Marcos Buckeridge: ‘As várias faces dos
incêndios no Brasil’
Os incêndios que
estamos acompanhando em 2024 são, em parte, devidos a eventos naturais e, em
parte, por ação dos seres humanos. A questão se as mudanças climáticas têm a
ver com o que está acontecendo não é uma pergunta com resposta simples. Isto
porque os incêndios que vemos acontecer no Brasil (e no mundo) fazem parte de
um processo que se repete constantemente. Só no Cerrado brasileiro, já se sabe,
a partir de análises do carvão armazenado em solos profundos, que há incêndios
se repetindo há mais de 30 mil anos. Sempre há incêndios, esteja ou não o ser
humano presente, pois o material produzido no Cerrado por uma ou mais estações
secas fica na superfície e, se a região for propensa a ter tempestades
elétricas, a ignição ocorre naturalmente.
Há também a regra do
30-30-30, ou seja, temperatura acima de 30 graus num momento em que a umidade
seja menor do que 30% e vento acima de 30 km/h. Portanto, uma vez que condições
como estas estejam vigentes, basta a ignição, que pode ser um raio ou uma bituca
de cigarro atirada de um automóvel trafegando por uma estrada ao atravessar,
digamos, uma região de plantação de cana. O ponto principal está, portanto na
ignição. Não temos (ainda) como controlar as tempestades elétricas, mas não
atirar a bituca de cigarro é algo muito fácil de evitar. Esses dois meios de
ignição são acidentais. Há um terceiro, que está relacionado à psicologia.
Segundo me contou um bombeiro que combate incêndios em São Paulo, algumas
pessoas têm problemas psicológicos, ou seja, são incendiárias e precisam de
tratamento. Outros são realmente criminosos e causam incêndios para prejudicar
outras pessoas ou por dinheiro.
Os grandes incêndios
ocorrem quando o sistema fica muito tempo sem queimadas. Nesses casos, uma vez
que o incêndio é iniciado, se espalha muito rápido e é extremamente difícil de
controlar. Foi por isso que os ocupantes das regiões de Cerrado, muito antes
dos europeus, foram desenvolvendo técnicas de queima controlada, atuando para
diminuir a biomassa e com isso evitar os grandes incêndios.
O bioma que queima
mais fácil é o Cerrado, pois há muita palha (gramíneas secas). Mas este tipo de
fogo é rápido e não permite ao calor penetrar muito no solo. Isto é importante,
pois muitas plantas do Cerrado desenvolveram sistemas com órgãos subterrâneos
que brotam depois do fogo. Se a penetração do calor for muito profunda, pode
matar grande parte das plantas, e o Cerrado irá rebrotar somente com as
sobreviventes, demorando muito mais para regenerar. Por isso, quando não há
queimadas controladas (como fazem os povos originários há muito tempo), grandes
incêndios ocorrem e é aí que o desastre é muito grande, com perda de plantas,
animais e danos até aos microrganismos do solo, sem falar dos moradores da
região. No Pantanal, há fisionomias de Cerrado, e também raios, o que serve
como ignição e leva aos incêndios. As matas ciliares, cheias de árvores e com
jeito de floresta, no período seco acabam queimando também.
Já na Mata Atlântica e
Amazônia, queimar é bem mais difícil por causa da umidade que raramente cai
abaixo de 30%. Mas se a seca for muito forte, podemos ter queimadas em
florestas também. Aí o desastre é maior ainda, pois a recuperação demora bem
mais. Pode durar décadas até que a floresta se regenere.
Em regiões onde temos
fragmentos de florestas, como no Estado de São Paulo, o problema é que as
queimadas que pegam a cana podem invadir fragmentos de florestas, causando a
perda do pouco que nos resta.
Já aprendemos que há
uma ordem nos compostos que vão queimando e que tudo depende de quanta energia
há no processo de queima. Isso é importante, pois há fogos que são rápidos e
outros mais demorados. Se pegar fogo em troncos de árvores, principalmente as
que têm resinas, pode queimar por muito tempo e impedir ações efetivas para
deter o incêndio.
Conforme as plantas
vão queimando, primeiro saem os materiais voláteis, que vão reagindo e se
transformando em outras moléculas, muitas delas substâncias prejudiciais à
saúde, inclusive cancerígenas. Os materiais que exigem mais energia para
queimar acabam mandando material mais grosso (partículas maiores) para a
atmosfera e, dependendo das correntes de ar, podem sair lá da Amazônia ou mesmo
da Bolívia e chegar ao Sudeste do Brasil. Se não chover, todo esse material
fica suspenso no ar e aí é que se forma essa grande “nuvem de fumaça” que
estamos vendo em vários lugares do Brasil. Quem sofre, nesse caso, são os
nossos pulmões, os dos outros animais e até as plantas, que podem ter seus
processos fisiológicos alterados por compostos presentes na fumaça.
Em 2019, tivemos um
episódio de “chuva preta” que escureceu o céu de São Paulo em plena luz do dia
e trouxe material particulado na direção da cidade. Agora, este mesmo fenômeno
está ainda mais amplo e sendo visto em Porto Alegre. O material particulado que
veio parar em São Paulo carregou desde partículas pequenas até pedaços de
plantas. Esses materiais vão caindo onde chove e transferindo a poluição do ar
para a água.
Até agora falei do
fogo como algo que tem parte natural e parte humana no caso da ignição. Mas as
atividades humanas vão mais longe. O aumento de temperatura devido às mudanças
climáticas globais vem se tornando um fator importante na ampliação dos focos
de incêndio no Brasil e no mundo.
Para entender esse
lado da ação humana, é útil compreender como as variações climáticas podem se
combinar na forma de uma “tempestade perfeita” (caso do Rio Grande do Sul, por
exemplo). O papel do aumento de temperatura relacionada às ações humanas vem ficando
cada vez mais importante e se tornando o vilão dos vilões do clima. Um exemplo
é que a ciência já aponta para o fato de que o aumento de temperatura no
Cerrado poderia ter potencial para eliminar o “ponto de orvalho”, que é o que
umedece tudo de manhã. Sem umidade no solo, perde-se uma das últimas barreiras
para atenuar os efeitos da queimada e, com isto, a perda de biodiversidade pode
ser enorme.
Em locais como a
Amazônia e a Mata Atlântica, o “ponto de orvalho” ainda não seria afetado, a
não ser nas bordas dessas florestas. E se pegar fogo numa onda de seca muito
forte, como esta de 2024 – ou, pior ainda, como a de 2013/2014, quando não
choveu no verão – aí teremos incêndios de dimensões ainda maiores do que os que
estamos vendo agora.
Tudo isso se relaciona
com a situação de “tempestade perfeita”: clima “adequado” para o fogo
(30-30-30), raios, psicologia social e mudanças climáticas. Esta é a condição
incendiária que estamos vivendo em 2024 no Brasil.
Não bastassem os
problemas apontados acima, podemos ter consequências igualmente catastróficas
na nossa economia. Isto porque incêndios de grandes proporções podem afetar
negativamente a nossa agricultura, atividade de grande importância econômica
para o Brasil. Aí tem vários ângulos pelos quais podemos olhar. O material
particulado age negativamente (diretamente) sobre as plantas, causando efeitos
tóxicos.
Ainda sabemos pouco
sobre como as substâncias produzidas pela queimada podem agir. Há inúmeras
hipóteses. Uma delas é que compostos como etileno, que é um hormônio vegetal,
possam causar “confusão” na produção de frutos e no “amadurecimento” da cana no
campo. O material particulado também tapa o Sol e diminui a fotossíntese. Se
esse material ficar muito tempo suspenso no ar e as plantas “perderem” várias
semanas de fotossíntese, pode até haver impacto na produção agrícola de plantas
como soja, milho e cana, os carros-chefes do sistema de produção agrícola
brasileiro.
No meu laboratório
temos trabalhado com plantas de soja cultivadas em alto CO2 em combinação com
seca e alta temperatura. Já vimos que o efeito do CO2, que parecia benéfico,
quando combinado com os dois estresses, torna a produção de sementes negativa.
Juntando tudo isso com a fumaça e menos fotossíntese, é possível que a produção
possa ser, sim, afetada. Se não for neste ano será no próximo, ou ainda no
outro ano, já que, com as mudanças climáticas, a situação tende a ficar cada
vez pior.
Se a situação piorar
muito, as preparações que fizermos poderão se tornar o que chamamos “enxugar
gelo”, já que não teremos como controlar os incêndios, o que pode criar uma
situação realmente caótica. Apesar dos frequentes alertas, os governos têm dado
resposta muito lenta com planos que atenuem os efeitos catastróficos que temos
presenciado.
O que está acontecendo
em setembro de 2024 é mais um alerta que se junta ao que tivemos com o evento
no Rio Grande do Sul em maio deste mesmo ano. Um alerta de que os piores
efeitos das mudanças climáticas já estão começando a nos cercar.
• A fumaça que cobre o Amazonas esconde
seus causadores. Por Valcléia Solidade
No dia 6 de agosto de
2024, o município de Humaitá registrou a pior qualidade de ar do Brasil. Na
mesma semana, Manaus e outros municípios do Amazonas ficaram encobertos pelo
fumaceiro que, até aqueles dias, não tinha cheiro tão forte, mas que estava sendo
inalado pelos amazonenses. Após esse episódio, passaram-se alguns dias com o
céu azul, seguido pelo Sol brilhante causando calor extremo, já conhecido pelos
nortistas. Mas não durou muito. Alguns dias depois ela voltou, com intensidade
ainda maior. A fumaça visível em toda a região metropolitana e rural, e
invisível para o resto do País.
Deveríamos fazer uma
reflexão para entender o porquê não aprendemos com as lições que enfrentamos.
Em 2023, sofremos com a poluição do ar, que começou a ser sentida ainda em
agosto daquele ano, intensificou-se em setembro e se estendeu até dezembro.
Mesmo diante de tantas notícias e pesquisas apontando sobre novas estiagens
extremas e do que sabemos – as secas sempre estão acompanhadas as queimadas –
fica o questionamento: Por que não houve preparo?
O que estamos
assistindo, enquanto respiramos o ar insalubre, além de ser a repetição do que
aconteceu em 2023, é uma situação que começou ainda mais cedo. Ao mesmo tempo
em que se aponta o problema, é importante que façamos outras perguntas: de onde
vem e quem são os causadores disso? Ela vem da agricultura familiar? Ou será
que é maior que isso? Quais os nomes? Essa poluição afeta várias outras
localidades, às vezes até municípios que não estão causando queimadas, mas
sofrem com a poluição do ar, porque o vento transporta esse fumaceiro.
Quando tivermos, de
fato, os nomes e as devidas punições, talvez toda essa situação seja combatida
e não se torne mais uma ação recorrente, em que todos os anos temos novos
artigos e noticiários relacionados à péssima qualidade do ar no estado do
Amazonas. Solucionar essa questão requer um esforço coletivo, porque não existe
um único culpado.
No caso de quem afirma
que os causadores desse problema são pequenos produtores rurais, já ouvi
dezenas de vezes a afirmação de que “as queimadas são um mal necessário para a
agricultura”. Sabe por que dizem isso? Porque pouca tecnologia chega nas comunidades,
então a alternativa é colocar fogo no solo para queimar área e fazer a roça. E
é importante frisar que é essa roça, muitas vezes, que garante a segurança
alimentar e que abastece as sedes dos municípios e nossa mesa.
Se for realmente isso,
precisamos entender qual é o preço que estamos pagando por isso, e não somente
responsabilizar a agricultura familiar. É só desse segmento que estão vindo as
queimadas? Será que não vem de outras áreas como das produções de pastos ou de
monocultura, por exemplo? A gente precisa de fato colocar em uma balança,
analisar e ter resolução.
Nós temos atualmente
tecnologias de manejo do solo para agricultura que dispensam o uso do fogo.
Infelizmente, as pessoas que vivem mais distantes das sedes de municípios não
têm acesso às técnicas e mecanismos para que essas tecnologias sejam implementadas.
Mas é dessas pessoas, que são privadas do acesso, a responsabilidade pelas
queimadas e fumaças? Porque até agora não se tem clareza de onde esses
incêndios partem. Nós estamos monitorando, vendo e sentindo, mas identificar e
provar que isso vem de agricultura familiar não se tem confirmação.
No Amazonas, ficamos o
ano inteiro preparando ações paliativas. Mas não há medidas mais severas que
impeçam que as queimadas aconteçam. A situação está insustentável e toda a
sociedade está sendo afetada, independentemente de onde você esteja. Somente quando
você consegue identificar o problema, é possível direcionar soluções.
Por exemplo, se for
confirmado que a fumaça vem de agricultura familiar, governos e sociedade civil
precisam levar essas alternativas tecnológicas lá na ponta. Porque, de certa
forma, se for (e eu não estou afirmando que é) a agricultura a origem principal
desse problema, é ela quem abastece as nossas casas, e não podemos viver sem a
farinha, sem a tapioca, sem o tucupi e tantos outros produtos. Agora, se o
fumaceiro não estiver vindo deles, se for de monocultura, precisa aplicar a
legislação que já existe, para que esses impactos sejam minimizados.
Se não houver solução,
a cada ano estaremos acelerando a nossa extinção da Terra. Essa situação não
pode continuar sendo assistida sem ações. É necessário identificar a quem
interessa ou quem está sendo a fonte primária do problema. Minha avaliação é
que a poluição do ar tem muita especulação e pouca clareza dos seus
responsáveis.
Fonte: Jornal da USP/O
Eco
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