem.
• Proteção da imagem
Levou 20 anos para
Putin visitar as ruínas da Escola Número Um.
Mesmo assim, ele não
participou dos eventos de aniversário da tragédia com as famílias. Ele
simplesmente viajou para lá há duas semanas, e foi sozinho.
Algumas paredes
destruídas da escola foram deixadas de pé como um memorial, cobertas com uma
mortalha dourada, em algumas ocasiões, e fotografias emolduradas dos mortos no
massacre.
No meio do ginásio em
que os reféns foram mantidos, Putin colocou flores sob uma cruz de madeira.
Para a maioria dos
líderes mundiais, seria inimaginável não ter visitado este local antes. Foi o
ataque terrorista mais mortal da Rússia. Mas Putin sempre preferiu ser filmado
em um caça de combate ou rodeado por soldados.
Os túmulos de crianças
que ele não conseguiu salvar não contribuem em nada para sua imagem de homem de
ação.
Na verdade, ele já
havia estado em Beslan antes, mas a visita passou quase despercebida.
Logo após o fim do
cerco, ele embarcou na calada da noite para visitar um hospital.
Ele disse à comunidade
de Beslan que toda a Rússia estava de luto com eles, mas ao amanhecer já havia
ido embora.
"Ele chegou muito
tarde", me lembro de ter ouvido as famílias de luto dizerem. "Deveria
ter ficado conosco."
Mas Putin não se
atreveu.
Quatro anos antes, um
encontro anterior com mulheres de luto o havia marcado e assustado. Quando o
submarino Kursk afundou em 2000, Putin levou cinco dias para interromper suas
férias — e, quando finalmente se reuniu com os parentes das vítimas, foi esculhambado.
Foi assim que Putin
começou a fazer de reuniões cuidadosamente coreografadas uma marca registrada
da sua presidência: apenas pequenos grupos previamente selecionados. Tudo sob
controle.
• Números e mentiras
No mês passado, em
Beslan, apenas três mães foram levadas para se encontrar com o presidente.
"Foi um ato terrível
de terror que tirou a vida de 334 pessoas". Assim Putin descreveu a
tragédia diante das mulheres e das câmeras da televisão estatal.
"Deste número,
136 eram crianças", acrescentou.
As mães não estavam
sendo enquadradas pela câmera naquele momento, mas elas certamente estremeceram
com o erro dele. Porque 186 crianças foram mortas em Beslan.
É um número que está
gravado na mente de todos os moradores da cidade. É algo que você não esquece.
Mas Putin não visitou
Beslan para demonstrar empatia. As mães vestidas de preto eram apenas um
acessório.
Ele as estava usando
para provar algo.
Duas décadas atrás,
ele lembrou aos russos que lutou e venceu sua guerra contra o terror. Agora,
ele estava lutando contra "neonazistas" e um Ocidente hostil na
Ucrânia, e jurou que venceria esta guerra também.
A distorção e as
mentiras já faziam parte do manual de Putin em 2004. Na ocasião, as autoridades
informaram que havia um número bem menor de reféns em Beslan do que havia de
fato.
Cheguei à cidade no
primeiro dia do cerco — e logo percebi que havia três vezes mais reféns
mantidos naquela escola do que as autoridades estavam admitindo.
Todos os moradores nos
diziam isso. Mas os jornalistas da TV estatal, seguindo instruções, continuaram
a repetir a mentira.
As pessoas temiam que
as tropas estivessem se preparando para invadir a escola, então as autoridades
estavam jogando para baixo o possível número de vítimas.
• Lições para Putin
Sempre me perguntei o
que aconteceria com um governo em uma democracia ocidental após um ataque que
terminasse com muito mais reféns mortos do que terroristas.
Acho que teria
dificuldades de sobreviver à inevitável investigação oficial ou à próxima
eleição.
Putin não precisou se
preocupar com nenhuma das duas coisas.
Em 2017, o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos determinou que a Rússia havia falhado em seu dever
de proteger os reféns — e havia usado "força indiscriminada" quando o
cerco ruiu.
O processo foi aberto
por mães de luto que estavam desesperadas em busca de justiça.
Mas não houve nenhuma
nova investigação na própria Rússia. Nenhum alto funcionário foi
responsabilizado.
Quando as três mães de
Beslan reclamaram com Putin sobre isso durante o encontro deste ano, em agosto,
ele demonstrou surpresa e prometeu investigar.
Ele teve 20 anos para
fazer isso.
Ele tratou de uma
coisa, no entanto, logo após o cerco.
Em 2004, Putin
anunciou que estava cancelando as eleições diretas para governadores nas
regiões da Rússia, alegando que isso ajudaria a melhorar a segurança. Não havia
nenhuma conexão com o ataque de Beslan.
Quando o Parlamento se
reuniu para votar a medida, políticos da oposição fizeram piquetes no prédio
alertando sobre uma ditadura iminente.
Duas décadas depois,
já não há mais oposição.
A imprensa estatal foi
totalmente domada. A democracia foi esmagada.
A principal lição que
Putin tirou do cerco de Beslan foi sobre aumentar o controle.
Fonte: BBC News no
Leste Europeu
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