Luiz Marques: Declínio das ideologias e da
política
A palavra “política”
vem do grego pólis e, desde sempre, debate o princípio de
organização da cidade e as visões dos atores sociais. A política não se resume
à questão do poder, mas se exprime na predominância de um grupo social sobre os
demais. Em São Paulo ou Porto Alegre, um divisor sobrepõe os interesses das
megaconstrutoras que veem nas metrópoles a oportunidade de especular e lucrar
às genuínas demandas da população, que batalha por espaços de convivialidade
ambiental, pluralismo de ideias e diferentes estilos de vida. Tal polarização é
o nó górdio urbano. A novidade é a tendência sociointelectual que reatualiza
Pierre Birnbaum, em La fin du politique, livro publicado há
cinquenta primaveras acerca do desejo de zerar o amanhã, para perpetuar as
antigas hierarquias.
Entre os séculos XVII
e XVIII, acreditou-se que cabia à razão tomar a direção dos movimentos de
renovação política e social, conforme os especialistas destacam ao esmerilhar o
período na Europa. No século XIX, o racionalismo esmorece com o
advento em cascata de revoluções nos anos 1820, 1830, 1848 e 1871. Entra em
cena a narrativa das ideologias: as progressistas que dão significado à
história e, as conservadoras, que pregam o funcionamento natural e ininterrupto
do corpo social.
No século XX, o
fascismo galvaniza o reacionarismo lampedusiano em face da possibilidade de
mudanças. Por abdicar do preceito normativo próprio da filosofia e da teoria
política, a razão perde de vez a autonomia e o potencial para alterar o jogo;
assume um caráter instrumental. O prestígio do pragmatismo deriva do que Max
Horkheimer alerta em Eclipse da razão – “o reflexo da
sociedade que não tem mais tempo para se lembrar e meditar”.
A realpolitik preenche
brechas para melhorar o presente em conjunturas de correlação de forças
desfavorável, sem acirrar aqueles enfrentamentos que provêm da divisão em
classes sociais. Em tese, alianças e concessões na adversidade obedecem a uma
estratégia de acúmulo de musculatura para a reinvenção do futuro; quando não
tropeçam.
No século XXI, a
ascensão da extrema direita conduz ao esvaziamento da reflexão crítica, em
troca da subjetivação antipolítica. A meta de solidariedade nas relações
sociais se desmancha no ar. O útil torna-se a categoria para representar a
realidade e atender a urgência do concreto. O americanismo enaltece o
utilitário, o tecnológico, o self-made man. Influenciadores
digitais monetizam a fantasia do empreendedor que se faz sozinho, sem depender
das ações estatais. Viralizam os finalismos pós-modernos: o fim da luta de
classes, o fim das ideologias, o fim da política. O fim do horizonte.
·
Uma mensagem clara
Nos Estados Unidos,
métodos quantitativos são o critério da revelação da verdade. A Universidade de
Chicago estimula os economistas a usarem o termo “behaviorismo”, de preferência
à “ciência social”, para esconjurar a conotação socialista e obter financiamentos
da administração federal. O não mensurável ou controlável fica na estante da
metafísica. A sociologia do (des)conhecimento impacta as disputas políticas ao
abstrair a vocação mudancista, na expectativa de atrair a simpatia da maioria.
A inteligência artificial das Big Techs auxilia na coleta de
dados para uma acomodação ao programa dos partidos. A trajetória diacrônica da
teoria e da prática converge no silenciamento dos protestos, diminuindo o ardor
por justiça social e dignidade transversal contra a necropolítica.
A mídia corporativa
desconstitui os vetores que distinguem os rumos da sociedade, ao fiscalizar as
“promessas” em cada eleição para readequá-las ao sistema. “A prefeitura deve
usar dinheiro público para eventos de teor ideológico como o Fórum Social Mundial?”,
pergunta um diretor-executivo da RBS, sem incluir o Fórum da
Liberdade promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE). A mensagem é
clara; o mensageiro é ardiloso. O estratagema de quinta série determina a
resposta. O projeto da esquerda é interditado, e o da direita é incensado. A
“ética da responsabilidade” (fiscal) basta às autoridades. A “ética da
convicção” (em ideais) é inútil, ultrapassada. Não há alternativa.
A hegemonia do
dinheiro descaracteriza a atividade política; aparta-a do humanismo. O Le
Monde Diplomatique denuncia o “pensamento único” propagado pelo
neoliberalismo. A guinada da social-democracia ao Norte navega no Consenso de
Washington, amplia a crescente frustração e exporta o ressentimento para o Sul,
com a queda de renda da classe média e dos trabalhadores. Com o que o amor se
recolhe à coxia e o ódio sobe ao palco da globalização, apresentada qual uma
panaceia.
A aparência técnica e
a-ideológica das deliberações demonstra o elã sebastianista para purificar
o laissez-faire e expulsar o igualitarismo. A saga pragmática
fornece oxigênio à miséria da política para espalhar o vírus que reproduz os
retrocessos civilizacionais, aos quatro ventos. Os demagogos escondem o retorno
à acumulação primitiva. Se Napoleão Bonaparte pôde rebatizar a “Praça da
Revolução” como “Praça da Concórdia”, local da guilhotina em Paris; então o
capital pode fraudar os valores fundadores da modernidade para salientar as
antinomias contemporâneas. A saber, o progresso pessoal às expensas da
coletividade, e a liberdade individual à revelia do bem comum.
·
O princípio-esperança
O positivismo não
capta a especificidade metodológica da ciência social frente as ciências
naturais: (a) O caráter histórico dos fenômenos sociais, suscetíveis de
alteração pela intervenção humana; (b) A identidade parcial entre o sujeito e o
objeto do conhecimento, que não pode ser ignorada; (c) o fato de que os
problemas sociais suscitam concepções antagônicas nas classes sociais e; (d) As
implicações da teoria para esclarecer a verdade e suas consequências
transformadoras sobre o establishment. Nada disso é analisável no
microscópio de um laboratório da biologia, ou detectável pela lente ortodoxa do
monetarismo que ilude a forma da economia, com um conteúdo classista.
Como sublinha Michael
Löwy, em Método dialético e teoria política: “As percepções de
mundo das classes sociais condicionam a última etapa da pesquisa científica
social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas também a
escolha do objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é
acessório, as questões que colocamos à realidade e a própria problemática da
pesquisa”. A barbárie tenta apagar os vestígios de classe na irracionalidade da
“guerra cultural”, da “escola sem partido” e da “ideologia de gênero”. Já a
desobediência civil olha para cima, e interpela os iguais.
A desideologização das
ideologias e a despolitização da política permite o pacto das recherches com
os mecanismos da dominação e, ainda, a pregação da fé no socialismo. A derrisão
da imaginação profética para indicar caminhos desemboca em um desencantamento.
Ao revés de questionar a teia sistêmica, muitos preferem descrever sua
funcionalidade. A dialética da totalidade é estilhaçada em pedaços
desconectados. A racionalização da ordem consagra o conformismo. A rebeldia se
refugia nos bares. “No espelho / de relance / a cor do sonho / de ontem”,
destila um haikai de Paulo Leminski.
As baixas taxas de
sindicalização e militância anticapitalista são os sinais da época de declínio
das ideologias e da política, perante a desindustrialização e o avanço do setor
terciário (o comércio e a prestação de serviços). Sintomatizam o colapso da democracia
e a alvorada dos regimes de exceção; o aumento da desigualdade e a era da
depressão; a precarização do trabalho e a superexploração. O solo está fértil
para a semeadura do horror. Donald Trump, Jair Bolsonaro, Javier Milei e
o coach da cadeirada são criaturas sombrias do esgoto do
individualismo neoliberal. A institucionalização dos conflitos fracassou. As
luzes se apagaram. Faz escuro e ninguém canta. A festa acabou. E agora?
A via de
transformação, hoje, se desloca do foco na propriedade dos meios de produção à
gestão pública do Estado, em todos os níveis federativos. Para recuperar a
noção de luta de classes, urge despertar a ideologia latente no campo popular,
a participação cidadã. O apelo à ideologia manifesta dos clássicos não
substitui as vivências. A participação social é o símbolo de uma experiência
bem-sucedida de governança, sendo o elo organizativo para a emancipação do
povo.
O desafio está em
superar a epistemologia empirista para transpor a consciência real e
desenvolver uma consciência possível. O “princípio-esperança” carrega a energia
necessária para vencermos a paralisia. Só assim o sentimento das manhãs poderá
derrotar o apoliticismo que paira – soturno – sobre o nosso tempo.
Fonte: A Terra é
Redonda
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