A nova voracidade das multinacionais
agroquímicas
Nos últimos tempos,
grandes empresas agroquímicas internacionais vêm se redirecionando para a
produção de insumos biológicos para o agronegócio. Enquanto há apenas 20 anos o
número de empresas ativas no mercado global de inseticidas “bio” podia ser
contado nos dedos de uma mão, hoje existem mais de 1.200. Mais do que uma
conversão ecológica, tudo indica que é a descoberta de um novo e substancial
filão para expandir seus lucros já multimilionários.
A ONG internacional
Grain (Grano), com sede em Barcelona, em um estudo publicado na segunda
quinzena de agosto, confirma que todas as grandes corporações de agroquímicos
-como Bayer, BASF, Corteva, FMC, The Mosaic Group, Syngenta, UPL e Yara, entre
outras- já operam nessa área. Sob o nome de Bioinsumos Corporativos: O Novo
Negócio Tóxico do Agronegócio, o estudo afirma que essa “penetração nesse
mercado se dá de maneira agressiva devido à sua forma típica de proceder, por
meio de compras, contratos de licenciamento e fusões”.
A história do setor
agroquímico nas últimas décadas é repleta de paradoxos. Até o final da década
de 90, a Monsanto (que desde 2018 pertence à empresa alemã Bayer) produzia e
vendia, exclusivamente, defensivos químicos destinados a combater drasticamente
pragas em grandes áreas de monoculturas, com impactos desastrosos para os seres
humanos e para o meio ambiente. Agora, visa controlar o mercado global de
inseticidas do tipo “bio”. Durante todo esse tempo, foi, principalmente, o
campesinato que utilizou agrotóxicos não químicos, como os feitos a partir do
microrganismo Bacillus thuringiensis (Bt), de impacto mais lento e adequado a
unidades produtivas menores.
<><> O
oportunismo como base de lucro
De acordo com o
relatório Bioinsumos. Oportunidades de investimento na América Latina,
publicado em 2023 pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação), o mercado global de insumos biológicos atingiu 10,6 bilhões de
dólares em 2021, enquanto o de insumos agroquímicos atingiu 245 bilhões. Até
2026, o setor de bioinsumos deverá responder por cerca de US$ 18,5 bilhões,
quase o dobro da taxa de cinco anos antes, como resultado de um crescimento
acelerado de proporções devido à voracidade transnacional.
Grain argumenta que
grande parte do mercado global de bioinsumos já está nas mãos das principais
multinacionais de agrotóxicos. Em 2022, a Bayer comercializou insumos de tipo
bio no valor de 214 milhões de dólares e projeta 1,6 bilhões em 2035. Em 2023, as
vendas da empresa estadunidense Corteva atingiram 420 milhões de dólares, e as
do grupo Syngenta, com sede na Suíça, 400 milhões. Essas corporações, assim
como o resto de suas concorrentes, estão interessadas em biopesticidas porque
são os produtos que mais vendem: cerca de metade do mercado global de
bioinsumos. A outra metade inclui biofertilizantes para nutrir as culturas e
bioestimulantes para aumentar sua capacidade de absorver nutrientes. Para
garantir esse crescimento acelerado, as grandes empresas têm concentrado seu
interesse em apenas alguns produtos, aqueles que contêm o microrganismo Bt: 90%
do mercado global de biopesticidas.
Em termos de impacto
regional, o maior mercado de insumos de base biológica está localizado nos
Estados Unidos e no Canadá, seguidos pela Ásia-Pacífico, Europa e América
Latina. Um caso emblemático é o do Brasil, um dos mercados em mais rápida
expansão e, portanto, um importante alvo para as transnacionais agroquímicas.
Em junho de 2024, o Brasil registrou a venda de 1.273 insumos bioagrícolas:
metade biopesticidas, metade biofertilizantes. Em sua maioria, destinados às
principais monoculturas, como soja, milho e trigo, 82% desses insumos foram
produzidos por empresas estrangeiras. De acordo com o Ministério da Agricultura
do Brasil, atualmente, os biofertilizantes são usados em quase 40 milhões de
hectares e os biopesticidas em 10 milhões de hectares. A área cultivável atual
nesse país sul-americano é de quase 79 milhões de hectares.
O estudo da FAO
destaca a magnitude do uso de agrotóxicos na América Latina. “Embora a produção
agrícola global seja sustentada por um uso intensivo de agroquímicos”, afirma,
“de acordo com dados de 2019, pelo menos nove países latino-americanos dobram ou
triplicam o número de quilos de pesticidas por hectare usados por países como
os Estados Unidos e o Canadá”. E ressalta que o aumento das temperaturas -como
resultado das mudanças climáticas-, acelera a forma como as pragas se
reproduzem, colocando maior pressão sobre os sistemas de produção da região.
Dados que reforçam a importância atribuída à América Latina pelas empresas
produtoras de insumos agroquímicos tradicionais e dos novos bioinsumos. E o
duplo papel que desempenham: por um lado, promover a produção em larga escala e
o agronegócio (ou agronegócio para exportação) e, por outro, contribuir para o
aquecimento global e para a crise climática.
<><>
Agroquímicas e seu poder arrasador
A corrida das grandes
corporações agroquímicas no desenvolvimento e na promoção de bioinsumos anda de
mãos dadas com impressionantes avanços tecnológicos e científicos, como a
capacidade de editar geneticamente, com a biologia sintética e a ciência de dados,
que facilitam a identificação de microrganismos para a formulação de novos
bioprodutos. Além disso, os avanços tecnológicos permitem que eles garantam o
controle do monopólio por meio de patentes. De acordo com Grain, essas
corporações estão apostando em trazer esses produtos geneticamente modificados
ao mercado sem ter que enfrentar obstáculos regulatórios.
Uma patente é um
título de propriedade industrial através do qual o direito exclusivo sobre uma
invenção é reconhecido. Impede que outros façam, vendam ou usem tal invenção
sem o consentimento de seu proprietário. Entre 2000 e 2023, foram registrados
mais de 44 mil pedidos de reconhecimento oficial de patentes de bioinsumos em
todo o mundo.
Diante dessa avalanche
de multinacionais que tentam penetrar e se impor no mercado de insumos
biológicos a qualquer preço, a reação dos pequenos e médios produtores
agrícolas é insignificante. Segundo Grain, esse processo em curso “pode
provocar uma nova onda de privatização dos modos de vida” que até agora têm
sido reservados às comunidades camponesas e aos seus conhecimentos ancestrais.
As patentes de processos e sequências genéticas de microrganismos criarão um
mercado de bioinsumos dominado pelas corporações, dando-lhes direitos de
monopólio. Isso significa, diz Grain, que aqueles que desejam usar produtos com
certos componentes ou processos patenteados “devem obter autorização ou pagar
pelo direito de uso”. Como a Via Campesina e a Grain alertaram em 2015 em seu
documento conjunto sobre A Criminalização das Sementes Camponesas: Resistência
e Lutas, em caso de descumprimento dos mecanismos estabelecidos pelo direito
internacional de patentes, o campesinato pode receber multas onerosas e até
sentenças de prisão.
<><> Novo
paradigma agrário
Essa é uma questão de
relevância global com um impacto significativo, particularmente para a América
Latina e o Caribe, que continua sendo fundamental para a segurança alimentar e
a preservação da biodiversidade no mundo; uma região que produz alimentos para
cerca de 1,3 bilhões de pessoas (mais que o dobro de sua população), reúne 50%
da biodiversidade do planeta e abriga seis dos países mais biodiversos do
planeta: Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e República Bolivariana da
Venezuela. E, ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies de alimentos
silvestres ameaçadas, além de 200 milhões de hectares de terras já degradadas.
As grandes empresas do
agronegócio fazem parte das principais responsáveis pela crise climática e por
muitos outros problemas globais. Para Grain, “a solução não é apenas reduzir os
pesticidas e os fertilizantes químicos”, porque ambos são componentes inevitáveis
do modelo de agricultura industrial inserido em um sistema alimentar global
injusto e predatório, controlado por algumas corporações multinacionais. A
solução vem da definição de um novo paradigma de produção e distribuição
agrícola.
Nesse quadro, como, há
décadas, os movimentos sociais do campo vêm propondo o grande desafio que
consiste em realizar uma transição para a agroecologia baseada no conhecimento,
nos saberes camponeses, na inovação coletiva e na soberania alimentar, descartando
soluções tecnológicas caras e com patentes corporativas que apenas perpetuam a
agricultura industrial e suas consequências devastadoras. É, simplesmente, uma
questão de realocar o cursor social, colocando a saúde de cada ser vivo e da
Mãe Terra no centro.
• Campeão no uso de agrotóxicos, Mato
Grosso tem municípios agrícolas com maior risco de mortes fetais e anomalias em
bebês
Uma criança em Lucas
do Rio Verde, município da região central de Mato Grosso, tem um risco 20%
maior de nascer com anomalias congênitas — alterações estruturais ou funcionais
que ocorrem durante o desenvolvimento fetal — do que uma criança nascida em Juruena,
670 quilômetros distante em direção noroeste, no mesmo estado.
Esse risco também se
eleva para mortes fetais. Mulheres que vivem em Lucas do Rio Verde têm até 30%
mais chances de perder o bebê após a 28ª semana de gestação do que as moradoras
de Juruena.
A explicação está
conectada à ocupação do território dessas duas cidades: enquanto Lucas do Rio
Verde tem mais de 50% de sua área coberta por lavouras, Juruena tem menos de
5%. Essa configuração impacta a saúde da população porque eleva o risco dessas
duas condições graves, segundo uma análise da InfoAmazonia em parceria com
Tatiane Moraes, pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP).
Moraes, que atua na
área de saúde ambiental e também integra o Observatório Clima e Saúde da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), primeiramente analisou todos os estados
brasileiros para identificar os maiores produtores de commodities do país. O
critério adotado foi selecionar aqueles com mais da metade dos municípios com
ao menos 5% de sua área dedicada à agricultura. São eles: Paraná, Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em seguida, foi
verificada a existência de uma associação entre anomalias congênitas e mortes
fetais e o tamanho da área agrícola nos municípios desses estados.
Mato Grosso foi o que
apresentou o maior risco de anomalias e mortes fetais entre todos os
analisados. Já São Paulo e Paraná não apresentaram associação entre o aumento
da área agrícola e um maior risco dessas condições.
No caso das anomalias,
o estado da Amazônia Legal apresenta uma chance 20% maior em municípios com
pelo menos 5% de lavouras em comparação àqueles que não alcançam esse
percentual. Cerca de 60% do estado, isto é, 85 municípios, têm mais de 5% do
seu território dedicado à agricultura.
Nos municípios mais
agrícolas de Mato Grosso do Sul, por exemplo, o risco aumenta em 12%; em Goiás,
em 4%. Na Região Sul, tanto o Rio Grande do Sul quanto Santa Catarina
registraram um aumento no risco de anomalias, variando entre 2% e 4% em
municípios com pelo menos 30% da área plantada.
Uso de agrotóxicos e a
saúde
Os mesmos estados
também estão entre os que mais comercializam agrotóxicos no país, segundo dados
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama). Mato Grosso também está no topo desse ranking, enquanto Goiás, Mato
Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul estão
entre os dez primeiros colocados.
O glifosato, o mais
utilizado no país, e outros produtos, como o 2,4-D, a atrazina, o mancozebe, o
clorotalonil e o acefato são fatores de risco ambiental para uma série de
doenças, como as anomalias e as mortes fetais. Exceto o glifosato e o 2,4-D –
um dos componentes do agente laranja, usado como arma de guerra –, os demais
são proibidos na União Europeia.
Para chegar aos
resultados, Moraes observou o avanço das áreas agrícolas entre 2013 e 2021, com
dados extraídos da plataforma MapBiomas. Em seguida, analisou os registros do
sistema nacional de saúde do DATASUS no mesmo período e verificou se havia
aumento na taxa de anomalias congênitas e mortes fetais, condições já
associadas à exposição a agrotóxicos. O objetivo era comparar os dados de saúde
de municípios com mais de 5%, 30% e 50% da área dedicada a plantações de grãos
com outros sem lavouras.
“Mensuramos o risco de
viver em um município agrícola com foco na saúde das crianças”, disse Tatiane
Moraes, que foi bolsista do Departamento de Saúde Global e População da
Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Os resultados reforçam a necessidade
de reavaliar o uso massivo de agrotóxicos na agricultura brasileira”, disse.
Em 2011, quando Lucas
do Rio Verde tinha metade da população atual, mas já despontava como um dos
polos do agronegócio, uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Mato
Grosso (UFMT) já havia identificado a presença de agrotóxicos em amostras de leite
materno de 62 mulheres. Em todas, havia algum resíduo de pesticida; em outras,
até seis tipos de agrotóxicos. O estudo foi orientado por Wanderlei Pignati,
líder de um grupo de pesquisadores da universidade que há décadas se dedica a
avaliar os diferentes impactos do agronegócio na saúde coletiva.
De lá para cá, o setor
agrícola em Lucas do Rio Verde só cresceu. Sua localização às margens da
BR-163, a principal via de escoamento das commodities até os portos do Pará ou
do Rio Grande do Sul, selou seu destino. O município abriu seu território para as
produções de milho, soja, arroz, algodão, que hoje ocupam mais de 120 mil
hectares. A população quase dobrou na última década.
Sinop, conhecida como
a Capital do Nortão, expressão cunhada por ser referência a outros 30
municípios da região, e Colíder, ambas situadas no trajeto da BR-163 em direção
ao norte, também seguem o mesmo caminho: destinam 30% a 50% do seu território a
lavouras, respectivamente. Mato Grosso deve plantar na safra 2024-2025 mais de
12,6 milhões de hectares só de soja, uma área superior a do território de
Portugal.
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Juruena e Lucas, paisagens distintas
A paisagem de Juruena,
um município com pouco mais de 10 mil habitantes, é oposta à de Lucas do Rio
Verde. Em vez de uma rodovia, está situada à beira do rio homônimo, uma das
nascentes do rio Tapajós. As áreas protegidas da floresta amazônica, que dominam
a região noroeste do estado, ofereceram mais resistência ao avanço agrícola. A
conversão do solo para a agricultura em Juruena não alcança 5%.
Ali a presença de
terras indígenas e unidades de conservação serviu como um freio ante o
desmatamento, que começou em Mato Grosso por Cuiabá em direção ao norte. “A
ocupação da região noroeste de Mato Grosso é bem mais recente, data do final
dos anos 1970 e início dos anos 1980, incentivada pela ditadura”, explica o
biólogo Eduardo Darvin, coordenador do programa de Economias Sociais do
Instituto Centro de Vida (ICV). “Como toda a ocupação na Amazônia, ocorreu de
forma desordenada, incentivando o desmatamento e teve vários ciclos, entre eles
o da madeira e o do garimpo”, detalha.
Nos últimos anos, as
áreas de pecuária estão sendo substituídas pela plantação da soja. Com a
commodity, veio toda uma cadeia que antes não existia, como máquinas agrícolas
e aviões usados na pulverização aérea de pesticidas. “Está ocorrendo muito
arrendamento e concentração de terras para expansão das lavouras, uma mudança
na economia regional que começa a trazer desemprego e agrotóxicos”, preocupa-se
Darvin.
A pulverização aérea
de agrotóxicos já chegou a abalar a rede de produtores agroecológicos
coordenada pelo ICV na região. “Alguns agricultores perderam toda a produção e
tiveram problemas de saúde”, disse. “Outros não conseguem ingressar na rede
porque estão cercados de lavouras que usam esses produtos”. O projeto do ICV
foi criado para fortalecer a agricultura familiar e fazer frente ao avanço do
desmatamento da região norte e noroeste, ocasionado primeiro pela pecuária e,
agora, pela soja.
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Efeito sobre as crianças
Embora as pesquisas
científicas apontem uma relação entre os agrotóxicos e o desenvolvimento de
doenças, ainda é um desafio quantificar a exata influência dos pesticidas. “Mas
o fato de ser complexo não significa que não haja impacto, isto é, que os
riscos não existam”, disse a geneticista Lavinia Schuler-Faccini, professora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Eles (os riscos) existem e
estão sendo cada vez mais demonstrados por estudos ecológicos, que comparam
populações diretamente expostas com as não expostas, por pesquisas em animais e
com células in vitro”.
Uma das maiores
autoridades em anomalias congênitas, Schuler-Faccini lidera um serviço de
vigilância no sul do Brasil, outra região agrícola importante. O grupo trabalha
para identificar as causas evitáveis de defeitos físicos e neurológicos em
bebês – e os pesticidas, é claro, entram na mira. Alguns deles funcionam como
desreguladores endócrinos, resultando em problemas de fertilidade; outros
modificam a expressão de genes, um efeito que vem sendo estudado pela
epigenética.
“A presença do
pesticida no organismo, até mesmo em pequenas doses, pode alterar o
funcionamento das sinalizações produzidas por genes. Desligam a expressão de
determinado gene, ou o acende de modo fraco, ou muito forte. É um efeito a
longo prazo, que ocorre muito antes de uma gestação”, explica.
Orientando de
doutorado de Schuler-Faccini, o bioquímico Ricardo Rohweder assina um estudo de
revisão que avaliou 80 pesquisas observacionais realizadas em 13 países da
América Latina e do Caribe sobre os efeitos da exposição pré-natal a pesticidas
na saúde de gestantes e seus filhos. Publicada no Journal Health and Pollution,
a pesquisa identificou uma associação dos agrotóxicos a uma série de efeitos
adversos à saúde dos bebês. “Além de anomalia congênita, encontramos outros
desfechos obstétricos, como prematuridade, perda gestacional, baixo peso,
leucemia infantil, alergias e problemas de neurodesenvolvimento”, detalhou.
Chamou a atenção de Rohweder a pouca quantidade de estudos sobre o glifosato, o
mais usado no Brasil e no mundo.
Uma das pesquisadoras
do Núcleo de Estudos Ambientais e em Saúde do Trabalhador (Neast), coordenado
por Pignati, da UFMT, a enfermeira Mariana Soares também identificou uma
associação entre a exposição parental aos agrotóxicos e risco de câncer em
crianças e adolescentes no mundo.
O estudo de revisão
mostrou que herbicidas, como o glifosato, e os inseticidas organofosforados
foram os mais relacionados com o câncer infanto-juvenil, especialmente a
leucemia infantil. “Estamos cada vez mais demonstrando quais são os fatores que
adoecem as pessoas em uma região onde o agronegócio domina”, explicou Soares.
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Agrotóxicos e a chegada da soja
No Brasil, os
agrotóxicos foram introduzidos com a soja transgênica na década de 1990, e o
seu uso só aumentou à medida que essa commodity ganhou espaço. Atualmente, a
soja domina a produção agrícola brasileira, atingindo 154,6 milhões de
toneladas na safra 2022/23, quase toda geneticamente modificada. Enquanto isso,
o Brasil aplicou um recorde de 800,6 mil toneladas de agrotóxicos em 2022,
quantidade maior do que em qualquer outro país no mundo.
A tendência é que o
uso desses produtos químicos aumente, já que o caminho para os agrotóxicos está
cada vez mais livre. Em 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) reavaliou o glifosato e considerou não haver evidências científicas
que o produto da Monsanto cause danos à saúde humana que tornem proibitivo seu
uso.
Em maio deste ano, o
pacote de leis chamado PL do Veneno afrouxou ainda mais o controle de novos
agrotóxicos no país, apesar de duras críticas da comunidade científica.
Entidades e partidos políticos da oposição protocolaram no Supremo Tribunal
Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade para derrubar a lei, em
parte porque viola os direitos das crianças e adolescentes.
Para Larissa Bombardi,
autora do livro “Colonialismo e Agrotóxicos” publicado em 2023, um dos
principais argumentos que impulsiona os agrotóxicos é o fato que eles aumentam
a produção de comida, o que ajuda a acabar com a fome. A pesquisadora do
Departamento de Geografia da USP explica, no entanto, que esse raciocínio não
funciona, já que as culturas que mais crescem no país não servem para a
alimentação, como a soja.
Segundo Bombardi, o
debate dos agrotóxicos tem de ocorrer sob outra perspectiva.“Temos que pensar
se queremos produzir commodities sem limites ou se queremos preservar nossa
biodiversidade e a qualidade da água,” afirma a pesquisadora. “Será que
produzir mais é importante para o conjunto da sociedade brasileira?”.
Antes mesmo do PL do
Veneno, a legislação já permitia níveis muito elevados de resíduos de
agrotóxicos em água potável. A União Europeia aceita, para a maioria dos
agrotóxicos comercializados, o valor máximo de 0,1 de microgramas por litro
(μg/L). Considerando os produtos mais vendidos no Brasil, o valor tolerado por
aqui é 20 vezes maior para a atrazina, 300 vezes maior para o clorpirifós e
2,4-D, 900 vezes maior para o Diuron, 1.800 vezes maior para o mancozebe, e
para o acefato sequer existe um limite.
O glifosato,
agrotóxico mais vendido do Brasil e no mundo, tem o valor limite de 500 μg/L no
Brasil, o que representa 5.000 vezes mais do que os países europeus. O limite
nos Estados Unidos é maior: aproximadamente 700 μg/L.
“Temos dois problemas:
os limites tolerados da nossa legislação estão desatualizados, e não temos
estudos sobre as misturas de agrotóxicos”, disse a farmacêutica Solange Garcia,
professora da UFRGS especializada em toxicologia. “Não estamos expostos a uma
única substância naquela concentração determinada. Isso não existe.”
Garcia chamou atenção
para outro aspecto pouco falado: agrotóxicos contêm metais pesados. “Ninguém
fala sobre isso”, observou. O mancozebe, por exemplo, o segundo agrotóxico mais
usado no Mato Grosso, conforme dados do Ibama, tem manganês na composição.
Uma pesquisa orientada
por Garcia descobriu doses elevadas de manganês no sangue de crianças em uma
cidade do interior do Rio Grande do Sul – os estudantes desenvolveram
alterações endócrinas e cognitivas em função da contaminação. “Os metais se
acumulam no organismo, na planta, no solo. É muito grave”.
No exterior, o
glifosato e outros produtos considerados perigosos também seguem sem grandes
restrições. No ano passado, a Comissão Europeia autorizou o uso do herbicida
por mais 10 anos, apesar de permitir que cada país-membro possa controlar o uso
por conta própria.
Nas cortes
norte-americanas, porém, a Monsanto-Bayer, fabricante do Roundup, marca que tem
o glifosato como principal ativo, tem contabilizado derrotas. Vítimas de câncer
têm conseguido provar na Justiça a associação entre as suas doenças e a
exposição ao produto.
Até agora, 154 mil
ações judiciais já chegaram às cortes americanas, e a multinacional pagou cerca
de US$ 11 bilhões de dólares (62 bilhões de reais) em indenizações para as
vítimas. Como resultado da ofensiva judicial, a Bayer também retirou glifosato
dos produtos para uso residencial nos Estados Unidos, incluindo grama caseira –
este uso segue autorizado no Brasil.
No Mato Grosso, o
Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso (MPT-MT) lidera uma das frentes
contra o uso intensivo dos pesticidas. Em 2019, uma ação civil pública movida
pelo MPT pediu a proibição do uso de glifosato nas lavouras do estado,
incluindo a difundida pulverização aérea, para proteger a saúde dos
trabalhadores rurais. A ação não prosperou, mas foi encaminhada para o Centro
Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), órgão mediador da
justiça. A estratégia agora é tentar a redução do uso do herbicida com a
conscientização junto a entidades como a Aprosoja, que representa sojicultores.
Mais recentemente o
MPT-MT entrou com uma outra ação, ainda em curso, pedindo o cancelamento do
registro da atrazina, o terceiro agrotóxico mais usado no Mato Grosso. A
atrazina é proibida na Europa há mais de duas décadas, após estudos mostraram
sua ação sobre hormônios sexuais dos animais. Segundo o procurador do trabalho
Bruno Choary Cunha de Lima, a ação observa o princípio da precaução: não se
pode expor um trabalhador a um produto reconhecidamente perigoso.
Na Câmara dos
Deputados, um projeto de lei do deputado Padre João (PT-MG) também pede o
banimento da atrazina. No texto do PL, o deputado destaca que a substância pode
trazer danos à saúde em doses muito pequenas e de não haver controle sobre a
quantidade usada nas lavouras.
Além de ameaçar
espécies de plantas e animais em extinção por desregular a ação hormonal, a
atrazina também está relacionada a anomalias genitais congênitas em meninos.
Seus efeitos sobre as crianças se assemelham ao que ocorre nos animais, como
redução da produção da testosterona, hipospádia (abertura anormal da uretra) e
micropênis.
COMO ANALISAMOS O
IMPACTO DOS AGROTÓXICOS NA SAÚDE DA POPULAÇÃO DO MATO GROSSO?
Nesta reportagem,
utilizamos as taxas anuais de óbitos fetais do Sistema de Informação de
Mortalidade (SIM) e de anomalias congênitas no Sistema Nacional de Nascidos
Vivos (Sinasc), disponibilizada pelo DATASUS. Estimamos as taxas de doenças por
1 mil habitantes para os municípios, considerando a população estimada pelo
Censo Demográfico 2022, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Posteriormente,
calculamos a área municipal dedicada à produção agrícola a partir dos dados do
Projeto MapBiomas – Coleção 08 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso da
Terra do Brasil, considerando apenas a subclasse Agricultura. Criamos variáveis
categóricas para identificar os municípios brasileiros com 5%, 30% e 50% do
território com produção agrícola.
A partir do cruzamento
desses dados, foi mensurado o risco da ocorrência dessas condições por
município, conforme a área agrícola.
Para reforçar nosso
compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a
InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Fonte: Página do
MST/Infoamazônia
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