Eduardo Gudynas: ‘Quando o progressismo
pensa uma derrota - os extrativistas inteligentes e os ambientalistas bobos
Na América Latina
vive-se uma situação dramática com a emergência da chamada extrema-direita. Em
vários países tornou-se uma força política poderosa; chegaram à presidência no
Brasil com Jair Bolsonaro e, embora tenha perdido a reeleição, manteve aproximadamente
metade do eleitorado. Mais recentemente, na Argentina, Javier Milei conquistou
a presidência e está implementando um ajuste econômico e social draconiano.
Embora as suas medidas ultraconservadoras punam principalmente os setores
populares e médios, ainda conta com um substancial apoio da população.
É trágico que a
extrema-direita governe em alguns países, que tenha atores importantes em
outros, e que em ambos os casos seja votada por muitos. Mas é ainda mais
alarmante que em vários lugares isto tenha ocorrido depois de governos que se
definiram como progressistas ou da nova esquerda. O caso argentino ilustra
isso: o progressismo não conseguiu manter o governo, mas também não cristalizou
exigências e reivindicações por mais direitos e mais democracia que os imunizem
contra essa extrema-direita.
Diante disso, surge
imediatamente a pergunta sobre como essa virada é interpretada e,
principalmente, como ela é pensada a partir do próprio progressismo. É uma
questão de enorme relevância: como evitar que o progressismo dê lugar a uma
extrema-direita
• Derrota cultural e desejo economicista
A virada à direita é
frequentemente descrita como o resultado de uma investida dos atores
conservadores que o progressismo não conseguiu bloquear; ou como uma derrota
política ou cultural devido às próprias limitações. Nestas explicações são
utilizados fatores como o poder econômico de alguns agentes, o papel dos meios
de comunicação social, as influências internacionais, as condições econômicas,
etc.
Considerando o caso do
desastre kirchnerista e do triunfo de Milei, o cientista político e jornalista
argentino José Natanson aborda o que muitos descreveram como uma “derrota
cultural”. Sua análise, amplamente divulgada na imprensa, merece ser examinada
porque deixa claras as formas como o progressismo convencional (argentino) se
interpreta e interpreta as mudanças políticas.
Natanson deixa bem
claro que concebe o progressismo a partir de uma defesa enfática do crescimento
econômico como o meio essencial para superar a pobreza. Para garantir este
propósito é fundamental aumentar as exportações, e que, no caso argentino,
devem ser as de hidrocarbonetos e minerais.
Ao analisar a
“derrota” do peronismo, Natanson entende que os governos kirchneristas que o
precederam não conseguiram crescer o suficiente, não conseguiram exportar tudo
o que era necessário, e que Milei, pelo contrário, embora de forma brutal,
estaria conseguindo.
A fórmula de Natanson
é simples: mais crescimento, mais exportações, mais extrativismo. Essa
sequência de ideias é muito repetida na América Latina e não difere muito do
que propuseram os governos anteriores de Lula da Silva ou a atual
administração. Assume-se as receitas do capitalismo convencional, que subordina
os nossos países a fornecedores de matérias-primas, o que exige um certo tipo
de gestão política, como ajustar-se aos mercados globais ou proteger o capital
transnacional em setores como a mineração ou os hidrocarbonetos.
A exploração intensiva
dos recursos naturais tem graves impactos sociais e ambientais e gera
resistências cidadãs, que os governos combatem porque colocam em risco as suas
exportações, razão pela qual acabam entreverados no enfraquecimento ou violação
dos direitos das pessoas.
O ponto a destacar é
que este modelo, baseado na associação entre crescimento econômico, exportações
de matérias-primas e extrativismo, nas suas características básicas é o mesmo
defendido pela política conservadora e neoconservadora que agora assola os nossos
países. Estes fazem-no por outros meios, como acaba de acontecer na Argentina
com a aprovação do Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos (RIGI). Essa
lei, considerada uma grande vitória por Milei, garante incentivos fiscais,
aduaneiros e cambiais para grandes empreendimentos de setores como o
agronegócio, a mineração ou os hidrocarbonetos. Algumas destas medidas são o
sonho do CEO de uma transnacional, como a estabilidade regulatória durante 30
anos, eximindo-os do cumprimento de requisitos sociais, trabalhistas ou
ambientais de governos subnacionais ou liberalizar os fluxos de capitais. É tão
extremo que foi descrito como uma entrega incondicional dos recursos nacionais.
Seus efeitos foram
quase imediatos. Poucos dias depois da aprovação do RIGI, uma das maiores
mineradoras do mundo (a australiana BHP) anunciou um investimento de dez
bilhões de dólares para extrair cobre, naquela que será supostamente a maior
mina do mundo. Foi seguida por uma avalanche de projetos em lítio, que segundo
a imprensa totalizariam vinte bilhões de dólares.
• A economia política
A defesa do
progressismo a partir dessa economia política, como faz Natanson, repete ideias
muito comuns que implicam um desconhecimento, e inclusive uma renúncia, de pelo
menos duas tentativas de renovação da esquerda latino-americana. Em primeiro
lugar, esquecem-se os esforços feitos há várias décadas para abandonar esta
subordinação como fornecedores de bens primários, propondo, por exemplo, o
desenvolvimento endógeno ou a industrialização própria.
Em segundo lugar,
perdem-se as tentativas mais recentes de refrescar a esquerda, procurando a
“radicalização da democracia”, que incluía desde orçamentos participativos até
metas mais ambiciosas, como respeitar e unir os povos indígenas, proteger a
natureza e combater as mudanças climáticas, ou assumir as reivindicações do
feminismo no desmantelamento do patriarcado.
Por outro lado, esta
visão progressista é a-histórica; é como se esta intelectualidade progressista
entendesse que o desenvolvimento começou com a globalização do comércio de
commodities, acreditando que estas exportações eram suficientes para dar um salto
no desenvolvimento. Limitam-se a evitar discutir ou explorar reformas
substanciais do capitalismo; pararam de imaginar alternativas que não fossem
capitalistas; e consideraram perdidos os acordos com diferentes movimentos
sociais.
Estas auto-análises
não conseguem discernir que estas formas de compreender o desenvolvimento têm
consequências políticas e econômicas que não podem ser evitadas. Acabam
desprezando a resistência local e, como não têm outra opção senão continuar com
o extrativismo, acabam em conflito com as comunidades locais, ativistas e
acadêmicos. Fazem-no de uma forma que restringe os direitos dos cidadãos e
enfraquece a democracia, e não consegue evitar que os impactos sociais e
ambientais se agravem. A sua estratégia econômica reforça a dependência do
capital e da globalização, ao mesmo tempo que inibe a sua própria
industrialização.
• Entre bobos e inteligentes
Vários intelectuais
fornecem argumentos e racionalidades para defender estas posições
progressistas. Entre eles Natanson, que se destacou na explicação e
justificação de que os líderes políticos poderiam prometer algo, mas não
cumprir uma vez alcançada a vitória eleitoral (como ocorreu em um caso
argentino sobre mineração). Não se percebe que estes raciocínios corroem a
legitimidade da própria política e enfraquecem os mecanismos democráticos. A
exigência de renovação da esquerda por uma radicalização da democracia fica
pelo caminho.
Insistindo nessa
posição, em seu exame da derrota para Milei, Natanson ataca duas personalidades
argentinas: a socióloga Maristella Svampa e o advogado Enrique Viale. Ele
comemora que ninguém prestou atenção às advertências destes dois em relação aos
acordos petrolíferos ou aos impactos do fracking que, entre outros, foram
aprofundados pela presidência de Alberto Fernández. No entanto, ambos são
intelectuais e ativistas respeitados, que conhecem as circunstâncias locais do
extrativismo na Argentina e o denunciam com informações sérias e verificáveis.
O fato de ninguém ter prestado atenção neles não é motivo de comemoração, mas
faz parte do problema. A gestão de Milei baseia-se agora nesta erosão da
democracia e nesta surdez aos avisos.
Estamos, portanto,
diante de uma economia política que carece de argumentos suficientes para
responder aos questionamentos a que as comunidades locais e a academia expõem
as suas contradições e fragilidades. Então, tudo o que lhes resta é o apelo ao
“realismo político”, à rejeição ou ao ridículo. Exemplo disso é o uso do rótulo
“ambientalismo bobo” para se referir àqueles que alertavam, por exemplo, sobre
os impactos da exploração do petróleo (termo cunhado por Natanson, e que ele
lançou na televisão argentina).
Se este raciocínio
fosse aplicado a toda a América do Sul, também seriam “bobas” as organizações
indígenas que resistem à entrada de empresas petrolíferas aos seus territórios
porque contaminam as suas águas com petróleo, as exigências dos grupos locais chilenos
pelo acesso à água, ou os discursos do presidente colombiano Gustavo Petro
contra os combustíveis fósseis por alimentarem as mudanças climáticas.
Por outro lado,
Bolsonaro seria “inteligente” quando tentou liberalizar a exploração na
Amazônia, e Milei não seria um “bobo”, mas o mais realista e eficaz porque
impõe o extrativismo até as últimas consequências, como agora o RIGI permite.
Desta forma, o sonho de aumentar todas as exportações para crescer
economicamente poderia realmente ser realizado – isto é, aplicando seriamente a
receita que Natanson pretende para o progressismo.
Neste ponto devemos
voltar a Svampa e Viale, pois apontam que “nem tudo é novo no discurso
negacionista de Milei”, porque há ideias que estiveram presentes em setores
conservadores, mas também progressistas.
Sem dúvida,
intelectuais como Natanson são muito diferentes dos animadores da
extrema-direita ao estilo Milei (o primeiro quer “ambientalismo inteligente”, o
segundo é um negacionista). Mas o que estas opiniões mostram na Argentina é que
no radicalismo da extrema-direita existem fatores que foram prefigurados no
progressismo e que foram blindados com os argumentos que eles forneceram. Milei
pode hoje desmontar muitos direitos ou zombar do ambientalismo, das feministas,
dos direitos, porque havia vozes e práticas progressistas que já faziam isso há
muito tempo.
O que é dramático em
tudo isto, e sobre o qual devemos insistir, é que há reflexões dentro destes
progressismos que não percebem estes problemas. O fato de se referir a uma
derrota cultural ou política, ou lamentar não ter fortalecido uma economia
capitalista de exportação de matérias-primas, deixando de lado as questões dos
direitos, da democracia, da globalização e da dependência, mostra que muitos
ainda estão presos a análises superficiais. Estas formas de pensar, como a de
Natanson, impedem que o progressismo seja reformulado à esquerda.
Enquanto isso, Milei e
a direita dogmática oferecem uma retórica vestida de alternativa, mas ao mesmo
tempo esvaziam de conteúdo as opções de mudança. A saída para esta situação é
reconhecer esse quadro, assumir as contradições do progressismo, incluindo
aquelas contidas nas suas visões convencionais sobre política e
desenvolvimento. Trata-se de reconhecer que não há alternativas numa economia
capitalista primarizada e subordinada, que continua a depender da venda de
carne ou lã, soja ou celulose. Portanto, uma renovação da esquerda deve
necessariamente questionar as ideias do desenvolvimento. Esta é uma tarefa
básica, tanto para resolver problemas prementes em múltiplos territórios como
para impedir a ascensão da extrema-direita.
Fonte: Desde Abajos –
traduçao do Cepat, em IHU
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