quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Moisés Mendes: A Venezuela é a mais dramática encruzilhada das esquerdas

Até a alma de Olavo de Carvalho foi mobilizada para que a extrema direita mundial bata na eleição venezuelana. É natural que golpistas brasileiros e americanos estejam se divertindo com a possibilidade de derrubar Maduro e causar danos a Lula.

O complicado é ver que uma turma da pesada das direitas extremada e moderada, que reúne de Hamilton Mourão a Luciano Huck, passando por Monark, Nikolas Ferreira, Tabata Amaral e Kim Kataguiri, tem posições semelhantes à de muita gente boa das nossas esquerdas.

Estão com o bolsonarismo e com Trump, com a Folha, com o Estadão e o Globo. Alinham-se a velhos e novos golpistas e com o que o bolsonarismo, principalmente o mais dissimulado, expõe de mais repulsivo em momentos graves.

Mas fazer o quê, se Maduro facilita as coisas para a direita e cria constrangimentos para a esquerda? A eleição posta em dúvida já era anunciada como armadilha para Lula, o PT e para quem tem simpatia pelo que resta de chavismo e pelo esforço de Maduro para levar adiante algo maior do que ele.

Maduro constrange as esquerdas, mesmo que se reconheça sua bravura no enfrentamento da caçada comandada pelos Estados Unidos e seus satélites sabotadores e mesmo que esteja há uma década sob a ameaça permanente de golpe.

O golpismo é intermitente em toda parte, onde houver esquerda no poder, incluindo o Brasil. Na Venezuela é pior, porque eles não irão suportar mais seis anos de Maduro. Poderia, se fosse deles.

Fernando Henrique quis e ficou mais quatro anos no governo no Brasil, criando uma reeleição que não existia aqui. E Fernando Henrique nunca será lembrado pela direita como golpista, mesmo que tenha desejado e arquitetado a reeleição para si mesmo. 

Donald Trump, que disputa de novo a eleição na mais arrogante e disfuncional das democracias, anunciou na semana passada a um grupo do que eles chamam genericamente de cristãos conservadores:

“Eu amo vocês. Saiam, vocês precisam sair e votar. Vocês não terão que votar mais. Em quatro anos, vocês não precisarão votar novamente, nós consertaremos tudo tão bem que vocês não precisarão votar”.

Trump, que não poderá ser reeleito de novo, se for eleito este ano, já anuncia que algo irá consertar tudo e solucionar essa barreira. Uma solução que elimine a trabalheira de uma eleição.

Nenhum direitista brasileiro irá apontar o dedo na cara de Trump pela insinuação de que pode virar ditador. Como não fizeram nada depois do 6 de janeiro de 2021, quando da invasão do Capitólio.

Na Argentina, onde prenderam mais de 30 estudantes nas manifestações de rua de 12 de junho e cinco continuam na prisão, especula-se como algo provável que, cada vez mais fraco, Javier Milei pode tentar algo da ideia de Trump. Não há uma linha sobre os encarcerados pelo fascismo argentino e suas feições de ditador. 

Não se ouve e não se vê ninguém da direita falando dessa e de outras atitudes da direita extremada, porque as anormalidades só existem do outro lado. 

Mas a esquerda se comove com situações que levam a conclusões ou suspeitas de que algo está errado. E Maduro deve ter cometido erros, se forem apenas erros. 

É assim que parte das esquerdas, juntando gente conhecida, políticos com representação e anônimos, se manifesta, com várias graduações, com críticas e ataques a Maduro. Todos diante da mais dramática encruzilhada desse século. 

Alguns se perguntando sobre o que é isso, outros achando que algo aconteceu e outros mais com a certeza de que coisas graves ocorreram.

É o problema das esquerdas, que a direita e muito menos a extrema direita nunca terão. Essas últimas não são consumidas pelo dilema de questionar ou não um parceiro arbitrário. Porque sabotar a democracia é, claro, da natureza deles todos.

As esquerdas sofrem nessas horas e se açoitam publicamente. Porque acabam reproduzindo as falas de Mourão, Kataguiri e Nikolas Ferreira e ficando ao lado de Luiz Almagro, o secretário da OEA (Organização dos Estados Americanos) que acionou o golpe na Bolívia contra Evo Morales em 2019.

Os Estados Unidos estão convocando Almagro para que produza relatórios sobre a eleição venezuelana, como ele fez em 2019 ao insinuar fraude na reeleição de Evo. É com essa gente que parte das esquerdas faz jogral hoje, mesmo que cantando num tom mais baixo. 

Como consolo, vale repetir uma tentativa de resumo do que pregava Ruy Fausto, o filósofo das inquietações éticas. As esquerdas somente terão algum sentido se não pensarem, não agirem e não reproduzirem o que condenam na direita. 

 

¨      O povo venezuelano permanece com a Revolução Bolivariana. Por Vijay Prashad

Em 28 de julho, no 70º aniversário de Hugo Chávez (1954-2013), Nicolás Maduro Moros venceu a eleição presidencial venezuelana, a quinta desde que a Constituição Bolivariana foi ratificada em 1999. Em janeiro de 2025, Maduro começará seu terceiro mandato de seis anos como presidente. Ele assumiu as rédeas da Revolução Bolivariana após a morte de Chávez por câncer pélvico em 2013. Desde a morte de Chávez, Maduro enfrentou vários desafios: construir a sua própria legitimidade como presidente no lugar de um homem carismático que veio a definir a Revolução Bolivariana; enfrentar o colapso dos preços do petróleo em meados de 2014, que impactou negativamente as receitas do Estado venezuelano (mais de 90% das quais vinham das exportações de petróleo); e gerenciar uma resposta às sanções unilaterais e ilegais impostas pelos Estados Unidos, que se aprofundaram à medida que os preços do petróleo caíam. Esses fatores negativos pesaram muito sobre o governo de Maduro, que está no cargo há uma década após ser reeleito nas urnas em 2018 e agora em 2024.

Desde a primeira vitória eleitoral de Maduro em 2013, a oposição de extrema-direita começou a rejeitar o processo eleitoral e a reclamar de irregularidades no sistema. Entrevistas que realizei ao longo da última década com políticos conservadores deixaram claro que eles reconhecem tanto o domínio ideológico do chavismo sobre a classe trabalhadora da Venezuela quanto o poder organizacional não apenas do Partido Socialista Unido da Venezuela de Maduro, mas das redes do chavismo que vão das comunas (1,4 milhão de pessoas) às organizações juvenis. Cerca de metade da população votante da Venezuela está fielmente comprometida com o projeto bolivariano, e nenhum outro projeto político na Venezuela possui o tipo de máquina eleitoral construída pelas forças da revolução bolivariana. Isso torna impossível a vitória em uma eleição para as forças anti-Chávez. Para esse fim, seu único caminho é difamar o governo de Maduro como corrupto e reclamar que as eleições não são justas. Após a vitória de Maduro — por uma margem de 51,2% a 44,2% — é exatamente isso que a oposição de extrema-direita tem tentado fazer, incitada pelos Estados Unidos e uma rede de governos de extrema-direita e pró-EUA na América do Sul.

<><> A Europa Precisa do Petróleo Venezuelano

Os Estados Unidos têm tentado encontrar uma solução para um problema que eles mesmos criaram. Tendo imposto sanções severas tanto contra o Irã quanto contra a Rússia, os Estados Unidos agora não conseguem encontrar facilmente uma fonte de energia para seus parceiros europeus. O gás natural liquefeito dos Estados Unidos é caro e insuficiente. O que os EUA gostariam é de ter uma fonte confiável de petróleo que seja fácil de processar e em quantidades suficientes. O petróleo venezuelano atende aos requisitos, mas, dadas as sanções dos EUA à Venezuela, esse petróleo não pode ser encontrado no mercado europeu. Os Estados Unidos criaram uma armadilha para a qual encontram poucas soluções.

Em junho de 2022, o governo dos EUA permitiu que a Eni SpA (Itália) e a Repsol SA (Espanha) transportassem petróleo venezuelano para o mercado europeu para compensar a perda de entregas de petróleo russo. Essa permissão revelou a mudança de estratégia de Washington em relação à Venezuela. Não seria mais possível sufocar a Venezuela impedindo as exportações de petróleo, já que esse petróleo era necessário devido às sanções dos EUA à Rússia. Desde junho de 2022, os Estados Unidos têm tentado calibrar a sua necessidade desse petróleo, a sua antipatia pela Revolução Bolivariana e as suas relações com a oposição de extrema-direita na Venezuela.

<><> Os EUA e a Extrema-Direita Venezuelana

O surgimento do chavismo — a política de ação massiva para construir o socialismo na Venezuela — transformou o cenário político no país. Os antigos partidos de direita (Acción Democrática e COPEI) colapsaram após 40 anos alternando-se no poder. Nas eleições de 2000 e 2006, a oposição a Chávez foi fornecida não pela direita, mas por forças dissidentes de centro-esquerda (La Causa R e Un Nuevo Tiempo). A Velha Direita enfrentou um desafio da Nova Direita, que era decididamente pró-capitalista, anti-chavista e pró-EUA; esse grupo formou uma plataforma política chamada La Salida ou A Saída, que se referia à sua desejada saída da Revolução Bolivariana. As figuras-chave aqui foram Leopoldo López, Antonio Ledezma e María Corina Machado, que lideraram protestos violentos contra o governo em 2014 (López foi preso por incitação à violência e agora vive na Espanha; um funcionário do governo dos EUA em 2009 disse que ele é “frequentemente descrito como arrogante, vingativo e ávido por poder”). Ledezma mudou-se para a Espanha em 2017 e foi — com Corina Machado — signatário da Carta de Madrid de extrema-direita, um manifesto anticomunista organizado pelo partido espanhol de extrema-direita, Vox. O projeto político de Corina Machado é sustentado pela proposta de privatizar a empresa petrolífera da Venezuela.

Desde a morte de Chávez, a direita venezuelana tem lutado com a ausência de um programa unificado e com uma bagunça de líderes egoístas. Coube aos Estados Unidos tentar moldar a oposição em um projeto político. A tentativa mais cômica foi a elevação, em janeiro de 2019, de um político obscuro chamado Juan Guaidó à presidência. Essa manobra falhou e, em dezembro de 2022, a oposição de extrema-direita removeu Guaidó como seu líder. A remoção de Guaidó permitiu negociações diretas entre o governo venezuelano e a oposição de extrema-direita, que desde 2019 esperava uma intervenção militar dos EUA para garantir o poder em Caracas.

Os EUA pressionaram a extrema-direita cada vez mais intransigente a realizar conversações com o governo venezuelano para permitir que os EUA reduzissem as sanções e deixassem o petróleo venezuelano entrar nos mercados europeus. Essa pressão resultou no Acordo de Barbados, de outubro de 2023, no qual os dois lados concordaram com uma eleição justa em 2024 como base para a retirada gradual das sanções. As eleições de 28 de julho são o resultado do processo de Barbados. Embora María Corina Machado tenha sido impedida de concorrer, ela efetivamente concorreu contra Maduro por meio de seu candidato de procuração Edmundo González e perdeu em uma eleição acirrada.

Vinte e três minutos após o fechamento das urnas, a vice-presidente dos EUA Kamala Harris — agora candidata à presidência nas eleições de novembro nos Estados Unidos — publicou um tweet admitindo que a extrema-direita havia perdido. Foi um sinal precoce de que os Estados Unidos — apesar de fazerem barulho sobre fraude eleitoral — queriam deixar para trás seus aliados de extrema-direita, encontrar uma maneira de normalizar as relações com o governo venezuelano e permitir que o petróleo fluísse para a Europa. Essa tendência do governo dos EUA frustrou a extrema-direita, que recorreu a outras forças de extrema-direita na América Latina em busca de apoio e que sabe que seu argumento político restante é sobre fraude eleitoral. Se o governo dos EUA deseja que o petróleo venezuelano chegue à Europa, terá de abandonar a extrema-direita e acomodar o governo de Maduro. Enquanto isso, a extrema-direita tomou as ruas com gangues armadas que querem repetir as perturbações da guarimba (barricada) de 2017.

 

¨      Derrota da direita venezuelana não surpreendeu ninguém – nem poderia. Por Paulo Moreira Leite

Um bom resumo do comportamento da mídia reacionária diante da reeleição de Nicolás Maduro na Venezuela encontra-se na última linha do editorial de O Globo (29/07/2024): "O Brasil precisa denunciar a farsa eleitoral de Maduro", conclama o texto, numa sugestão que, apesar de ridícula, envolve ambições políticas óbvias.

Numa operação de sabotagem contra o voto de 11 milhões de eleitoras e eleitores que foram às urnas neste domingo, propõe-se que o governo Lula dê um tiro no próprio pé, somando a reconhecida influência regional do país e seu governo numa investida de inspiração imperialista contra um aliado histórico, já integrado a memória política e econômica desta região do planeta.

"Em nenhum momento o processo na Venezuela inspirou confiança. As irregularidades foram constantes", prossegue a Vênus Platinada, numa retórica previsível de quem encara uma tarefa vergonhosa – pressionar o governo brasileiro a cometer uma traição contra um parceiro histórico – e com essa finalidade procura reescrever os fatos conforme seu interesse e conveniência.

O que se quer, aqui, é devolver a Venezuela e suas riquíssimas reservas mineiras ao circuito imperialista, impedindo que parcelas consideráveis desses benefícios sejam partilhados com as camadas pobres da população, em projetos de investimentos públicos e distribuição de renda que são a marca principal dos governos chavistas.

Encerrada a campanha, o problema de um palavreado tão contundente encontra-se na consistência gelatinosa – para não dizer nula – das observações negativas sobre uma votação ocorrida sob o olhar atento da maioria da população do país.

Foram 11 milhões de eleitores e eleitoras – ou 54% do eleitorado total – que saíram de casa, neste domingo, obviamente informados sobre a relevância da pauta do dia e em sua maioria já resolvidos sobre a atitude a tomar nas urnas.

A derrota do candidato de direita, o diplomata Edmundo Gonzales, não surpreendeu ninguém – nem poderia. Sua expressão política é nula e ele só ganhou relevância na vida pública como testa de ferro assumido de uma deputada, Maria Corina Machado, milionária de extrema direita, que perdeu os direitos políticos por 15 anos depois que foi condenada numa investigação sobre ocultação da própria fortuna.

Neste ambiente, a eleição de domingo foi um clássico pleito sul-americano, onde questões como a fome, o emprego, a escola dos filhos e a aposentadoria dos mais velhos se encontravam no centro da agenda – e ali devem permanecer enquanto a Venezuela, ao lado de seus vizinhos, permanecer um país de muitas oportunidades para poucos e uma imensa desigualdade amargada por quase todos.

Alguma dúvida?

 

Fonte: Brasil 247

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário