sábado, 31 de agosto de 2024

Nós somos o isqueiro, mas o pavio é a seca

Alberto Setzer, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e idealizador do Programa Queimadas, faz muita falta. Se ainda estivesse entre nós, estaria trazendo exemplos de imagens de satélite da fumaça se espalhando pelo Brasil e conversando de forma solícita e clara com todos.

Lá em 2019, quando a fumaça transformou o dia em noite em São Paulo, ele me explicou:

“Elas [queimadas] são todas de origem humana, umas propositais e outras acidentais, mas sempre pela ação humana. Para você ter queimada natural, você precisa da existência de raios. Só que toda essa região do Brasil central, sul da Amazônia, está uma seca muito prolongada, tem lugares com quase três meses sem uma gota d’água”, disse.

Essa fala de cinco anos atrás se encaixa perfeitamente neste ano. Parece aqueles trechos de música atemporais. Poderia entrar em qualquer reportagem sobre a Amazônia e o fogo. Fica claro que o causador do problema somos nós, cada vez mais especialistas em destruir o próprio planeta. Nós somos o “isqueiro”.

Apesar de ele ter falado sobre a seca em 2019, ano também afetado pelo El Niño, em 2024 ela chega claramente mais intensa. Em julho, mês que marca o início da estação seca na Amazônia, 9 em cada 10 terras indígenas já estavam em algum grau de seca. A contribuição desse cenário para o fogo é cruel: até mesmo os indígenas, acostumados a usar o fogo de forma controlada para o roçado, podem perder o controle das chamas. Uma faísca em uma seca extrema já representa um risco. A seca é o “pavio”.

Assim, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, menciona a possibilidade de um segundo “Dia do Fogo”, referindo-se ao episódio em que fazendeiros decidiram, de forma criminosa e organizada, queimar áreas no Pará, em 10 de agosto de 2019. A ministra acredita que existe a possibilidade de uma reedição dessa ação neste ano, o que poderia justificar o aumento exacerbado das queimadas, principalmente as ocorridas em São Paulo. Como Setzer explicou, trata-se de ação humana. Agora, resta entender se é orquestrada. Resolvi comparar os dados da Amazônia e de São Paulo em agosto para encontrar novas pistas.

De acordo com o Programa Queimadas, no bioma Amazônia, a média diária de focos de calor em agosto de 2024 já é maior do que a de agosto de 2019 — neste ano, até agora, a média é de 1.045 focos, enquanto em 2019 foi de 989 — uma alta de quase 6%. Especificamente, em 10 de agosto de 2019, data oficial do “Dia do Fogo”, foram registrados 1.173 focos, mas o pico daquele mês ocorreu no dia 11, com 2.366 focos, número diário que a Amazônia não chegou a atingir até agora em 2024.

Analisando apenas os dados da Amazônia, eu apostaria que atualmente a seca é o fator que agrava o problema antigo que já conhecemos. E, em conversa com especialistas, é exatamente isso que eles afirmam: “Ficou muito claro que as queimadas, o aumento da área queimada, estavam muito relacionadas à questão climática, à gravidade da seca, à extensão do período seco, e isso gerou uma grande área de queimadas, principalmente em incêndios florestais”, disse Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Ou seja, na floresta, o agravamento do problema este ano parece estar mais conectado ao problema climático do que ao crime organizado.

Fiz o mesmo exercício apenas para o estado de São Paulo para verificar se os dados revelariam alguma pista sobre a fala da ministra Marina Silva. E, de fato, revelam. Entre os dias 22 e 24 deste mês, há um aumento que foge da curva. Esse aumento precisa ser investigado, mas, se seguir o mesmo padrão do que vemos no gráfico de 2019 x 2024 para a Amazônia, essa curva exacerbada pode evidenciar uma ação humana conjunta no estado, assim como ocorreu na Amazônia no “Dia do Fogo” e segue ocorrendo de forma pulverizada.

Independentemente disso, os suspeitos de cometer os crimes em São Paulo estão sendo presos. No caso do “Dia do Fogo”, já noticiamos aqui na InfoAmazonia que as áreas afetadas se tornaram, majoritariamente, pastagens — é para isso que o fogo é usado no bioma, para auxiliar o agronegócio na abertura de novas áreas para o gado ou para a agricultura. Por enquanto, nesse sentido, nada de novo. O que me preocupa é o dia em que esses dois fatores se unirem com mais força ainda e na Amazônia — a seca e o crime orquestrado. Todo mundo vai engolir fumaça.

 

•        Desmatamento, clima e crimes torram o país. Por Aldem Bourscheit

Esta semana, capitais de norte a sul foram novamente cobertas pela fumaceira do fogo que devora a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado e outros biomas. A conta cai no desmate imparável, na secura reforçada pelo desvario climático e em incêndios acesos por bandidos buscando lucros políticos.

Passam de 4,5 mil os focos de incêndios no Brasil contados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, só desde o fim de semana. Já foram mais de 107 mil desses focos registrados a partir de janeiro, um aumento de 75% sobre o mesmo período de 2023.

As principais grandes regiões naturais atingidas são a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado, mas quase todos os brasileiros respiram a fumaceira tóxica, um sinal democrático da dilapidação de florestas a savanas, de vida selvagem, de fontes de água e outros serviços ambientais.

A tragédia pirotécnica nacional bate recordes, ao menos até a próxima seca, e não poupa parques nacionais e outros tipos de unidades de conservação, ou nem mesmo quem empresta suor e sangue combatendo o implacável fogaréu.

Até serem extintas por agentes de governos e voluntários, as chamas engoliram por 5 dias o Parque Nacional da Serra do Cipó e a Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira, em Minas Gerais.

Chamas também são combatidas nas regiões do Parque Nacional do Araguaia, no Tocantins, do Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense, de reservas privadas (RPPNs) como a do Sesc Pantanal e da Terra Indígena Perigara, no Mato Grosso.

No mesmo estado, o brigadista Uellinton Lopes dos Santos (39) perdeu a vida enfrentando incêndios na Terra Indígena Capoto Jarina, em São José do Xingu.

Já a vida selvagem paga novamente um alto preço no Pantanal, que ainda se recuperava dos mega incêndios de quatro anos passados. Na época, foram estimados em 17 milhões os animais que morreram queimados.

Ainda não há um balanço deste ano, contudo mais de 560 espécimes silvestres foram resgatados vivos, como cervo-do-pantanal e anta. Já os mortos incluem veado-campeiro, jacarés, serpentes e também antas.

<><> Chamas ilícitas

A Polícia Federal investiga se foram criminosos os incêndios em vários estados, sobretudo administrados por opositores ao governo federal. Em São Paulo, as chamas começaram ao mesmo tempo, na última sexta-feira.

Os prejuízos econômicos explodem em vários setores. Só o da cana-de-açúcar, perdeu R$ 350 milhões no estado, o maior produtor nacional. Efeito colateral, os preços do etanol e do açúcar devem subir.

Já em Goiás, um suspeito foi preso por atear fogo em fazendas. Ele havia recebido R$ 300. Inúmeros animais silvestres e de criação foram queimados vivos.

No mesmo estado, o maior incêndio da história no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros também foi criminoso. Na época, em 2017, mais de 65 mil ha torraram, ou ¼ da unidade de conservação.

Todavia, punições severas a esse tipo de crime são coisa rara no Brasil e a bandidagem é agraciada até com fartos financiamentos públicos.

Parte das 478 fazendas ligadas ao “Dia do Fogo”, que incendiou o Pará em agosto de 2019, seguem queimando e desmatando e conseguiram créditos rurais somando R$ 200 milhões de bancos públicos e privados.

<><> Mais do mesmo

A capital Belém (PA) sediará em 2025 a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Até lá, os olhares globais estarão ainda mais voltados ao desempenho brasileiro contra o desmatamento, nossa maior fonte de gases de efeito estufa.

Nosso tema de casa para combater a crise climática pede proteção e restauração efetivas de florestas e outros arranjos naturais, reforça um artigo publicado na revista científica Perspectives in Ecology and Conservation.

Além disso, o país deveria emitir somente 200 milhões de toneladas anuais de CO2 equivalente até 2035 e zerar o desmatamento, cortando até 92% de sua poluição climática (emissões) em relação a 2005.

Mas, parece faltar apoio popular para que isso se torne real no jogo político.

Uma pesquisa da Universidade Federal do Pará indica que para 69,9% dos entrevistados o agronegócio é “positivo” para a Amazônia e que 64,7% não votaram em algum candidato “devido às causas ambientais que ele defende”.

O cenário se complica com uma redução de 24% no orçamento para combate a incêndios do Ibama. Os R$ 12 milhões cortados o deixaram com R$ 50 milhões anuais, ou menos da metade dos R$ 120 milhões solicitados.

Isso prejudica ações como a compra de equipamentos e a contratação de brigadistas. O governo anunciou, no dia 27-08, que contratará brigadistas temporários em 19 estados e no Distrito Federal.

 

•        Coincidência ou método? Queimadas recorde em SP lembram ataque coordenado à Amazônia em 2019

As queimadas que atingiram o estado de São Paulo nesse fim de semana e espalharam consequências por boa parte do território paulista e em outras unidades da federação podem ter sido um movimento criminoso coordenado. O cenário lembra o que ocorreu no Pará, em agosto de 2019, quando fazendeiros combinaram incêndios florestais por aplicativos de mensagens.

Conhecido como "Dia do Fogo", a série de crimes ocorreu entre 10 e 11 de agosto de 2019, em território amazônico. Produtores rurais se mobilizaram para atear fogo em diversos locais. Na época, foram descobertos esquemas, inclusive, para financiar a ação criminosa, com rateio do combustível usado nos atos ilícitos.

O resultado foi devastador: o número de focos de calor aumentou 1.923% em comparação ao mesmo período do ano anterior. Só nesses dois dias foram detectados 1.457 focos de calor no estado, com 53 atingindo Terras Indígenas e 534 em Unidades de Conservação.

No território paulista, embora o estrago total ainda não tenha sido contabilizado, o volume de prejuízos dos incêndios dos últimos dias também foi grande. São Paulo bateu o recorde nacional na última sexta-feira (23), com mais de 2,3 mil focos de fogo.

A crise ambiental inédita causou a morte de dois brigadistas em Urupês e levou o estado a decretar emergência em mais de 40 cidades. As consequências também são sentidas em outros locais do país. No domingo (25), Brasília, Goiânia e Belo Horizonte foram encobertas por fumaça.

Além disso, voos foram cancelados no triângulo mineiro, na capital goiana e no interior do estado de São Paulo. O aeroporto de Ribeirão Preto, uma das cidades mais atingidas pela fumaça, ficou fechado até domingo (26).

Frente aos indícios de criminalidade, investigações foram abertas. A Polícia Federal vai iniciar 31 processos de apuração em todo o país para chegar à origem das queimadas. Duas pessoas já foram presas, acusadas de terem provocado fogo na região de São José do Rio Preto e em Batatais.

A ministra Meio Ambiente, Marina Silva, reforçou a desconfiança de que o evento esteja relacionado a uma ação criminosa coordenada. "Da mesma forma que tivemos o Dia do Fogo há uma forte suspeita que agora esteja acontecendo de novo. Em São Paulo não é natural, em hipótese alguma, que em poucos dias tenham tantas frentes de incêndio envolvendo vários municípios. Mas obviamente que isso as investigações vão dizer", disse.

Já as apurações sobre o Dia do Fogo de 2019 avançaram pouco. Tanto o inquérito federal quanto as investigações da Polícia Civil não apontaram responsáveis diretos pelos incêndios e ninguém foi preso.

 

Fonte: Infoamazônia/((O))eco/Brasil de Fato

 

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