quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Viver e morrer nos presídios brasileiros

As prisões no Brasil, um dos países com maior número de pessoas encarceradas no mundo, são um caldeirão de enfermidades e morte. Quem passa uma temporada atrás das grades corre de duas a sete vezes mais risco de contrair uma doença infecciosa (em especial a tuberculose) e de morrer do que o resto da população da mesma idade. Também experimenta uma probabilidade duas a seis vezes maior de ser morto em brigas e outras situações violentas ou de, aparentemente, tirar a própria vida, em particular se for jovem. A possibilidade aumentada de adoecer, espalhar enfermidades e morrer não cessa com o fim da pena. Os riscos continuam mais elevados por anos após o retorno à vida em liberdade, antes de se igualarem aos de quem nunca foi encarcerado, e têm algumas especificidades. Por exemplo, é alta a taxa de óbitos por agressão e homicídio após a saída da prisão, diferentemente do que ocorre em países de alta renda, como Austrália, Suécia ou Estados Unidos, onde os ex-detentos morrem mais em decorrência de intoxicação por álcool e uso de drogas, segundo estudo publicado em abril na revista The Lancet.

O cenário nacional – tenebroso e, de certo modo, já imaginado – começou a ser mais bem delineado nos últimos anos graças a uma série de estudos realizados por médicos, enfermeiros, psicólogos, antropólogos, historiadores e sociólogos interessados em conhecer como vivem e morrem os presos brasileiros. Muito do que se sabe hoje sobre o tema resulta de estudos iniciados na década passada por equipes como a dos infectologistas Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e Jason Andrews, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, que vêm identificando a frequência e os padrões de disseminação de doenças infecciosas nos presídios nacionais, além das causas de morte dentro e fora da prisão. Ou das análises do grupo liderado pela médica sanitarista Ligia Kerr, da Universidade Federal do Ceará (UFC), que em 2014 começou a avaliar a saúde física e mental das mulheres presas, e da socióloga Maria Cecília de Souza Minayo e da psicóloga Patricia Constantino, ambas da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, que recentemente mapearam as condições de vida e saúde de idosos em presídios do estado do Rio de Janeiro.

O quadro que se desenha a partir desses trabalhos indica que o sistema prisional brasileiro, de modo similar ao de outros países, falha em cumprir as obrigações legais no que diz respeito às pessoas privadas de liberdade mantidas sob a guarda do Estado. Em vez de oferecer instalações adequadas ao cumprimento da pena, além de acesso à saúde e à educação, a fim de “proporcionar a harmônica integração social do condenado e do internado”, como estabelece a Lei de Execução Penal nº 7.210, de 1984, as prisões do país levam ao agravamento da saúde dos encarcerados. “No ordenamento jurídico brasileiro atual, não existe pena de morte, mas nossos cárceres parecem sentenciar muitos detentos à morte”, avalia Cíntia Rangel Assumpção, agente federal de execução penal e coordenadora-geral de Cidadania e Alternativas Penais da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. “Esse efeito está ligado à nossa ideia, como sociedade, de que a pena é uma forma de vingança.”

Para alguns especialistas, o sistema carcerário intensifica as mazelas da sociedade por concentrar a população socialmente marginalizada e com menos acesso a recursos econômicos, educacionais e de saúde. De acordo com o Sisdepen, a ferramenta de coleta de dados do Sistema Penitenciário Brasileiro, e com a versão mais recente do “Relatório de informações penais”, havia 642.491 homens e mulheres mantidos em presídios no país no segundo semestre de 2023. Deles, quase 66% eram pretos e pardos; 60% tinham entre 18 e 34 anos; e 59% não haviam completado os nove anos do ensino fundamental. “Em geral, são pessoas sem qualificação profissional, que tiveram pouquíssimas oportunidades de inserção no mercado de trabalho”, conta Assumpção.

Celas lotadas e com má ventilação, alimentação desbalanceada e acesso limitado a cuidados médicos ajudam a transformar as prisões no que Croda, Andrews e a epidemiologista Yiran Liu, que estuda o impacto do encarceramento sobre a saúde em seu doutorado em Stanford, chamaram em um artigo publicado em fevereiro no Journal of Infectious Diseases de “amplificadores institucionais” da propagação de patógenos. “Nesses ambientes”, escreveram os pesquisadores, “surtos de tuberculose, cólera, sarampo, caxumba, varicela, gripe e Covid-19 se espalham com velocidade devastadora”.

“Cadeia não tem vocação para a saúde”, resume o médico Drauzio Varella, um dos pioneiros a tratar portadores do HIV no sistema carcerário. Desde 1989, ele atende voluntariamente detentos em presídios da capital paulista e, com base no que conhece sobre as cadeias de São Paulo, afirma que pouca coisa mudou. “A situação de saúde que encontro hoje é muitas vezes igual à de 30 anos atrás na Casa de Detenção de São Paulo”, conta o médico, que hoje atua no Centro de Detenção Provisória Chácara Belém, no bairro de Belenzinho, na capital paulista. “A situação costuma ser mais grave nos presídios masculinos. As celas têm de 5 a 10 presos a mais do que o número de camas, e parte dorme no chão. Nos centros de detenção, não há equipe interna de saúde. O estado até abre concurso, mas médicos não se apresentam. Os salários são baixos e o ambiente é tenso.”

A frequência das principais infecções que atingem os detentos brasileiros começou a ser mais bem conhecida a partir dos trabalhos de Croda e Andrews. No início dos anos 2010, eles e colaboradores passaram a realizar rastreamentos sistemáticos das enfermidades transmissíveis graves nos presídios de Mato Grosso do Sul, um dos estados que proporcionalmente mais encarcera gente no país – são cerca de 650 presos em cada grupo de 100 mil habitantes, o dobro da média nacional (320 por 100 mil).

Os pesquisadores analisaram amostras de sangue coletadas entre março de 2013 e março de 2014 de 3,6 mil detentos (85% homens e 15% mulheres) mantidos em 12 presídios sul-mato-grossenses. Constataram que, em média, 1,6% dos indivíduos era portador do HIV, o vírus da Aids, uma infecção associada a comportamentos de risco – como a prática de sexo sem proteção, a realização de tatuagens em locais inseguros ou o compartilhamento de seringas – antes ou durante a prisão. Essa proporção, registrada em um artigo publicado em 2015 na revista PLOS ONE, é cerca de quatro vezes superior à da população brasileira. Estudos nacionais anteriores já haviam detectado taxas mais elevadas, mas, em geral, realizados em um único presídio e na década anterior.

Outro vírus encontrado mais comumente entre detentos do que em quem nunca passou pelo cárcere é o da hepatite C (HCV), de acordo com outro trabalho, publicado em 2017 também na PLOS ONE. Transmitido por contato com sangue infectado (via compartilhamento de seringas e outros objetos de uso pessoal, além de cirurgias e transfusões sanguíneas), ele causa uma inflamação silenciosa no fígado que pode progredir para cirrose ou câncer. No grupo acompanhado por Croda e colaboradores nos 12 presídios, 2,4% eram portadores de HCV, quase o dobro da população geral.

Também foi mais elevada entre os presidiários a taxa de resultados positivos para os testes de sífilis. Essa doença sexualmente transmissível é causada pela bactéria Treponema pallidum: 9% dos homens e 17% das mulheres haviam tido a infecção em algum momento da vida e 2% deles e 9% delas apresentavam a forma ativa da enfermidade no momento da pesquisa, segundo dados publicados em 2017 em The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.

A situação mais assustadora diz respeito à tuberculose, a infecção mais letal no mundo, responsável por 1,5 milhão de mortes a cada ano. Em três rodadas de testagens realizadas entre 2017 e 2021, as equipes de Croda e Andrews encontraram taxas de prevalência da infecção por Mycobacterium tuberculosis que, em casos extremos, como os relatados em fevereiro deste ano em artigo publicado na Clinical Infectious Diseases, chegavam a 4.034 para cada grupo de 100 mil pessoas presas, ou seja, de 4%. Esse número é 100 vezes superior à prevalência registrada da população não encarcerada, 40 por 100 mil.

Nesse tempo todo investigando o comportamento da tuberculose, os pesquisadores aprenderam que uma proporção pequena dos presos (inferior a 10%) chega ao cárcere já infectada, muitas vezes sem manifestar a enfermidade. Também observaram que, depois de um ano de detenção, uma em cada quatro pessoas que nunca haviam tido tuberculose apresenta resultado positivo nos testes de detecção do bacilo.

Comparando a evolução da ocorrência de tuberculose de 2007 a 2013 em toda a população de presos em Mato Grosso do Sul, o médico Tarub Mabud, da equipe de Stanford, verificou que a taxa de casos novos relatados dos recém-encarcerados era de 111 por 100 mil pessoas. Entre presos encarcerados por 5,2 anos, a taxa era quase 12 vezes maior. Projeções realizadas pelo grupo e publicadas em 2019 na PLOS Medicine indicam que ela continua bem mais elevada entre essas pessoas mesmo depois de um bom tempo após a saída do cárcere. “Leva sete anos para que a taxa de novos casos de tuberculose entre os ex-detentos se iguale à do resto da população”, conta o enfermeiro Everton Lemos, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), coautor do estudo.

Os pesquisadores já sabiam que as altas taxas de tuberculose dos presídios não representam um problema apenas para os detentos. Em 2013, a farmacêutica Flávia Patussi Sacchi confrontou as características genéticas de bacilos isolados de 240 casos de tuberculose (60 em presos ou ex-presidiários e 180 entre cidadãos da comunidade) registrados entre 2009 e 2013 em Dourados (MS). Em 54% dos casos, as cepas de M. tuberculosis encontradas entre quem nunca esteve atrás das grades era geneticamente semelhante à dos detentos e ex-detentos, como relatou à época em artigo na Emerging Infectious Diseases.

Mais recentemente, a epidemiologista Katharine Walter, da equipe de Stanford, sequenciou o material genético de 935 amostras de M. tuberculosis isoladas de casos ocorridos entre 2014 e 2019 nas cidades de Dourados e Campo Grande, a capital do estado. Metade delas havia sido obtida de presos, 16% de ex-detentos e 34% de pessoas sem história de encarceramento. Outra vez a semelhança genética entre as cepas foi alta, sinal de que a transmissão era recente, segundo artigo na The Lancet Global Health – Americas de 2022. Ao cruzar os dados genômicos com os da circulação dos presos, os pesquisadores identificaram 18 prováveis episódios de transmissão dos presídios para a sociedade.

“As transferências de detentos entre presídios, o retorno à vida fora do cárcere e o contato com familiares e os servidores do sistema prisional facilitam o escape para a sociedade”, explica Croda. “Não é possível resolver o problema da tuberculose no país, um dos que mais registram casos da doença no mundo, sem prestar o atendimento adequado à população encarcerada.”

Nas últimas duas décadas, a prevalência de tuberculose dobrou nas prisões da Américas do Sul. Médicos e outros especialistas atribuem essa elevação principalmente ao aumento do encarceramento e à consequente superlotação. De 2000 para cá, a população prisional do Brasil cresceu quase quatro vezes e se tornou a terceira maior do mundo. No final de 2023, somava quase 844 mil indivíduos, com aproximadamente 200 mil em regime de prisão domiciliar (com e sem monitoramento por tornozeleira eletrônica) e pouco mais de 642 mil mantidos em 1.388 presídios, nos quais há vagas para apenas 480 mil.

Andrews vê dois caminhos para tentar melhorar a situação: um biomédico e outro judicial. Do lado biomédico, ele identifica a necessidade de mais investimento em recursos para serviços de diagnóstico, prevenção e tratamento, além da adoção de medidas que podem reduzir o risco de doenças infecciosas, como a melhoria da ventilação natural, aumento de horas ao sol ou medidas de higienização com radiação ultravioleta. No aspecto judicial, a saída seria buscar formas de punição alternativas ao encarceramento para os crimes não violentos. “No Brasil, as prisões são um importante local de recrutamento para o crime organizado. Encarcerar mais pessoas nesse contexto não traz segurança e piora as condições de saúde devido à superlotação.”

Enquanto estudavam a frequência e o comportamento das doenças infecciosas nos presídios, Croda e Andrews notaram que nesse ambiente o perfil do que leva ao óbito é diferente do restante da sociedade. Com apoio do governo estadual, eles conseguiram acesso aos dados de 114,7 mil indivíduos que estiveram presos em algum momento entre 2009 e 2018 em Mato Grosso do Sul. No período, houve 3.127 mortes, sendo 705 durante o encarceramento e 2.422 após a liberação. Ao cruzar as informações sobre a causa desses óbitos com os dados de sexo, idade e data de reclusão dos encarcerados, Yiran Liu constatou uma desproporção de óbitos por causas violentas e suicídio, além das mortes por doenças infecciosas.

A passagem pela prisão aumenta em 30% o risco de morrer por qualquer causa. Mas a probabilidade de morrer em consequência de agressões ou suicídio é duas vezes maior do que na população geral – elas foram, respectivamente, responsáveis por até 33% e 8% dos óbitos entre os homens no cárcere. Esse risco é ainda mais alto entre os mais jovens: nos centros de internação de adolescentes, ele é 19 vezes mais elevado do que na população geral. “Se as prisões fossem eficazes em promover a segurança, esperaríamos ver taxas menores de mortes por causas violentas durante o encarceramento e após a libertação”, afirma Liu, primeira autora do artigo que apresentou esses resultados, publicados em 2022 na PLOS Medicine. Esse trabalho serviu de base para o estudo da The Lancet citado no início da reportagem. “Acreditamos que o encontrado em Mato Grosso do Sul representa o que ocorre no restante do país”, relata Croda.

Em 2023, as professoras Maira Machado, do curso de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, e Natália Vasconcelos, do Insper, reuniram uma equipe de pesquisa para analisar a razão do óbito dos presos brasileiros. Foram estudados 1.168 processos de todos os estados brasileiros que haviam sido extintos entre 2017 e 2021 em consequência da morte do condenado, 10% delas ocorridas enquanto as pessoas se encontravam sob a custódia do Estado e o restante em média 1,5 ano após sair do presídio.

Grosso modo, elas foram classificadas em três categorias: naturais, acidentais e violentas. Lendo os processos, no entanto, os pesquisadores observaram que essa distinção nem sempre era tão nítida e muitas vezes não havia empenho em investigar a causa. “Essa tipologia de mortes oculta fronteiras. Uma parte das mortes naturais é, em algum grau, produzida pelo próprio sistema, ao passo que muitas mortes violentas são naturalizadas, como se conflitos entre facções criminosas e falhas do sistema carcerário não pudessem ser evitadas ou prevenidas”, conta o sociólogo Rafael Godoi, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), um dos autores do trabalho, que resultou no relatório “Letalidade prisional, uma questão de justiça e de saúde pública”.

 

Fonte: Por Ricardo Zorzetto, na Pesquisa Fapesp

 

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