sábado, 28 de setembro de 2024

Eduardo Gudynas: ‘Quando o progressismo pensa uma derrota - os extrativistas inteligentes e os ambientalistas bobos

Na América Latina vive-se uma situação dramática com a emergência da chamada extrema-direita. Em vários países tornou-se uma força política poderosa; chegaram à presidência no Brasil com Jair Bolsonaro e, embora tenha perdido a reeleição, manteve aproximadamente metade do eleitorado. Mais recentemente, na Argentina, Javier Milei conquistou a presidência e está implementando um ajuste econômico e social draconiano. Embora as suas medidas ultraconservadoras punam principalmente os setores populares e médios, ainda conta com um substancial apoio da população.

É trágico que a extrema-direita governe em alguns países, que tenha atores importantes em outros, e que em ambos os casos seja votada por muitos. Mas é ainda mais alarmante que em vários lugares isto tenha ocorrido depois de governos que se definiram como progressistas ou da nova esquerda. O caso argentino ilustra isso: o progressismo não conseguiu manter o governo, mas também não cristalizou exigências e reivindicações por mais direitos e mais democracia que os imunizem contra essa extrema-direita.

Diante disso, surge imediatamente a pergunta sobre como essa virada é interpretada e, principalmente, como ela é pensada a partir do próprio progressismo. É uma questão de enorme relevância: como evitar que o progressismo dê lugar a uma extrema-direita

•        Derrota cultural e desejo economicista

A virada à direita é frequentemente descrita como o resultado de uma investida dos atores conservadores que o progressismo não conseguiu bloquear; ou como uma derrota política ou cultural devido às próprias limitações. Nestas explicações são utilizados fatores como o poder econômico de alguns agentes, o papel dos meios de comunicação social, as influências internacionais, as condições econômicas, etc.

Considerando o caso do desastre kirchnerista e do triunfo de Milei, o cientista político e jornalista argentino José Natanson aborda o que muitos descreveram como uma “derrota cultural”. Sua análise, amplamente divulgada na imprensa, merece ser examinada porque deixa claras as formas como o progressismo convencional (argentino) se interpreta e interpreta as mudanças políticas.

Natanson deixa bem claro que concebe o progressismo a partir de uma defesa enfática do crescimento econômico como o meio essencial para superar a pobreza. Para garantir este propósito é fundamental aumentar as exportações, e que, no caso argentino, devem ser as de hidrocarbonetos e minerais.

Ao analisar a “derrota” do peronismo, Natanson entende que os governos kirchneristas que o precederam não conseguiram crescer o suficiente, não conseguiram exportar tudo o que era necessário, e que Milei, pelo contrário, embora de forma brutal, estaria conseguindo.

A fórmula de Natanson é simples: mais crescimento, mais exportações, mais extrativismo. Essa sequência de ideias é muito repetida na América Latina e não difere muito do que propuseram os governos anteriores de Lula da Silva ou a atual administração. Assume-se as receitas do capitalismo convencional, que subordina os nossos países a fornecedores de matérias-primas, o que exige um certo tipo de gestão política, como ajustar-se aos mercados globais ou proteger o capital transnacional em setores como a mineração ou os hidrocarbonetos.

A exploração intensiva dos recursos naturais tem graves impactos sociais e ambientais e gera resistências cidadãs, que os governos combatem porque colocam em risco as suas exportações, razão pela qual acabam entreverados no enfraquecimento ou violação dos direitos das pessoas.

O ponto a destacar é que este modelo, baseado na associação entre crescimento econômico, exportações de matérias-primas e extrativismo, nas suas características básicas é o mesmo defendido pela política conservadora e neoconservadora que agora assola os nossos países. Estes fazem-no por outros meios, como acaba de acontecer na Argentina com a aprovação do Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos (RIGI). Essa lei, considerada uma grande vitória por Milei, garante incentivos fiscais, aduaneiros e cambiais para grandes empreendimentos de setores como o agronegócio, a mineração ou os hidrocarbonetos. Algumas destas medidas são o sonho do CEO de uma transnacional, como a estabilidade regulatória durante 30 anos, eximindo-os do cumprimento de requisitos sociais, trabalhistas ou ambientais de governos subnacionais ou liberalizar os fluxos de capitais. É tão extremo que foi descrito como uma entrega incondicional dos recursos nacionais.

Seus efeitos foram quase imediatos. Poucos dias depois da aprovação do RIGI, uma das maiores mineradoras do mundo (a australiana BHP) anunciou um investimento de dez bilhões de dólares para extrair cobre, naquela que será supostamente a maior mina do mundo. Foi seguida por uma avalanche de projetos em lítio, que segundo a imprensa totalizariam vinte bilhões de dólares.

•        A economia política

A defesa do progressismo a partir dessa economia política, como faz Natanson, repete ideias muito comuns que implicam um desconhecimento, e inclusive uma renúncia, de pelo menos duas tentativas de renovação da esquerda latino-americana. Em primeiro lugar, esquecem-se os esforços feitos há várias décadas para abandonar esta subordinação como fornecedores de bens primários, propondo, por exemplo, o desenvolvimento endógeno ou a industrialização própria.

Em segundo lugar, perdem-se as tentativas mais recentes de refrescar a esquerda, procurando a “radicalização da democracia”, que incluía desde orçamentos participativos até metas mais ambiciosas, como respeitar e unir os povos indígenas, proteger a natureza e combater as mudanças climáticas, ou assumir as reivindicações do feminismo no desmantelamento do patriarcado.

Por outro lado, esta visão progressista é a-histórica; é como se esta intelectualidade progressista entendesse que o desenvolvimento começou com a globalização do comércio de commodities, acreditando que estas exportações eram suficientes para dar um salto no desenvolvimento. Limitam-se a evitar discutir ou explorar reformas substanciais do capitalismo; pararam de imaginar alternativas que não fossem capitalistas; e consideraram perdidos os acordos com diferentes movimentos sociais.

Estas auto-análises não conseguem discernir que estas formas de compreender o desenvolvimento têm consequências políticas e econômicas que não podem ser evitadas. Acabam desprezando a resistência local e, como não têm outra opção senão continuar com o extrativismo, acabam em conflito com as comunidades locais, ativistas e acadêmicos. Fazem-no de uma forma que restringe os direitos dos cidadãos e enfraquece a democracia, e não consegue evitar que os impactos sociais e ambientais se agravem. A sua estratégia econômica reforça a dependência do capital e da globalização, ao mesmo tempo que inibe a sua própria industrialização.

•        Entre bobos e inteligentes

Vários intelectuais fornecem argumentos e racionalidades para defender estas posições progressistas. Entre eles Natanson, que se destacou na explicação e justificação de que os líderes políticos poderiam prometer algo, mas não cumprir uma vez alcançada a vitória eleitoral (como ocorreu em um caso argentino sobre mineração). Não se percebe que estes raciocínios corroem a legitimidade da própria política e enfraquecem os mecanismos democráticos. A exigência de renovação da esquerda por uma radicalização da democracia fica pelo caminho.

Insistindo nessa posição, em seu exame da derrota para Milei, Natanson ataca duas personalidades argentinas: a socióloga Maristella Svampa e o advogado Enrique Viale. Ele comemora que ninguém prestou atenção às advertências destes dois em relação aos acordos petrolíferos ou aos impactos do fracking que, entre outros, foram aprofundados pela presidência de Alberto Fernández. No entanto, ambos são intelectuais e ativistas respeitados, que conhecem as circunstâncias locais do extrativismo na Argentina e o denunciam com informações sérias e verificáveis. O fato de ninguém ter prestado atenção neles não é motivo de comemoração, mas faz parte do problema. A gestão de Milei baseia-se agora nesta erosão da democracia e nesta surdez aos avisos.

Estamos, portanto, diante de uma economia política que carece de argumentos suficientes para responder aos questionamentos a que as comunidades locais e a academia expõem as suas contradições e fragilidades. Então, tudo o que lhes resta é o apelo ao “realismo político”, à rejeição ou ao ridículo. Exemplo disso é o uso do rótulo “ambientalismo bobo” para se referir àqueles que alertavam, por exemplo, sobre os impactos da exploração do petróleo (termo cunhado por Natanson, e que ele lançou na televisão argentina).

Se este raciocínio fosse aplicado a toda a América do Sul, também seriam “bobas” as organizações indígenas que resistem à entrada de empresas petrolíferas aos seus territórios porque contaminam as suas águas com petróleo, as exigências dos grupos locais chilenos pelo acesso à água, ou os discursos do presidente colombiano Gustavo Petro contra os combustíveis fósseis por alimentarem as mudanças climáticas.

Por outro lado, Bolsonaro seria “inteligente” quando tentou liberalizar a exploração na Amazônia, e Milei não seria um “bobo”, mas o mais realista e eficaz porque impõe o extrativismo até as últimas consequências, como agora o RIGI permite. Desta forma, o sonho de aumentar todas as exportações para crescer economicamente poderia realmente ser realizado – isto é, aplicando seriamente a receita que Natanson pretende para o progressismo.

Neste ponto devemos voltar a Svampa e Viale, pois apontam que “nem tudo é novo no discurso negacionista de Milei”, porque há ideias que estiveram presentes em setores conservadores, mas também progressistas.

Sem dúvida, intelectuais como Natanson são muito diferentes dos animadores da extrema-direita ao estilo Milei (o primeiro quer “ambientalismo inteligente”, o segundo é um negacionista). Mas o que estas opiniões mostram na Argentina é que no radicalismo da extrema-direita existem fatores que foram prefigurados no progressismo e que foram blindados com os argumentos que eles forneceram. Milei pode hoje desmontar muitos direitos ou zombar do ambientalismo, das feministas, dos direitos, porque havia vozes e práticas progressistas que já faziam isso há muito tempo.

O que é dramático em tudo isto, e sobre o qual devemos insistir, é que há reflexões dentro destes progressismos que não percebem estes problemas. O fato de se referir a uma derrota cultural ou política, ou lamentar não ter fortalecido uma economia capitalista de exportação de matérias-primas, deixando de lado as questões dos direitos, da democracia, da globalização e da dependência, mostra que muitos ainda estão presos a análises superficiais. Estas formas de pensar, como a de Natanson, impedem que o progressismo seja reformulado à esquerda.

Enquanto isso, Milei e a direita dogmática oferecem uma retórica vestida de alternativa, mas ao mesmo tempo esvaziam de conteúdo as opções de mudança. A saída para esta situação é reconhecer esse quadro, assumir as contradições do progressismo, incluindo aquelas contidas nas suas visões convencionais sobre política e desenvolvimento. Trata-se de reconhecer que não há alternativas numa economia capitalista primarizada e subordinada, que continua a depender da venda de carne ou lã, soja ou celulose. Portanto, uma renovação da esquerda deve necessariamente questionar as ideias do desenvolvimento. Esta é uma tarefa básica, tanto para resolver problemas prementes em múltiplos territórios como para impedir a ascensão da extrema-direita.

 

Fonte: Desde Abajos – traduçao do Cepat, em IHU

 

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