quarta-feira, 18 de setembro de 2024

EUA temem que entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU ameace seu lugar vantajoso no órgão

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que Washington não apoia a entrada do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) por medo de que o país adote posicionamentos divergentes em votações de temas críticos para os Estados Unidos e leve o BRICS para dentro do órgão.

A demanda do Brasil por um assento no conselho da Organização das Nações Unidas (ONU) é antiga. Porém, há resistência dos EUA em aceitar a expansão do órgão e, recentemente, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, afirmou que não há garantia do apoio de Washington ao Brasil em uma eventual expansão.

Analisando um cenário hipotético de expansão, Thomas-Greenfield frisou que os EUA apenas chancelariam as candidaturas de Índia, Alemanha e Japão, que juntos com o Brasil formam o G4 — grupo que defende a expansão do órgão.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o motivo de relutância dos Estados Unidos em aceitar a expansão do CSNU e em apoiar a candidatura do Brasil.

Késsio Lemos, doutor em relações internacionais e pesquisador no Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), enfatiza que o Brasil "tem adotado uma diplomacia caracterizada por sua independência, frequentemente desalinhada aos interesses americanos", o que por vezes causa incerteza quanto ao posicionamento brasileiro em questões críticas para os EUA. Segundo ele, isso explica o apoio dos Estados Unidos a aliados estratégicos com os quais Washington tem relações mais estáveis e previsíveis.

"Apoiar a inclusão do Brasil poderia criar um precedente indesejado, incentivando reivindicações de outros países, levando a uma expansão do conselho que ultrapassaria os limites desejados por Washington. Ademais, os membros permanentes, incluindo os EUA, buscam manter sua posição privilegiada, resistindo a mudanças que possam comprometer a eficácia do poder de veto", afirma Lemos.

Ele acrescenta que uma eventual entrada do Brasil no Conselho de Segurança "agregaria à perspectiva da América Latina uma região notoriamente sub-representada".

"Como uma das principais economias emergentes, o Brasil teria a capacidade de amplificar as vozes e demandas dos países em desenvolvimento, contribuindo para um equilíbrio mais inclusivo. Além disso, o Brasil poderia promover maior pluralidade no conselho, favorecendo agendas voltadas para o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos — questões que ressoam com as prioridades das nações em desenvolvimento."

¨      Expansão do CSNU é vital para lidar com novos desafios globais

Lemos ressalta que a composição atual do Conselho de Segurança já não reflete a realidade geopolítica do século XXI, que, segundo ele, é "caracterizada pela ascensão de potências emergentes que permanecem sub-representadas". Nesse contexto, uma estrutura mais inclusiva e diversificada traria maior legitimidade e aceitação às decisões tomadas pelo órgão no cenário internacional.

"A introdução de novas perspectivas, oriundas de diferentes regiões e contextos, aumentaria a capacidade do conselho de lidar com a crescente complexidade dos desafios globais. A inclusão de novas potências, portanto, não só promoveria um equilíbrio mais justo na formulação de políticas internacionais, como também garantiria uma execução mais equitativa das decisões que afetam o sistema global."

Em contraponto, aponta que a expansão também teria como consequência um processo decisório mais complexo e menos ágil, "especialmente em situações de crise que demandam respostas rápidas".

"A inclusão de novos membros permanentes teria implicações nas dinâmicas internas do conselho, alterando alianças e negociações e, possivelmente, gerando novas tensões entre os membros. Ainda assim, uma expansão que espelhe a realidade de um mundo multipolar teria o potencial de fomentar soluções mais duradouras e sustentáveis para os desafios globais, conferindo maior legitimidade ao conselho."

Pedro Allemand Mancebo Silva, pesquisador e doutorando em relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), afirma que Washington enxerga a questão da segurança hemisférica e do continente americano como um todo como algo centrado nos EUA e na política externa estadunidense.

"A ideia de que tenha outro país americano, da América do Sul, Norte ou Central, no Conselho de Segurança, com assento permanente, poderia minar essa liderança regional que os Estados Unidos se arrogam nesse quesito da segurança, de definir qualquer pauta de segurança, definir o que é estabilidade ou não, definir qual vai ser a lógica da defesa e quais vão ser as lógicas das intervenções humanitárias aqui no continente americano", afirma.

Ele destaca ainda que nos EUA há o temor de que a entrada do Brasil possa levar o BRICS para dentro do CSNU, o que está diametralmente oposto à vontade, estratégia e iniciativas americanas dentro do órgão.

"[A relutância à entrada do Brasil] é muito uma ideia de manter certa dominação política e manter certa capacidade de definição de agendas e de definição de políticas para os Estados Unidos", acrescenta.

Allemand afirma que a entrada do Brasil no Conselho de Segurança seria importante por dois motivos: primeiro, pela experiência e contribuição dadas pelo país em missões humanitárias da ONU; segundo, para ter a consolidação de um certo espaço de países do Sul Global e das necessidades e demandas do Sul Global dentro do CSNU.

"Com o Brasil entrando para o Conselho de Segurança, acho que ele poderia trazer outra visão sobre segurança, quais são as questões de defesa, as questões geopolíticas do nosso tempo […]. Por exemplo, a gente está vivendo agora o genocídio em Gaza e tudo o que acontece no Conselho de Segurança é travado porque os EUA são os grandes garantidores do poderio de Israel no Oriente Médio, e eles vetam basicamente qualquer resolução e qualquer coisa que minimamente restrinja a capacidade de ação de Israel […]. Então o Brasil […] poderia trabalhar resoluções com essa posição de membro permanente, poderia ter um poder maior de influenciar as agendas no sentido de inserir essas preocupações com direitos humanos de forma mais séria e mais concreta dentro do Conselho", diz o especialista.

Allemand afirma que a reforma do Conselho de Segurança é uma pendência existente basicamente desde a criação do órgão, quando convivia com impérios coloniais. Ele acrescenta que, dos países do G4, considera a Alemanha menos relevante para uma mudança de fato no Conselho, que já conta com outros representantes da Europa.

"Eu acho que a gente poderia substituir nesse G4 a Alemanha por um país africano ou pensar um G5 com, pelo menos, um país africano — talvez a África do Sul ou a Nigéria."

Porém, Allemand considera que a expansão do CSNU "só vai acontecer diante de uma ameaça muito grave, muito fundamental à atual ordem geopolítica e geoeconômica internacional", maiores do que o atual acirramento atual entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Rússia, que ele avalia ser pontual. Ainda, afirma que há tendência de "ossificação" do Conselho de Segurança que faz com que "qualquer coisa que seja minimamente voltada para um cessar-fogo em Gaza seja vetada pelos Estados Unidos".

"Então, quando acontecer essa expansão ou essa reforma, é porque o caldo já vai ter entornado. E aí a gente não sabe se vai ser para remediar uma situação muito grave ou se vai ser o fim da governança da segurança pelo sistema ONU", afirma.

Ele acrescenta que os países que hoje contestam a ordem internacional são aqueles que foram prejudicados por ela, e acrescenta que o Brasil, assim como muitos países africanos, questiona essa ordem "por dentro dela".

"Nessas discussões que a gente vê sobre políticas para o Sul Global, articulações do Sul Global, tem uma discussão que é por dentro do sistema. Eu não sei até que ponto essa atuação por dentro do sistema pode forçar uma reforma do Conselho de Segurança ou se ela vai ser só utilizada como símbolo […]. Mas eu acredito que ela [a reforma] poderia contribuir para uma maior estabilidade global se buscasse uma reforma mais representativa e que democratize um pouco mais a governança das questões de segurança via Conselho de Segurança da ONU", conclui o especialista.

 

¨      Por que os Estados Unidos se opuseram à reforma da casta judicial no México?

Pressionado pelos Estados Unidos a desistir de uma importante reforma constitucional para o país, o México não recuou. O presidente, Andrés Manuel López Obrador, não só seguiu em frente com a medida como congelou as relações com os EUA, acusando-os de "ingerência inaceitável".

Aproveitando um grande período de popularidade, no qual conseguiu eleger sua sucessora, Claudia Sheinbaum, e obter a maioria no Congresso da União — órgão legislativo bicameral do México — com seu partido Movimento Regeneração Nacional (Morena), o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) conseguiu aprovar uma grande reforma judicial no país.

O grande destaque das mudanças está na criação de eleições para o Judiciário. Com a reforma, todos os juízes do país, desde os tribunais locais à Suprema Corte, deverão ser eleitos pela população em vez de indicados pelo Poder Executivo.

No episódio desta segunda-feira (16), o Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, conversou com especialistas diretamente do México para falar sobre a reforma judiciária do país e a crise geopolítica decorrente com o seu vizinho de cima, os Estados Unidos.

<><> 'Entrelaçamento doente com o poder econômico'

Lucio Oliver, professor de sociologia na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), destacou a necessidade da reforma judicial no país. Para o sociólogo, nos últimos 35 anos o Poder Judiciário do país se tornou uma "casta política a serviço do grande capital, seja este empresarial, transnacional ou do narcotráfico".

Frequentemente os juízes soltavam, sob alegações falsas de erros processuais, narcotraficantes presos pelo governo de AMLO e faziam vista grossa para a sonegação de impostos por grandes empresários, afirmou Oliver.

"Eles ficaram acostumados a servir a esse poder e não pensar no país e na sociedade."

A situação se agrava ainda mais considerando os altos salários dos juízes no México. Os membros do maior escalão, a Suprema Corte de Justiça da Nação, podem ganhar cerca de 7 milhões de pesos por ano, o equivalente a R$ 2 milhões na conversão atual. Dentro de um período de austeridade, esse salário é "ultrajante", disse Oliver.

Como parte da reforma judicial, o salário dos juízes será reduzido e não poderá superar o salário presidencial. Hoje o presidente ganha cerca de 140 mil pesos por mês, ou 1,6 milhão por ano. Isso equivale a cerca de R$ 480 mil anuais.

Revoltados, os juízes iniciaram um movimento de greve e convocaram manifestações de rua. "Isso era esperado, mas os procedimentos legais estavam claros e constitucionais para a reforma", detalha o pesquisador.

"Eles serviam totalmente aos interesses e às relações com os velhos partidos, com o velho PRI, que foi derrotado, com o PAN, que foi derrotado."

O Partido Revolucionário Institucional (PRI, conservador) é um dos principais partidos políticos do país, mantendo o poder sobre o governo federal sucessivamente entre 1929 e 2000, quando perdeu para o Partido de Ação Nacional (PAN, conservador). Em 2012 retornou ao poder com Enrique Peña Nieto.

<><> Estados Unidos critica, mas México não obedece

No final de agosto, o embaixador norte-americano no México, Ken Salazar, classificou a mudança judicial como um risco à democracia no país e afirmou que tal alteração constitucional colocaria em risco a relação com Washington.

Após essas declarações, AMLO acusou Salazar de violar a soberania mexicana e congelou as relações diplomáticas com os Estados Unidos.

As críticas, no entanto, não se deram só no campo diplomático. Tanto o banco de investimentos Morgan Stanley quanto o Banco Nacional de México (Citibanamex) condenaram a reforma judicial, assim como diversos meios jornalísticos norte-americanos e europeus.

Segundo Oliver, grande parte das preocupações estadunidenses advém de não saber como navegar nesse novo cenário. "Eles já estavam acostumados a negociar com esse Poder Judiciário."

"São reformas que atacam o poder econômico que estava acostumado a ter uma legalidade predefinida em favor dele. Os bancos, os empresários estão com medo de que a verdadeira legalidade não seja favorável a eles."

Ao Mundioka, o professor de ciência política do Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores do Ocidente (ITESO), da Universidade Jesuíta de Guadalajara, Luis González Tule comentou como devem ficar as relações diplomáticas entre os EUA e o México.

"Isso são pressões que tem o próprio sistema capitalista para frear, por seus meios, medidas que atentem contra seus interesses, ou que podem até mesmo ser consideradas ameaçadas", disse Tule.

Face à forte aprovação popular das mudanças, a diplomacia estadunidense abaixou o tom e "não tomou nenhuma ação concreta", destacou o cientista político. No entanto, "tudo vai depender também de quem ficará na presidência nos Estados Unidos".

Ou seja, ainda que México e Estados Unidos sejam o maior parceiro comercial um do outro, as relações diplomáticas podem ser abaladas dependendo de quem assumir a Casa Branca no próximo ano.

Em 2025 o México também estará com uma nova presidente, lembra Tule, Claudia Sheinbaum. Mesmo que seja sucessora de López Obrador, ela tem um perfil diferente do futuro ex-presidente.

"Andrés Manuel López Obrador é um líder político que conhece toda a entranha da política mexicana. Vem de um movimento social, de protestos e de enfrentamento ao regime autoritário do PRI", descreveu.

"Em troca, Claudia Sheinbaum é uma acadêmica reconhecida da universidade pública mexicana mais importante, mas tem menos experiência política e não tem o mesmo carisma que Obrador. O que ela tem é uma política muito eficiente."

Nesse contexto, para o professor do ITESO, é possível que haja um maior entendimento de Sheinbaum com a candidata democrata, Kamala Harris, do que com o ex-presidente dos EUA Donald Trump.

Ainda assim, justamente por já ter assumido a Casa Branca, é mais fácil analisar como seria a relação entre o México e os Estados Unidos com uma volta de Trump. "A relação foi um pouco tensa no início, mas depois o presidente López Obrador soube conduzir."

"Foi tensa pois pressionou bastante contra a migração, tanto mexicana como da América Central e da América do Sul, que passa pelo México, e impôs taxas a produtos mexicanos como forma de pressionar o presidente a deter a migração."

Por mais que tenha maioria congressual para realizar mudanças constitucionais, restará saber se Sheinbaum terá jogo de cintura para circundar um Trump presidente. Já para Tule, se Harris for eleita "haverá um maior entendimento entre as presidentes".

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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