Lenio Luiz Streck: ‘Caso Silvio Almeida - o
fato político fagocitou o fato jurídico(?)’
Vejam que o título
contém um ponto de interrogação, mas que pode não ser um ponto de interrogação.
A interpretação é dos leitores.
O espírito do tempo
(Zeitgeist) das redes sociais aponta para esse novo modo de encarar os
fenômenos que envolvem moral, política e direito. Já não se interpreta como
dantes. Cada dia aumenta o viés. De dos tipos:
# (1) O viés de
confirmação, pelo qual o opinador apenas confirma a sua opinião e encontra um
modo de o fazer;
# (2) Tem também o
“viés do autor do fato”, isto é, como se em face (da qualidade, dos atributos)
do autor a cognição do fenômeno mudasse, exsurgindo, nessa linha, (a) o viés de
gênero (veja-se Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, expedido
pelo CNJ, em que o problema já está no próprio título, que regionaliza a visão
sobre um determinado tema), (b) o viés de raça, (c) de meio-ambiente (fala-se
em “ponderação verde”), (d) de sexualidade, (e) de machismo ou (f) até mesmo
viés de origem de textos, como se pode ver pelas teses de(s)colonialistas.
• Para explicar
A hermenêutica possui
caráter universalizante, porque a realidade não é, e nem o direito,
interpretada em fatias morais ou ideológicas. De todo modo, pelo princípio da
caridade epistêmica (Blackburn e Davidson), entendo que todas essas pautas e
iniciativas são gestadas na mais boa boa-fé. Parto dessa premissa.
O recente episódio
envolvendo Silvio Almeida engloba vários desses aspectos “viezísticos”.
Criam-se as “hermenêuticas regionais”. Ou tais “interpretações” (apenas) são
efeitos colaterais do Zeigeist, mesmo que os contendores não confessem ou nem
tenham (tido) essa intenção.
O terreno é fofo,
arenoso. Há muito fofismo juspolítico na discussão. Facilmente quem se atreve a
comentar pode afundar. Nesse âmbito — e principalmente na especificidade
envolvendo gênero — corre-se o risco de confundir o correto com o verdadeiro.
Calma. Explicarei. Trata-se de uma questão hermenêutica. Que não é regional.
Há um enunciado antigo
— e agora reforçado pelo viés (que é o mesmo que “perspectiva”) de gênero até
mesmo institucionalizado pelo CNJ no referido Protocolo — pelo qual a palavra
da vítima nos crimes sexuais assume foros de plenipotenciaridade. Uma espécie
de direito penal do autor, se traduzirmos para uma linguagem contemporânea.
Hermeneuticamente, não
é incorreto afirmar que nos crimes sexuais a palavra da vítima ter fundamental
importância, pelas características do delito. Há décadas a jurisprudência diz
isso. E, agora, com a alteração dos tipos penais, a questão assume ainda maior
relevância.
Chamo a atenção que o
enunciado, que é correto, pode, porém, não ser verdadeiro. Porque nem sempre o
correto é verdadeiro, porque este, o verdadeiro, exige incursão no caso
concreto. “Chove lá fora” é um enunciado correto, empiricamente verificável
sempre, mas pode não ser verdadeiro “se não estiver chovendo lá fora”.
A isso se chama “fazer
uma epistemologia de como se forma uma prova”. Para o enunciado correto ser
considerado verdadeiro necessita ser comprovado com elementos objetivos —
chamados de prova, conforme discuto no Dicionário de Hermenêutica e no Verdade
e Consenso, a partir da questão “correto” v. “verdadeiro” (chamo a isso de
Condição Hermenêutica de Sentido).
• Querem testar a tese?
Vamos lá. O presidente
Lula fez um enunciado correto, quando disse que “acusações de assédio sexual
são inadmissíveis no seu governo”. Todos concordamos. Mas esse enunciado
somente será verdadeiro se, de fato, estiver provado o assédio sexual.
Repetindo: nem de
longe é incorreto dizer que nos crimes sexuais a palavra da vítima é fundante…,
porém isso por vezes nem de longe pode significar que seja verdadeiro no caso
concreto. Caso contrário, o enunciado é meramente metafísico (no sentido ontoteológico
do termo).
A pergunta que fica é:
o Zeitgeist chegou ao ponto de dispensar a prova de que fala qualquer sistema
de estado democrático e sistema de garantias? Existem hermenêuticas regionais
pelas quais a prova pode ser relativizada por meio de vieses (como é o caso do
viés ou perspectiva de gênero previsto em Protocolo do CNJ)? Disso ainda
teremos que falar muito no futuro. E no presente.
Reconheço a delicadeza
do assunto, num mundo em que já foi destruída a estátua do cientista que
inventou a Lei pela qual de “um é não se pode tirar um deve”.
Além disso, a questão
posta no debate é a de que Silvio foi demitido no âmbito (apenas) político,
como se âmbitos desse tipo (politico, jurídico e moral) pudessem ser cindidos.
Volto logo a isso.
Antes, arrisco trazer
um exemplo que se encaixa neste Zeitgeist. E, por favor, não briguem com o
mensageiro. Fui ao médico e, na volta, chamei um Uber. Dirigido por uma mulher.
No caminho, pus-me a ler um livro que levei no consultório (levem sempre um livro
quando forem a um médico).
Desci, dei a nota 5
estrelas e acrescentei o valor que sempre faço, cheguei em casa e pensei com
meus botões: se, por alguma contingência que ninguém domina, a distinta senhora
ou senhorita fosse a uma delegacia e denunciasse um assédio de minha parte. Ou
delito de injúria racial, se ela fosse negra. E, ao tempo em que o BO era
feito, lá estivesse um jornalista e, no jornal da TV do meio-dia, a manchete:
Fulano assedia motorista… O resto imaginem. Como provo o contrário?
E, vejam. Aqui entra o
duplo aspecto. O “fato” político-moral e o “fato” jurídico. No âmbito do
fato-político-moral, sendo eu figura (mais ou menos) pública, já estaria
lascado. O tribunal da mídia julga rápido. O travesseiro de penas jogado do
alto da torre mais alta da igreja.
Trata-se de uma
neo-ordália. Prova do demônio. Eu prefiro até a prova do “pintinho da tribo
Azende” (um veneno, previamente preparado por pajés, é dado ao pintinho; se ele
sobreviver, você é inocente).
Do ponto de vista do
fato jurídico, o furo será (um pouco) mais embaixo. Mesmo com viés etc., até
existe a chance de ser absolvido. No primeiro (fato político-moral), derrota
certa, como foi o caso de Silvio. No segundo (jurídico), a luta apenas começa. Se
vencer, perde. Se perder, perde. A questão é: é possível separar o político do
jurídico?
• Soma zero
Um dilema. O que é
dilema? É quando qualquer decisão é desastrosa para o réu. Não há como vencer.
Então, o que não
deveria ocorrer? Não deveríamos ter medo de opinar sobre esses assuntos. Mas
temos medo por causa do Tribunal do Zeitgeist dos vieses. Das hermenêuticas
regionais.
No caso, Silvio já foi
defenestrado em pleno voo, com a desculpa (ou justificação política) de que
esse defenestramento não foi jurídico, foi (apenas) político. E que no “fato
jurídico” há(verá) ampla defesa. Mas, pergunto: de que adianta(rá)? Aliás, interessante
notar: a exposição é público-midiática; já a apuração disso tudo é… sigilosa.
Fica a pergunta: a
política está tão irracional que se dá ao luxo de ignorar o jurídico? Está tão
destrambelhada a política que dispensa o “devido processo racional?
Se a política permite
julgamentos sumários (ao que se viu, sim), então temos não apenas problemas no
campo jurídico; temos seríssimos problemas no campo político. Que optou em se
autoproclamar “o Tribunal”. O grande Tribunal.
A política chega ao ponto do modelo do juiz interpretado por Stallone
que, no futuro distópico, sumariava os réus?
Como retranca que
deveria ser desnecessária, não estivéssemos no Zeitgeist do sumarismo: as
vítimas devem ser apoiadas, respeitadas e o Estado deve cuidar delas. Mas o
ônus da prova continua sendo do Estado. Não é do réu. É, afinal, o ônus de
qualquer regime democrático.
Devemos ler as
Eumênidas, da trilogia Oresteia (minhas aulas iniciam com a peça!). Orestes
mata a própria mãe e estava lascado. A “lei” determinava” que as deusas da
Raiva e do Ódio (que agora se mudaram para as redes sociais) se vingassem e
“comessem” o rim e o fígado do Orestes. Pois não é que a Juíza Palas Atena
concedeu um julgamento a Orestes? Com acusação e defesa? Com imparcialidade? E
não é que Orestes foi absolvido?
Bom, se não quiserem
ler Ésquilo, leiam Guimarães Rosa, Grande Sertões, no julgamento de Zé Bebelo…
Tudo muito parecido.
Há uns anos, apanhei
muito quando escrevi sobre o caso do “ejaculador do ônibus” (aqui). Mas meu
ponto era simples: não podemos cair num positivismo raso de que “ah, não
condenamos legalmente, mas condenamos moralmente”. Há que se ler Alasdair
MacIntyre. Ao menos seu diagnóstico.
Se MacIntyre é
controverso demais, fiquemos com um liberal soft como Jerome Waldron. Vivemos
em tempos de desacordos profundos. Agimos como se o emotivismo (essa praga
contemporânea) fosse verdadeiro. Daí o papel do direito: o de “segurar” esses
desacordos (disagreements), agindo como filtro institucional. Ignorar o
jurídico, assim, significa dar um passo em direção à barbárie.
Vale para os inimigos
e para os amigos. Como por exemplo, a questão que envolve a Lei de Proteção de
Dados (LGPD) e o papel da ONG Me Too (falo do tratamento dos dados),
questionado por Reinaldo de Azevedo no UOL.
Se fosse fácil, todo
mundo defenderia o rule of law. A civilização tem seus desafios. Mas o bônus
compensa o ônus. Meu apelo aos democratas: não saiamos agindo como gente que
amarra “bandido” em poste, que lincha, que acha que “bandido bom é bandido morto”
etc. A linha entre os justiçamentos é bem tênue. E os justiçamentos são de todo
o tipo. Do poste às telas… de smartphones, folhas de jornal e computadores.
Luiz Eduardo Soares —
para mim, absolutamente insuspeito nessa história — disse bem, quando chamou de
condenação perpétua. Incompatível com o paradigma constitucional. Diz ele: “O
conflito seríssimo entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando
a sério as acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção da inocência e o
direito de defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja
legalmente, seja cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o
abismo por um fio, e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu,
ter humildade e extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação
dramatiza de forma tão intensa, por suas implicações” (grifos meus)
E, insisto, rejeito o
positivismo fofo (o fofismo está na moda) de quem diz que “ah, mas é julgamento
moral”. E, em que momento, não é? Ora, sempre é moral, porque é impossível
separar direito e moral. Ademais, não existem fatos brutos. Meu julgamento de
moralidade política é simples (e complexo): fico com o direito, que abarca a
moral. Para o bem e para o mal, porque o mal, aqui, é o menor deles.
Estou dizendo que a
palavra de uma vítima não importa? Que é mentira? Que Anielle, que quaisquer
mulheres vítimas de quaisquer crimes ou agressões não merecem respeito,
credibilidade? Óbvio que não. Só estou dizendo que se deve ter cautela com
justiçamentos que não esperam o tempo da lei. Condenações políticas e morais
não são cindíveis do direito e do rule of law.
• Mais
Condenações rotuladas
como “meramente políticas” não têm o condão de criar dois mundos separados: o
do direito e o da política. Ou o da moral. Essa discussão já deveria estar
ultrapassada, depois de rios de tintas que já se gastou sobre isso.
É isso. De um “é”
(fato) não se tira um deve (proposição de moral). É a Lei de Hume. Também
chamada de guilhotina de Hume. Que corta cabeças.
Cuidado com o viés de
confirmação, que tem uma longa história. Em 1620, Francis Bacon assim
conceituou: “Uma vez que o entendimento de uma pessoa se baseia em algo (seja
porque é uma crença já aceita ou porque o agrada), isso atrai tudo a sua volta
para apoiar e concordar com a opinião adotada.”
E lembremos de C.
Pierce: quando já não é o raciocínio que determina a conclusão, o resultado
inevitável será a rápida deterioração do vigor intelectual. A pessoa perde sua
concepção de verdade e razão e o raciocínio passa a ser meramente decorativo.
¨ A condenação perpétua de Silvio Almeida. Por Luiz Eduardo Soares
Vocês acham que não
tem nada a ver com racismo, a velocidade fulminante com que se acusou, julgou e
condenou à abominação perpétua e irrevogável um homem, um homem negro
brilhante, devotado à luta antirracista, que por sua capacidade e trajetória se
destacava como postulante a posições de liderança em âmbito nacional e
internacional? Vocês acham mesmo que a sem-cerimônia com que se lhe marcou o
lombo com a figura em brasa do banimento nada tem a ver com a cor desse homem,
com sua ancestralidade, com a negritude retinta de sua pele? Silvio Almeida, em
menos de 24 horas, foi banido da pátria dos cidadãos decentes e honrados,
aqueles a quem se concede voz e dignidade. Faria sentido que ele viesse a ser
para sempre um apátrida, vagando entre o desprezo arrogante da direita e a
repulsa inflamada da esquerda? Um homem invisível?, não, pior.
Vocês pensaram que não
haveria destino mais doloroso do que a invisibilidade? Pois há, porque a
invisibilidade, embora devastadora, pode servir a estratégias de sobrevivência,
oferecendo uma espécie de sombra para quem precisa desesperadamente escapar de
algozes onipresentes. Invisibilidade pode ser trincheira solitária para quem o
desaparecimento é morte mais suportável do que o aviltamento sem consolo,
trégua ou salvação. O preso condenado um dia cumpre a sentença, o preso
torturado cultiva a esperança de reparação futura, mas a pessoa moralmente
desconstituída na fogueira da linguagem nunca mais terá abrigo em nenhuma
versão futura de nossa história comum. A pessoa moralmente estigmatizada corre
o risco de vir a ser, enquanto viver, um morto-vivo que contamina, com a morte
que ostenta, o espaço ao redor.
Uma acusação
autossuficiente percorre todas as etapas num átimo, da denúncia ao patíbulo.
Quem ousará por-se ao lado do condenado à morte que porta consigo a morte
adiada, contagiando os ambientes? Relatar a dor inominável da execração moral
significará aliar-se ao perpetrador e trazer para si o estigma da cumplicidade.
Quem se arriscará a imolar-se na pira sacrificial dos bons sentimentos? Quem
ensaiar um gesto de empatia com o banido será apedrejado com as réplicas óbvias
e inevitáveis, que cobrarão a omissão da outra dor, a dor das vítimas, o
sofrimento negligenciado quando o foco da descrição é o tormento imposto ao
acusado. Mais uma volta no parafuso, acuando os que duvidam, hesitam, lamentam
a tragédia que se abate sobre ambos, acusado e vítima.
O conflito seríssimo
entre a necessidade de legitimar a voz das vítimas, tomando a sério as
acusações, e, ao mesmo tempo, respeitar a presunção de inocência e o direito de
defesa, este conflito está longe de ter sido resolvido, seja legalmente, seja
cultural, moral e politicamente. Estamos pendurados sobre o abismo por um fio,
e para que ele não se rompa temos de, pelo menos, penso eu, ter humildade e
extremo cuidado ante casos desse tipo, casos que essa situação dramatiza de
forma tão intensa, por suas implicações. Enfim, sinto uma tristeza imensa por
todas as perdas envolvidas, e pela ausência do reconhecimento da gravidade
desse impasse. Não há direito de defesa quando seu exercício é automaticamente
tomado como renovada agressão à vítima, uma espécie de extensão do ato
criminoso, desautorizando a própria defesa. Por outro lado, como sabemos,
chegamos a esse extremo porque era preciso reverter o histórico silenciamento a
que as mulheres eram submetidas, silenciamento patriarcal que desautorizava
suas acusações.
No caso de Silvio
Almeida, não apenas este impasse foi reposto para a sociedade brasileira. A
dupla opressão de gênero e raça está sendo mobilizada. Abusos têm sido a
linguagem do opressor masculino. Acusações que precipitam condenações perpétuas
e irreversíveis têm sido a linguagem do racismo, de que dá testemunho o
encarceramento em massa de jovens negros, cujas sentenças tantas vezes se
fundamentam na palavra do policial, responsável pela prisão em flagrante.
Em nome do respeito
que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu
me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da
policialização e da penalização das situações que talvez pudessem ser melhor
enfrentadas e elaboradas por outras linguagens e mecanismos, em que fossem
efetivamente rompidas as estruturas que acabam reiterando as opressões de raça
e gênero, articuladas com o domínio de classe. Não nos iludamos: as condenações
morais que são perpétuas e transcendem penas não fazem avançar as lutas mais
nobres, apenas agravam as dramáticas iniquidades brasileiras, que trituram
tantas vidas — com a mais perversa hipocrisia —, em nome da justiça, da ordem e
da moralidade.
Fonte: Conjur/A Terra
é Redonda
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