O distúrbio que levou escritora a não
reconhecer o próprio marido
A escritora e
jornalista americana Sadie Dingfelder conta que uma vez estava em um
supermercado quando viu seu marido com um pote de pasta de amendoim que ele
sempre detestara.
Ela foi até ele,
arrancou o pote da mão dele e estava prestes a fazer uma piada sobre o assunto.
Mas… o homem que
estava com o pote não era seu marido. E Sadie demorou para perceber a situação.
O marido de verdade
estava confuso, observando toda a cena de longe.
O engano não foi algo
corriqueiro. Mesmo parada diante do homem, Sadie não conseguia reconhecer que
não se tratava do homem com quem estava havia anos.
Sadie sempre soube que
era um pouco diferente das demais pessoas, mas nunca soube dizer exatamente por
quê. Quando criança, ela era bastante solitária, e sofria com a hostilidade de
outras crianças. Quando adulta, ela estranhava que tantas pessoas estranhas a
conheciam. Por um tempo, ela chegou a pensar que talvez fosse famosa, de tanto
que era abordada por estranhos.
Mas o episódio no
supermercado fez a jornalista querer investigar a fundo o que estava
acontecendo. Na internet, ela descobriu uma condição chamada prosopagnosia, ou
cegueira facial, em que pessoas não conseguem reconhecer rostos.
Os relatos na internet
eram perturbadores: mães com medo de buscar seus filhos na escola e não os
reconhecerem, homens que haviam ignorado suas namoradas ao encontrá-las na rua,
mulheres que estavam sendo perseguidas e não reconheciam seus stalkers.
Sadie tratou o
problema como ela costuma lidar com esses assuntos em sua profissão de
jornalista e escritora de ciências: buscou especialistas.
E um exame revelou que
sua condição era pior do que pensava: ela não só tinha cegueira facial como
estava nos níveis de 2% do espectro da condição.
"Isso significa
que eu tenho a [mesma] capacidade de reconhecer rostos de uma criança de 3
anos?", ela perguntou ao médico.
"Eu diria mais
como a de um macaco pouco desenvolvido", respondeu o médico.
Uma das coisas que
mais chocou Sadie é que ela só descobriu essa condição aos 39 anos.
Foi quando resolveu
escrever sobre o assunto. O resultado é o livro publicado este ano Do I Know
You?: A Faceblind Reporter's Journey into the Science of Sight, Memory, and
Imagination (em tradução livre: “Eu conheço você?: A jornada de uma repórter
com cegueira facial na ciência da visão, memória e imaginação”).
A cegueira facial é
causada por um dano em uma área do cérebro chamada área facial fusiforme, que
fica próxima das orelhas, nos dois lados do cérebro. O dano pode ser inato ou
causado por algum trauma ou derrame.
Sadie sugere que a
melhor forma de compreender como uma pessoa com cegueira facial vê o mundo é
olhar fotos de pessoas famosas de cabeça para baixo.
"Você consegue
ver nitidamente as feições das pessoas, mas provavelmente elas não fazem mais
sentido. Você pode até identificar algumas celebridades facilmente com a foto
no sentido certo, mas algumas ficam completamente irreconhecíveis de cabeça para
baixo", diz ela.
Sadie conversou com
dezenas de especialistas e pacientes sobre sua condição e pesquisou sobre a
história da doença.
Ela encontrou de tudo.
Um homem que resolveu viver isolado do mundo em uma fazenda por não conseguir
reconhecer nenhum rosto — mas que conseguia reconhecer todas as suas ovelhas
pelo rosto. Um homem que reconhecia rostos, mas não conseguia identificar objetos,
como cadeiras. Ou o neurocirurgião Oliver Sacks, pioneiro nos estudos e autor
do livro O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, que só descobriu ter
cegueira facial depois dos 50 anos. Ou o cofundador da Apple, Steve Wozniak,
que adquiriu a condição após um acidente de avião.
O mais assustador para
Sadie foi descobrir que a cegueira facial era apenas um de seus problemas.
Ela descobriu também
ter algo conhecido como cegueira estéreo — seu cérebro é incapaz de combinar as
imagens que ela vê dos dois olhos. Cada imagem é "processada" no
cérebro separadamente, e isso faz com que ela não consiga ver o mundo em três dimensões.
Sua percepção do mundo
é como se tudo fosse achatado — como em uma fotografia. Ela tem dificuldades
enormes em tarefas que costumam ser simples para outras pessoas, mas que exigem
percepção 3D, como dirigir um carro ou pegar um frisbee.
Sadie também descobriu
ter SDAM — sigla em inglês para memória autobiográfica gravemente deficiente.
Essa condição impede
que as pessoas consigam lembrar de eventos com muitos detalhes. E ainda
descobriu uma quarta condição: afantasia, ou a incapacidade de visualizar
imagens.
Todas as condições
estão interrelacionadas, por serem todas oriundas de modificações no cérebro.
Mas Sadie conta em seu livro que a ciência ainda sabe muito pouco sobre a causa
dessas condições. Nenhuma delas tem cura ou tratamento.
Sadie é considerada
pela ciência neurodivergente — que são pessoas que possuem um cérebro
diferente, que as faz perceber o mundo de uma forma diferente.
A jornalista resolveu
revisitar seu passado para entender alguns episódios que viveu. Procurou no
Facebook diversos colegas de escola e ouviu relatos que a surpreenderam: muitos
disseram que ela simplesmente passou a ignorá-los, depois de ter se tornado amiga
delas.
Hoje ela percebe que
simplesmente não reconhecia muitas das pessoas com quem fizera amizade. Alguma
colega poderia, por exemplo, ter cortado o cabelo ou modificado o visual, e
Sadie simplesmente não a reconheceu mais — gerando ressentimentos.
Passado o choque
inicial das descobertas, ela conta que aos poucos foi percebendo algumas
vantagens de ser neurodivergente. O fato de não reconhecer rostos a fez
desenvolver diversas habilidades: como a de prestar atenção minuciosa a
diversos detalhes (que não sejam rostos) para se lembrar de pessoas e
situações.
Ela conta que ser
neurodivergente em um mundo de pessoas neurotípicas a ensinou muito sobre a
diversidade da experiência humana.
Em um artigo de 1974
intitulado Como é ser um morcego?, o filósofo americano Thomas Nagel argumenta
que nunca seremos capazes de realmente entender como outras espécies percebem o
mundo. E isso vale também para as pessoas.
Sadie conta em seu
livro uma parábola que ilustra bem essa dificuldade.
Um peixe passa por um
cardume de peixinhos e pergunta: "Ei, como está a água hoje?"
"O que é
água?", responde um dos peixinhos.
"Para esses
peixes jovens entenderem o que é água, eles precisam de algo para compará-la —
talvez o ar, ou o vácuo do espaço, ou algo realmente estranho, como a
experiência de nadar em chocolate derretido. Eu sou o peixe que acabou de
descobrir que vivo em um mar de chocolate derretido, e vou tentar descrever
como é para que você possa entender o líquido em que você está nadando",
escreve Sadie.
A escritora e
jornalista americana conversou com a BBC News Brasil sobre o seu livro.
LEIA A ENTREVISTA:
• Quanto tempo você viveu sem saber que
tinha essa condição?
Sadie Dingfelder: Eu
achava que era totalmente neurotípica por 39 anos. Quando estava prestes a
completar 40, lembro que pensei: 'não é muito legal chegar à meia idade, mas
pelo menos eu me conheço bem. Pelo menos uma coisa eu sei'. E como eu estava
errada!
Minha vida era normal.
Quando criança eu tinha dificuldades de fazer amigos. Mas depois, quando fui
para a faculdade, comecei a ter muitos amigos. Eu achava que isso acontecia
porque as crianças são más e as pessoas mais velhas são melhores.
Mas eu [percebi que]
estava errada quando recebi meu diagnóstico de cegueira facial.
Quando descobri isso,
procurei pessoas do meu tempo de colégio no Facebook. Perguntei a muitas
pessoas porque elas não eram minhas amigas no tempo de escola, e descobri
coisas incríveis.
Uma mulher escreveu
que em algum momento no ensino médio eu comecei a ignorá-la.
O que pode ter
acontecido é que ela cortou o cabelo, ou algo assim. E por isso ela ficou
invisível para mim, ou comecei a tratá-la como uma estranha, e isso a ofendeu e
magoou. Então ela começou a me tratar como uma estranha. E eu perdi uma amiga.
Acho que isso aconteceu diversas vezes em minha vida.
• No livro, você conta muitas histórias
que são até engraçadas, mas que você só foi perceber o lado engraçado delas
depois de 39 anos. O que mais você percebeu e lembrou depois do diagnóstico?
Dingfelder: Uma
história eu só fui lembrar depois que o livro já estava publicado. Quando eu
era criança, um dos meus tios me deu uma foto dos meus três primos e eu botei o
porta-retratos em uma estante de livros.
Ele ficou ali por anos
até que um dia minha vizinha viu o porta-retratos e disse: “você tem que jogar
fora a foto que vem com o porta-retratos”.
E eu disse para ela:
“Do que você está falando? São meus primos: Ariel, Morgan...”
Ela pegou o
porta-retrato, tirou a foto e no lado de trás dava para ver um código de
barras. Claramente era uma foto que veio com o porta-retrato. E eu tive que
admitir: não eram meus primos.
• Você começa a sua jornada no livro
descobrindo que tem cegueira facial. Mas esse é só o começo. Depois você
descobre outras condições, e todas elas parecem estar ligadas entre si. O que
mais você descobriu?
Dingfelder: Sim.
Primeiro descobri a cegueira facial, e isso me fez repensar toda minha vida até
aquele momento. E comecei a pensar: por que tenho isso? É algo genético, e eu
não encontrei ninguém na minha família com esse problema. Minha família é cheia
de políticos e pessoas que são boas de reconhecer rostos e nomes.
Pesquisei mais a fundo
e descobri que também tenho cegueira estéreo, que é algo mais comum do que se
pensa. O que acontece é que meu cérebro não integra os dois campos de visão em
uma imagem tridimensional. Meu cérebro só registra o que um olho vê e depois o
que o outro olho vê, e por causa disso meu mundo é muito plano.
Se você conseguisse
entrar na minha cabeça, veria um mundo achatado, como se tudo fosse feito de
recortes de papel ou fosse uma fotografia. Para mim, fotografias são tão
tridimensionais quanto o mundo real. Mas aparentemente para as demais pessoas
não é isso que acontece.
• Você foi bastante a fundo na sua
pesquisa, no lado científico. Você conversou com diversos cientistas e chegou a
ser tema de artigos científicos. A ciência ajudou a responder as perguntas que
você tinha?
Dingfelder: Talvez uma
pessoa normal tivesse procurado um neurologista ou oculista. Mas eu sou
jornalista de ciência e quis imediatamente entender quais mecanismos estavam
envolvidos. Eu aprendi tanto. E me fez apreciar o quão boa é minha visão,
apesar de não ser ótima.
As pessoas não
entendem como a visão é complexa, porque não é algo consciente. Você abre os
olhos e o mundo inteiro está diante de você, certo? Mas nos bastidores seu
cérebro está trabalhando muito, fazendo juízos e projetando o que ele espera. E
tudo isso acontece de forma muito rápida e abaixo do seu nível de consciência.
E geralmente funciona bem, certo? Como quando você pega uma bola que jogam para
você. Isso é um milagre do cérebro. Você precisa prever onde a bola vai para
conseguir pegá-la. O fato de tudo isso funcionar é incrível. Funciona na
maioria das vezes.
O que descobri é que
nosso cérebro é uma espécie de funcionário ruim, que tenta esconder seus erros.
Ele tenta jogar para baixo do tapete os seus erros.
• Que tipo de resposta você recebeu dos
cientistas sobre a sua condição? Pelo que você conta no livro, testes mostraram
que seu caso era bastante extremo dentro do espectro.
Dingfelder: Eu estava
entre os 2% com pior capacidade de reconhecimento facial. Eu sabia que eu não
era boa de lembrar das pessoas, mas achei que estaria abaixo da média. Eu não
percebia o quão boas as pessoas normais são em reconhecer rostos. Seres humanos
têm uma parte do cérebro acima das orelhas que é 100% dedicada a reconhecer
rostos. É só isso que ela faz. Os cientistas adoram essa parte do cérebro,
chamada área facial fusiforme.
Há cientistas que
estão mais interessados em reconhecimento de objetos — como sabemos que uma
cadeira é uma cadeira, quando elas têm tantos formatos diferentes. Ou como
reconhecemos a letra “L”, que pode ser escrita com cursiva ou letra de forma,
por exemplo.
O reconhecimento de
rostos é um bom estudo de caso — é uma espécie de pedra Rosetta para se
entender de forma mais ampla como o cérebro funciona.
Por isso os cientistas
adoram encontrar pessoas com cegueira facial, porque somos excelentes estudos
de caso — apesar de que pessoas como eu, que sempre tiveram essa condição, não
são tão boas para estudo quanto pessoas que adquiram esse problema por causa de
algum dano no cérebro.
• Lendo o seu livro, fiquei pensando: como
é possível uma pessoa chegar aos 39 anos e ter uma carreira bem-sucedida, uma
vida social agitada, e ter essa condição — e ainda por cima estar entre os
piores 2%?
Dingfelder: Pois é, eu
me sinto um pouco burra de não ter percebido isso antes. Mas a maior parte das
pessoas não percebe que têm cegueira facial até depois dos 20 anos.
O Oliver Sacks
[cientista britânico que estudou essa condição] só foi descobrir que ele tinha
depois dos 50 anos, e ele era um neurologista que escrevia sobre neurociência.
A verdade é que nós só temos a nossa própria experiência. Você não tem nenhuma
base de comparação. Uma pessoa que sofre dano cerebral perceberia que algo está
errado. Mas eu cresci assim.
Em festas, eu às vezes
conhecia uma pessoa e 20 minutos depois eu a encontrava e começava a mesma
conversa. E ela dizia: “nós acabamos de falar sobre isso”.
E eu fazia piada sobre
isso. Considerava que era um lapso comum. Eu não percebia que não possuía essa
habilidade humana de percepção que é muito básica.
Imagine que eu te
desse uma pedra. E 20 minutos depois pedisse que você identificasse essa pedra
entre várias outras. Você não conseguiria. Mas com rostos, você conseguiria — e
é porque você tem essa ferramenta inata que te ajuda.
Desde cedo, bebês
reconhecem rostos. Nós humanos somos obcecados com rostos. Outro grande exemplo
é pareidolia, quando você vê rostos onde eles não existem, como em um carro ou
em uma tomada. Somos completamente focados em rostos.
• No livro, você questiona o que é normal
e o que são diferenças que formam as pessoas. Você conclui que algumas dessas
diferenças, na verdade, são o que formam nossa personalidade. No seu caso, a
sua condição proporcionou diversos talentos específicos. Pode falar um pouco
sobre isso?
Dingfelder:
Definitivamente isso me fez ser uma criança muito solitária. Mas por ser
solitária, eu sempre li muito. E isso é ótimo treinamento para quem depois vira
jornalista e escritora.
E quando você tem
cegueira facial, tem duas opções: pode tratar todo mundo como um estranho ou
tratar todo mundo como um amigo muito próximo.
Algumas pessoas, como
Oliver Sacks, viram introvertidos, com timidez e ansiedade em situações
sociais. E pessoas como eu fazem o oposto.
Tem um senador
americano que também tem cegueira facial. É difícil imaginar um político deste
nível com essa condição, mas para ele funciona, porque ele trata todo mundo
calorosamente. E eu faço a mesma coisa.
Eu não percebia por
que fazia isso, mas eu fazia isso porque qualquer pessoa que eu encontro pode
ser uma pessoa que eu já conheço.
Eu acho que ter
cegueira facial a minha vida inteira me fez sentir confortável com não entender
toda a situação ao meu redor. Como repórter, eu constantemente preciso
descobrir tudo sozinha. Como no caso desse livro: eu não entendia o básico
sobre a neurociência da visão, mas eu sabia que quando começasse a investigar,
acabaria descobrindo. A cegueira facial me dá muita confiança para lidar com
esse nível de ambiguidade.
• Mas não foi só cegueira facial que você
descobriu. Além também da cegueira em estéreo, descobriu outras condições que
afetam como você forma imagens mentais e a sua memória?
Dingfelder: Sim. Essa
última que você mencionou soa como algo terrível. É chamada memória
autobiográfica severamente deficiente (SDAM, na sigla em inglês). Mas a pessoa
que descobriu isso estava tentando observar o fenômeno oposto — uma condição
conhecida como memória autobiográfica altamente superior. São as pessoas que
você vê na televisão de vez em quando, que são capazes de dizer exatamente o
que estavam fazendo, por exemplo, em 13 de outubro de 1996, qual era o clima
naquele dia, o que elas comeram no café da manhã. É um nível de detalhamento
incrível, mas o lado ruim para eles é que eles costumam se perder em um mar de
detalhes, e acabam tendo dificuldades de ter uma visão mais ampla sobre suas
vidas.
Mas para pessoas como
eu, é o oposto. Não consigo lembrar dos detalhes.
As pessoas costumam
lembrar de suas vidas como histórias. Se você já leu Em Busca do Tempo Perdido,
de Marcel Proust, tem um trecho muito famoso em que o personagem principal come
um doce madeleine e de repente ele é transportado no tempo para a sua infância.
O sabor do doce trouxe de volta toda a memória visual de sua infância. Eu
sempre achei que isso era algo poético. Eu não percebia que as pessoas
realmente têm experiências assim.
É o caso de pessoas
com síndrome de estresse pós-traumático, que têm flashbacks. Eu não entendia
que essas pessoas vivem novamente experiências traumáticas que tiveram. Então
um dos benefícios do SDAM pode ser que nós nos recuperamos rapidamente de perdas.
Quando eu era mais
jovem, costumava me recuperar bem rápido de namoros que acabavam. Morei com um
namorado por anos, mas quando acabou eu consegui superar tudo em duas semanas.
Enquanto isso, eu tenho uma amiga que quatro anos depois de acabar seu namoro
ainda não conseguiu deixar isso para trás.
Do meu ponto de vista,
ela é dramática. Mas agora eu entendo que o ex-namorado dela vive dentro da
cabeça dela. E ela consegue reviver experiências que teve com ele,
mentalizá-lo. Eu não consigo fazer nada disso. Então entendo por que ela para
ela tudo é mais difícil.
• Achei curioso que no seu livro, em uma
seção de recomendações a pessoas que podem sofrer com condições parecidas, você
não aconselha que as pessoas busquem um diagnóstico formal para si ou seus
filhos. Por quê?
Dingfelder: É porque
não existe um diagnóstico formal. Há duas “bíblias” de diagnóstico no mundo.
Uma delas é a DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), da
Sociedade Psiquiátrica Americana e a outra é a ICD (International Classification
of Diseases), que é produzida pela Organização Mundial da Saúde. E nenhuma
delas lista cegueira facial como um diagnóstico. Então elas não existem nesses
livros.
Ter um diagnóstico não
te qualifica para um tratamento. Aliás, nem existe tratamento.
Pode vir a haver no
futuro, mas hoje isso não te qualifica para nenhum serviço especial por
incapacidade.
• Mas você recomenda que as pessoas tentem
entender o que está acontecendo? Se você pudesse voltar no tempo e contar para
você mesma, quando criança, o que estava acontecendo, você faria isso?
Dingfelder: Com
certeza. Não vá ao médico em busca de um diagnóstico, mas certamente tente
fazer parte de estudos. Ainda mais se você tiver a sorte de morar perto de uma
universidade que estuda cegueira facial, que é um tópico bastante popular,
principalmente com pacientes criança. E é muito difícil encontrar crianças para
estudos. E achar crianças para estudos pode ser a chave para se descobrir como
resolver o problema.
Existe evidência de
que ensinar crianças a prestar atenção em determinadas coisas pode ajudar a
melhorar a condição.
Mas o principal é que
é importante ter autoconhecimento. É um pouco uma sensação mista. Porque eu
passei minha vida toda achando que eu tinha uma autoconfiança especial, e hoje
eu sei que parte disso é por causa da cegueira facial. Mas eu acho que saber ajuda
a entender a si próprio e como os outros te veem, e isso pode ser uma
ferramenta importante para se ter sucesso na vida.
• Você desenvolveu vários truques para
lidar com a cegueira facial. Quais são alguns deles?
Dingfelder: O
engraçado é que percebi que sempre tive amigos com características físicas bem
distintas. Meu marido tem mais de 1,92 metros. Ele é gigante, então eu costumo
encontrá-lo simplesmente procurando a pessoa mais alta que estiver por aí.
Uma das minhas
melhores amigas é bem pequena e tem cabelo comprido e azul. Mesmo que ela não
tivesse cabelo azul, ela é cheia de energia, é difícil não percebê-la, por
conta da sua personalidade.
É engraçado, porque
talvez haja muitas pessoas legais que simplesmente tem características físicas
comuns, medianas — mas eu sempre fui atraída por pessoas com características
mais marcantes.
Outro truque é que sou
boa em conversar com alguém para arrancar informações delas. Pelo menos uma vez
por dia, alguém chega para mim e diz “Oi, Sadie” e eu não tenho a menor ideia
de quem ela seja. Um dos meus truques é falar “Oi, faz um tempinho que não
falamos”. E isso faz com que a pessoa comece a falar sobre a última vez que nos
encontramos. É um bom truque, porque é genérico. Se eu tiver falado com a
pessoa há cinco minutos, ela vai achar que eu estou fazendo graça ou sendo
sarcástica.
Isso tudo me preparou
para ser boa repórter, porque estou constantemente tentando arrancar
informações das pessoas. Faço isso para saber quem elas são.
• Então, de certa forma, as soluções que
você encontrou para lidar com a cegueira facial acabaram a transformando em uma
espécie de superjornalista, com superpoderes?
Dingfelder: Sim. Sofri
quando criança, mas isso me faz pensar em um grão de areia, que é transformado
em pérola pela ostra. Da mesma forma, você acaba construindo uma personalidade
e habilidades ao redor do problema, até que isso se torna parte de quem você é.
• Você mencionou no seu livro que algumas
pessoas descobriram que são daltônicas graças a algoritmos do TikTok, que
sugeriam conteúdo sobre daltonismo a pessoas que nem sabiam que tinham a
condição. Você acha que algoritmos podem ajudar no futuro na detecção de
condições?
Dingfelder: É
incrível. Algoritmos estão ajudando as pessoas a se descobrirem. Eu não entendo
como o TikTok consegue. Mas acho que às vezes o TikTok acaba só mostrando o que
você quer ver. Se você está convencido de que tem alguma condição, o algoritmo
só mostra vídeos dessa condição. Então não sei.
Pessoalmente, eu estou
no TikTok e publico várias coisas sobre cegueira facial e minhas outras
condições, e recebo comentários de várias pessoas que descobrem que possuem
algo igual.
O que eu mais gosto de
ter publicado meu livro é que recebo e-mails de pessoas dizendo que possuem
condições parecidas.
Outra condição que
tenho é a afantasia, que é uma incapacidade de visualizar qualquer coisa. Ou
seja, quando eu fecho meus olhos, eu só vejo as minhas pálpebras. Eu nunca
entendi quando as pessoas diziam que visualizavam o rosto de quem ama. Eu
sempre achava que isso era uma metáfora.
Ou a ideia de contar
carneirinhos para dormir. Eu não consigo visualizar um carneiro pulando. Eu só
consigo contar os números.
• As condições que você descobriu – a
afantasia, a cegueira estéreo, a cegueira facial — elas estão ligadas entre si?
Dingfelder: Sim, elas
definitivamente ligadas. Mas muitas pessoas só têm uma das condições.
Nossos cérebros são
muito complexos. Por isso eu acho que boa parte dos termos que usamos hoje —
como autismo ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade — vão soar
completamente vagos e sem sentido no futuro. Nós vamos aperfeiçoar os
diagnósticos e conseguir definições mais estritas.
Quando conseguirmos
mapear os cérebros e entender o que está acontecendo em um nível molecular,
será possível identificar vários sintomas.
Se você tem dor no
peito e vai na emergência, a primeira coisa que os médicos fazem é ver se você
está tendo um ataque cardíaco ou se a dor vem de algum outro lugar.
Mas no caso de saúde
mental ou para algumas condições, a única coisa que temos é o sintoma. Por
isso, os tratamentos são baseados em tentativa e erro. Mas acho que no futuro,
teremos categorias específicas, tipo “ah, você tem cegueira facial do tipo 152.4”.
• Você conversou com outras pessoas que
têm essa condição. Algumas famosas, como Steve Wozniak, co-fundador da Apple.
Como foi essa experiência? O que você aprendeu com essas pessoas?
Dingfelder: Steve
Wozniak é um exemplo interessante, porque a cegueira facial dele é adquirida.
Ele sofreu um acidente de avião e teve um traumatismo no cérebro. E essa
experiência fez com que ele se interessasse por cérebros. Ele voltou para a
faculdade e concluiu seu curso. Então ele é uma pessoa que conseguia reconhecer
rostos, e que de repente perdeu essa habilidade.
Isso não o afetou
tanto porque ele já era famoso quando tudo isso aconteceu, e ele já conhecia
tanta gente, que as pessoas não esperavam que ele fosse lembrar de todos os
rostos.
Uma mulher que conheci
me contou uma história engraçada sobre cegueira facial que aconteceu há muitos
anos. Ela disse que estava em Los Angeles e que começou a conversar com um
jovem atraente. Ela perguntou qual era a sua profissão e ele disse que era ator.
Depois disso, uma amiga dela disse: “eu não acredito que você estava falando
com o Brad Pitt!”
Isso deve ter sido uma
experiência e tanto para Brad Pitt. Conversar com alguém que não o reconhece.
• Você foi descobrindo todas as condições
praticamente ao mesmo tempo?
Dingfelder: Sim. E
sinceramente acho que há mais coisas no meu cérebro. Uma vez que o seu cérebro
sai do caminho neurotípico, você começa a ter diversos problemas interessantes
e também pontos fortes.
O que diferencia uma
pessoa neurodivergente de uma neurotípica é que nós temos um perfil que oscila
muito — somos extremamente bons com algumas coisas e extremamente ruins em
outras.
As pessoas não
entendem isso. Como você pode ser tão boa em escreve e ao mesmo tempo não saber
se localizar dentro de uma loja, por exemplo?
Definitivamente é algo
que pesa muito. Houve dias em que chorei muito, mas em geral eu abordei tudo
com uma curiosidade intensa, porque eu realmente queria entender o que estava
acontecendo no meu cérebro, e o que acontece nos cérebros de pessoas neurotípicas.
• E agora que você descobriu tudo isso, o
que você pretende fazer?
Dingfelder: Aprendi
que os cientistas estão finalmente começando a estudar as experiências
subjetivas interiores pela primeira vez em 100 anos.
Passei minha vida toda
presumindo que a minha experiência é basicamente a mesma das demais pessoas, e
quase aos 40 anos eu descobri que não. A maioria das pessoas vive uma vida
muito diferente da minha. Suas vidas interiores e suas percepções são muito diferentes.
Mesmo entre pessoas
neurotípicas, há várias diferenças. Algumas pessoas não têm um monólogo
interno, outras são cheias de camadas de monólogos internos. E acho que a
experiência humana é muito escondida. Existe uma diversidade escondida da
experiência humana.
Descobrir isso me
ajudou a apreciar e ser menos impaciente com as outras pessoas.
Para mim, algumas
coisas são tão fáceis que eu não entendo como outras pessoas não conseguem
fazer. E eu sou horrível em tantas outras. Como pegar uma bola, por exemplo. Eu
às vezes acabo menosprezando essas coisas que eu não consigo fazer. Digo a mim
mesma: "pegar bolas é uma bobagem".
Fonte: BBC News Brasil
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