José Ricardo Figueiredo: ‘A bofetada do
Banco Central’
Desde o início do
atual governo, vínhamos pacientemente acompanhando a morosa queda da taxa de
juros Selic desde 13,75% aos atuais 10,5% por ano, enquanto a inflação
permanecia em torno de 4% anuais. Há pouco tivemos a frustrante interrupção da
queda, apesar de ainda convivermos com uma das maiores taxas de juro reais do
planeta. Agora, escutamos que o Banco Central pretende aumentar a taxa Selic,
alegando expectativas de inflação futura. E talvez o faça, a depender da
orientação do Boletim Focus, que reporta pesquisa realizada
periodicamente com cerca de cento e sessenta representantes do sistema
financeiro.
A notícia é uma
bofetada do Banco Central em que tenha expectativas de crescimento econômico
expressivo. São os trabalhadores dos setores público e privado, sejam
assalariados, informais ou profissionais liberais. São os empresários pequenos,
médios e grandes, que tenham na produção ou no comércio sua principal receita.
São os governantes que estejam preocupados em atender demandas fundamentais em
saúde, educação, segurança, infraestrutura etc.
Portanto, medida sobre
um parâmetro essencial da política econômica, que afeta toda a nação, está nas
mãos de um punhado de representantes do mercado financeiro, que são
remunerados, em grande parte, pela Selic. Como pode uma democracia conviver com
isso? Ou, melhor: pode-se falar em democracia, convivendo com isso?
O absurdo tem
história. Primeiro, uma traumática experiência de hiperinflação e de supostos
remédios contra a inflação, que faz o povo valorizar muito a estabilidade
monetária desde o plano Real. Segundo, a sistemática pregação neoliberal contra
o Estado também dogmatizou uma relação mecanicista entre inflação baixa e juros
altos. Estes pontos são tratados a seguir.
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Os traumas da
hiperinflação na República brasileira
Dos anos 1930 até 1980
o Brasil teve um das mais altas taxa de crescimento econômico do mundo, entre 6
a 7% em média, convivendo, quase sempre, com níveis de inflação moderadamente
altos, acima de um dígito anual. Uma forte aceleração inflacionária ocorreu no
começo da década de 1960, apontando para taxa de 80% em 1964, o que foi uma das
justificativas do golpe militar daquele ano.
O regime militar foi
bem sucedido em reduzir a inflação por meio de proibição de greves, redução
contínua do salário mínimo, enfim, arrocho salarial. Esta investida anti-social
e recessiva teve consequências nos protestos de 1967 e 68 e no aparecimento da
luta armada, respondidos com o golpe-dentro-do-golpe da Junta Militar.
Mas ficava evidente
que a política recessiva era perigosa para o próprio regime, e que seria
necessária uma política desenvolvimentista. Além do que, o rebaixamento
salarial já havido viria estimular investimentos estrangeiros. O começo dos
anos 1970 foi caracterizado como o período do “milagre econômico brasileiro”,
atingindo taxas de crescimento de 10% ao ano, com a inflação caindo a um mínimo
de 14% anuais.
Mas este quadro começa
a reverter-se, em grande parte por causa do duplo choque dos preços do
petróleo, do qual importávamos quatro quintos do que consumíamos. Chegaríamos
ao final da década de 1970 ainda com crescimento moderado, mas inflação
aproximando-se dos 100% anuais, e vendo grandes greves operárias desafiar a
repressão policial.
As principais
respostas à esta crise, sob o governo do general Geisel, foram corretas: a
Petrobrás investiu em petróleo sob o mar no pós-sal, e foi criado o programa do
álcool automotivo. Mas estas medidas teriam efeitos a médio e longo prazo e,
contra a alta inflação instalada, o general Figueiredo, que assumiu formalmente
o governo em 1980, tomou a pior medida possível: entregou o governo, de fato,
ao FMI, com aplauso da imprensa.
A política
anti-inflacionária do FMI foi a da rigorosa ortodoxia monetarista da escola de
Chicago, impondo corte de gastos, fim de subsídios, aumento de juros,
desestatização, daí causando recessão, desemprego e fome. Diria nesta época o
industrial Severo Gomes, ministro do governo Geisel e senador oposicionista no
governo Figueiredo: “Da escola de Chicago, quem matou menos foi Al Capone”.
Mas o remédio
recessivo não funcionou desta vez. João Figueiredo, que assumira com inflação
próxima de 100% ao ano, deixou o governo com inflação na casa de 250% ao ano.
Se a alta inflação de 1964 ajudara a pôr os militares no poder, inflação ainda
mais alta veria o fim do regime militar em 1985. Mas estávamos ainda no início
do mais longo e intenso processo inflacionário de nossa história, em que a
inflação ultrapassava 20% ao mês por vários períodos.
Logo no começo da Nova
República, tivemos uma inovação heterodoxa na técnica de combate à inflação,
desenhada para eliminar, de forma socialmente neutra, o aspecto inercial da
inflação. O termo inflação inercial designa o processo de repasses sucessivos de
aumentos de preços dos insumos e da mão-de-obra para os preços dos produtos,
destes para os produtos derivados, afetando os consumidores que, como
trabalhadores, demandarão novos repasses, e assim por diante.
Em períodos em que a
inflação atinge patamares mensais razoavelmente constantes, mesmo que altos,
esta inflação pode ser eliminada por meio de uma reforma monetária que
incorpore e neutralize este aspecto inercial. Esta idéia inspirou o Plano
Cruzado de 1986 e o plano Bresser de 1987, com Sarney, e o Plano Real de 1994,
com Itamar Franco.
Todos estes planos
exigiam ainda uma “âncora” para garantir preços estáveis no início da nova
moeda, pelo menos. A reforma monetária do plano Cruzado foi seguida por
congelamento de preços, artificialmente esticado por razões eleitorais, e o
plano ruiu pouco após as eleições de 1986. O plano Bresser foi menos dependente
de congelamento, mas também durou pouco.
Após a frustração dos
planos sob o governo de José Sarney, houve um dos momentos mais dramáticos da
luta contra inflação. O plano lançado por Collor no dia de sua posse em 1990
aplicou uma heterodoxia radical: confiscou todas as contas bancárias acima de
um valor modesto, tanto de aplicações quanto contas correntes, para serem
supostamente devolvidas depois de ano e meio. O surpreendente ato contra a
propriedade privada partia de quem se elegeu prometendo modernização
capitalista. As conseqüências do plano Collor foram profundamente recessivas,
com muitas falências de pequenos poupadores que não puderam usar seu dinheiro
para o que pretendiam.
O Plano Real evitou
problemas técnicos e políticos dos dois primeiros planos contra inflação
inercial, e foi mais bem sucedido. Foi criada a URV, Unidade Real de Valor,
denominada na moeda corrente, cujo valor na em tão moeda corrente Cruzeiro Real
acompanhava cumulativamente as taxas de inflação, de modo a manter seu valor
real. Algum tempo depois os contratos puderam adotar a URV para defesa contra a
inflação e, mais algum tempo depois, adotou-se a moeda Real, identificada à
URV, para preços e salários.
Os preços foram
convertidos pelo valor da URV na data de adoção do Real (1R$=2750Cr$). Os
salários foram convertidos segundo o valor médio em URV no último semestre,
tempo correspondente ao então período de reajuste salarial. Nos primeiros anos
do Plano Real, a âncora de contenção da inflação foi o câmbio alto, com quase
paridade entre as moedas real e dólar, barateando importados.
A necessidade desta
âncora decorre de que, eliminado o aspecto inercial da inflação, resta o
aspecto principal, não inercial, a tendência ao aumento da inflação, que é
manifestação do conflito distributivo. Mas a paridade entre real e dólar
causava déficit da balança de pagamentos a ponto do esgotamento das reservas,
com renovada submissão ao FMI. Teve que ser abandonada após as eleições de
1998, substituída pela institucionalização do “tripé econômico”: câmbio
flutuante, meta de inflação e meta fiscal.
O câmbio flutuante
retira do Estado a definição da taxa de câmbio para torná-la dependente do
mercado financeiro, incluindo especuladores. A meta fiscal impõe
invariavelmente redução do Estado. A meta de inflação tem sido posta de forma
que sempre leva a aumento dos juros.
Este tripé tem contido
a inflação, de fato. Se, dos anos 1980 até o Plano Real houve instabilidade
financeira, e crescimento medíocre alternando com fases recessivas, do Plano
Real até agora há estabilidade financeira, mas permanece o crescimento medíocre
alternando com fases recessivas. Em ambos períodos, a taxa de crescimento médio
da economia tem sido em torno de 2% anuais e, ambos períodos, o Brasil tem
convivido com as taxas reais de juro básico entre as duas ou três maiores do
Planeta. Isso não é coincidência.
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Os juros mitificados
Há muito, ficou
estabelecida na imprensa comercial e no senso comum a concepção mecanicista de
que inflação se combate com aumento das taxas de juro.
Vejamos. Juros são
transferência de renda de quem toma empréstimo para o prestamista. No caso dos
consumidores que compram a prazo, aumento de juros significa, diretamente,
aumento de preços, portanto inflação, para todos os efeitos práticos. No caso
dos empresários que tomam empréstimo para investir, aumento de juros significa
diretamente aumento dos custos totais de produção e, quase necessariamente,
aumento de preços dos produtos. Portanto, o resultado mais direto e imediato do
aumento dos juros é exatamente o inverso do que prediz a concepção mecanicista.
Mas há efeitos
indiretos, pelos quais aumento de juros tende a ser anti-inflacionário.
O primeiro é o efeito
recessivo. Aumento de juros leva alguns consumidores a desistir da compra, e
alguns empresários a desistir do investimento. Com o esfriamento da demanda, os
preços tendem a cair. O aspecto recessivo não é um efeito colateral do remédio,
é a essência de sua relativa eficácia.
Eficácia relativa, não
só porque antecedida pelo efeito inflacionário imediato antes referido, mas
também pelas conseqüências futuras. A recessão se caracteriza por
desinvestimento, que significa menor produção futura, portanto menor oferta de
produtos no futuro. Se os preços se regulam por oferta e procura, o
desinvestimento de um ano dificulta o combate à inflação nos anos seguintes.
Por conta disso, é
sensato admitir-se aumento de taxas de juros só em caso da inflação ter origem
em excesso de demanda, como defendeu o presidente Lula.
O segundo aspecto
anti-inflacionário do aumento de juros tem a ver com o câmbio flutuante. Os
altos juros atraem investimentos estrangeiros em dólar que, pela flutuação
mercantil do câmbio, fortalecem a moeda nacional, o que barateia produtos
importados e dificulta as exportações.
Quando se substituiu o
câmbio fixo, isto é, fixado pelo Banco Central, pelo câmbio flutuante, o
ex-ministro Delfim Neto comentou que a mudança retirava do governo uma variável
importante de ajuste da economia, deixando só as taxas de juro. De fato, o câmbio
ficou vinculado à taxa de juro, e esta, àquele.
Pela política de altos
juros dos últimos quarenta anos, a moeda brasileira ficou muito valorizada todo
este tempo. Esta combinação explica a rapidez com que ocorreu nossa
desindustrialização: o câmbio alto dificultava a competição com importados, e
os juros altos dificultavam o investimento produtivo, ao mesmo tempo em que
estimulavam o rentismo.
Este desinvestimento
significou também estagnação tecnológica. A médio e longo prazos, a perda de
competitividade técnica em relação a outras nações vai fechando setores
industriais, ou vai demandando queda do câmbio para garantir competitividade
monetária. Como ensinava Ignácio Rangel, a inflação é um epifenômeno revelador
de carências estruturais, que a política anti-inflacionária monetarista só
agrava.
Outro grande tomador
de empréstimos é o Estado. Neste caso, aumento de juros significa maior
transferência de recursos do erário ao sistema financeiro, incluindo capitais
estrangeiros. O serviço da dívida compromete este ano cerca de 870 bilhões de
Reais, algo em torno de 8% do PIB brasileiro, que será incorporado ao total da
dívida, pois não haverá superávit do déficit primário.
O déficit primário, a
diferença entre arrecadação e gastos da administração, pode ter sido a causa do
endividamento público no passado, mas, há muito, tem tido pequeno papel no
acréscimo da dívida pública. Nas discussões sobre o orçamento deste ano, um déficit
primário de 0,25% do PIB vem causando escândalo, sendo que o déficit total será
incrementado em 8% do PIB por causa do serviço da dívida. A dívida pública
tende a crescer por si própria, mesmo quando há superávit primário, por causa
dos altos níveis da taxa Selic.
Além de as altas taxas
de juro serem mecanicamente associadas à queda da inflação, outras alternativas
para combate à inflação são desencorajadas. Paulo Guedes esvaziou a CONAB, que
mantinha estoques reguladores de produtos alimentícios fundamentais, garantindo
preço satisfatório ao produtor e amortecendo aumentos de preços especulativos.
Por que esvaziar um
órgão assim? Por ser contra intervenção do Estado na economia, diria um
liberal; afinal, especuladores devem poder especular à vontade.
Mas há outro fator.
Relembrando o fundamental: juros são transferência de renda de quem toma
empréstimo para o prestamista. Neste sentido, já que a inflação tem sido o
argumento privilegiado para os altos juros, não convém que nada venha a
competir com eles no combate à inflação. Nem CONAB, nem subsídios, nem
congelamento de preços, nada. Os altos juros são ciumentos de seu papel
absoluto nesta área.
Tanto assim, que vem
sendo estabelecidas e alcançadas metas de inflação em torno de 4% ao ano, muito
abaixo do que estávamos habituados historicamente, forçando aumento de juros
pela política adotada. Não caberia relaxar um pouco no controle monetarista da
inflação para permitir maior fôlego ao crescimento? Quem propuser algo assim
será massacrado pela grande imprensa.
Toda discussão
racional sobre economia brasileira leva à necessidade de reduzir
substancialmente os juros em geral, tanto a taxa básica Selic quanto os spreads bancários.
Por isso mesmo, a discussão racional é interditada, seja pelos dogmas
neoliberais, seja pelo terrorismo anti-inflacionário, seja pelo diversionismo
neofascista.
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Convivendo com os
dogmas
Depois do plano Real e
durante o primeiro governo FHC, a inflação foi contida por câmbio
excessivamente alto, sustentado por juros Selic que atingiram 40% ao ano com
moeda estabilizada. O segundo governo FHC iniciou-se com crise cambial,
obrigando ao abandono da quase paridade real-dólar. Mas a tática não mudou, os
juros continuaram altíssimos e outras crises cambiais ocorreriam.
Apesar deste legado, o
governo Lula conseguiu reduzir gradualmente a taxa de juros e o tamanho da
dívida pública em relação ao PIB, sem confrontar o sistema financeiro, cujos
lucros aumentaram, bem como conseguiu implantar políticas sociais relevantes em
renda mínima, salário mínimo, educação, saúde, e conseguiu estimular setores
importantes da economia. É fato que contou com uma conjuntura externa
favorável, e soube aproveitá-la bem.
A conjuntura externa
passaria a mudar em 2008. No começo, a grande onda iniciada nos EUA chegou aqui
como “uma marolinha”, mas, durante o primeiro governo Dilma, a economia começa
a estagnar. A presidente tentou um arranque desenvolvimentista por meio de
redução expressiva das taxas de juros em 2012, quando o Banco Central passou a
reduzir substancialmente a Selic, e o Banco do Brasil e a Caixa Econômica
Federal passaram a reduzir os spreads bancários, forçando os
bancos privados a acompanhá-los.
Até então, Dilma
Rousseff era muito elogiada na grande imprensa porque, diante de denúncias de
corrupção em seu ministério, afastava imediatamente os ministros denunciados.
Elogiando essa postura, a grande imprensa alfinetava o ex-presidente Lula, que,
nestes casos, evitava melindrar aliados antes de maior desenvolvimento das
investigações. Mas a opinião da imprensa mudou com a mudança de política
monetária. Dilma Rousseff foi obrigada a recuar de sua política em 2013, mas a
grande imprensa nunca mais a perdoou: a dirigente intolerante com corruptos
seria transformada em liderança maior da corrupção nacional.
Após o isolamento da
esquerda e o golpe contra Dilma Rousseff em 2016, os governos de Michel Temer e
Jair Bolsonaro consumaram vários dos objetivos do capital financeiro:
desnacionalização do pré-sal, esvaziamento da CLT e dos sindicatos,
enfraquecimento da previdência pública, do SUS, das universidades e dos
serviços públicos em geral. O apogeu do poder do sistema financeiro está sendo
a autonomia do Banco Central: a partir dela, o governante democraticamente
eleito perdeu poder de influência sobre a variável mais importante da economia.
Aí chegamos onde
estamos: arrogantemente autônomo, o Banco Central sente-se à vontade para
esbofetear a Nação ainda mais. E mais: insaciável na busca da autonomia do
Banco Central, Roberto Campos Neto articula no Congresso emenda constitucional
para radicalizá-la ainda mais.
A função clássica do
sistema bancário no capitalismo é a de intermediar proprietários de dinheiro e
tomadores de empréstimo, permitindo que recursos ociosos sejam empregados
produtivamente ou para consumo. No caso brasileiro, desde os anos 1980, pelo
menos, o sistema financeiro deixou de contribuir para a produção e tornou-se
entrave ao desenvolvimento.
Tornou-se também
atraso político, simbolizado pela presença de Paulo Guedes e Campos Neto, com
suas respectivas off-shores, no governo de Jair Bolsonaro,
Atualmente, os dois maiores jornais paulistas, ambos tendo participação
acionária de bancos, aliaram-se de novo ao bolsonarismo, agora contra o STF,
dando munição retórica para os que querem anistia dos golpistas. Escuta-se
ainda que a “Faria Lima” teria aderido a Pablo Marçal nas eleições paulistanas.
O sistema financeiro
brasileiro formou uma casta improdutiva, parasitária e reacionária. Pronta para
ser jogada na lata de lixo da história. O apogeu é o começo da queda.
Fonte: A Terra é
Redonda
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