Marco Temporal e outras armadilhas
neoliberais: a velha aliança genocida do capital e Estado sobre os Guarani
Kaiowá
Na manhã do dia 13 de
julho de 2024, no município de Douradina, Mato Grosso do Sul, o povo Guarani e
Kaiowá iniciou a autodemarcação do seu território longamente esperado. A
reivindicação é de uma área de 12.196 hectares em estudo e já identificada.
Envolve os territórios de Gua’aroka, Yvy Ajhere, Ita’y Ka’agurusu, Pikyxi’yn,
Kurupay´y, Tajasu Ygua e Guyra Kambi’y na qual se encontram sobrepostas grandes
propriedade de monocultivo de soja e de milho. O Mato Grosso do Sul tem a maior
concentração fundiária do Brasil: de acordo com o Atlas Agropecuário de 2017,
as terras particulares configuram 92% do território do estado. Nas retomadas,
as principais lideranças são as nhandesys, mulheres anciãs, sabedoras da
localização da terra ancestral, acompanhadas na luta por mulheres gestantes,
jovens e crianças. As terras tradicionais ou tekoha são para os Guarani e
Kaiowá os lugares nos quais as comunidades podem exercer seu modo de ser em
reciprocidade com a natureza. Ali, as parentelas ampliadas estabelecem relações
sagradas com o território, o que possibilita a continuidade dos seus costumes e
a vida mesma através do acesso ao que resta da biodiversidade das florestas que
lhes proporcionam alimentos saudáveis e variados e plantas medicinais.
A reação violenta dos
grandes proprietários rurais, cujas fazendas incidem nos territórios Guarani e
Kaiowá, foi imediata. Um primeiro momento de terror com dezenas de camionetes
cercando, perseguindo e disparando contra a comunidade deixou vários indígenas
feridos. Posteriormente, circulou nas redes sociais um vídeo dos ruralistas
organizando seu próprio acampamento e um cerco noturno de camionetes novas
perto das retomadas. No vídeo veicularam frases em tom de ameaça como: “o bambu
vai envergar e a tropa de choque está chegando”. A confiança que os grandes
ruralistas depositam no apoio de políticos locais de extrema-direita e na
segurança pública descortina a desigualdade das forças em jogo: de um lado,
fazendeiros e seus pistoleiros fortemente armados com dezenas de camionetes e
drones e, de outro, uma comunidade liderada pelas mulheres nhandesys com seus
mbarakas em mãos.
Dois lados antagônicos
nessa história. Dois projetos societários em confronto declarado, em evidente
assimetria de poder. Desfilando de dia e sobretudo à noite, as caminhonetes
disparam fogos de artifício perto das retomadas, reforçando com os faróis as ameaças
e o terror. Da parte dos Guarani e Kaiowá, os mbarakas e tacuaras dos quais
retiram a força da sua reza e o canto nas vozes das mulheres anciãs são os
alentos coletivos para continuar a luta por seu tekoha. É gritante a
discrepância entre a pesada e luxuosa estrutura belicista dos fazendeiros e os
barracos de lona preta erguidos pelos Guarani e Kaiowá. As imagens do conflito
revelam o cenário desértico da destruição causada pelo monocultivo de
commodities para exportação, refletindo o peso do Estado nesse teatro de
horrores que é a produção agrícola em grande escala para acumulação de capital.
Em outro vídeo que
circula nas redes sociais, é possível escutar tiros vindos das agromilícias em
suas caminhonetes que ultrapassam constantemente as barricadas formadas pelos
Guarani e Kaiowá. Estes atos em muito se assemelham com as ações do Invasão Zero,
uma organização que reúne cerca de 5 mil membros, entre fazendeiros e
parlamentares da bancada ruralista, cujo objetivo é atacar e criminalizar os
movimentos do campo que lutam pela terra. O grupo surge em março de 2023 e
conta com o apoio da Frente Parlamentar Invasão Zero e associações empresariais
ligadas ao agronegócio.
Na sua primeira
aparição midiática, o grupo foi acusado pela morte de Nega Pataxó-Hã-Hã-Hãe
durante a retomada Terra Caramuru-Catarina Paraguaçu, na Bahia. Segundo algumas
lideranças indígenas, o grupo Invasão Zero funciona como uma milícia que opera
através do WhatsApp. Os fazendeiros se comunicam acerca de “invasões” em suas
propriedades e ali organizam operações conjuntas e, através da figura legal do
“desforço imediato”, se amparam para deflagrar com as próprias mãos a
reintegração da posse ilegal e violenta. O deputado Zucco, presidente da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra (MST), justifica a criação do grupo pela “ausência do Estado
na resolução dos conflitos agrários, [que] pode provocar uma tragédia se
tivermos um enfrentamento mais duro entre índios (sic), sem-terra e
agricultores”. O primeiro presidente do Invasão Zero já declarou que “a
Constituição não existe na Bahia. E também não se prende ninguém pela invasão
de propriedade. Dessa forma, tivemos que reagir e nos organizar para expulsar
os invasores por conta própria”. O grupo atua frontal e violentamente contra a
demarcação de terras indígenas e contra a reforma agrária espalhando o ódio e o
racismo. Apesar das explícitas e reiteradas manifestações que indicam seu
caráter miliciano, os órgãos públicos não tomam cartas no assunto para sua
dissolução.
Os ruralistas em
Douradina vêm realizando táticas semelhantes às da Invasão Zero, lançando mão
de diversos expedientes para projetar sua truculência nas retomadas como uma
luta social dentro da legalidade com atos em frente ao Ministério Público,
apoiados por políticos bolsonaristas. Com efeito, nos vídeos que circulam nas
redes sociais, deputados federais e estaduais da extrema direita vinculados às
bancadas da bala, da bíblia e dos bancos disseminam fake news e criminalizam a
autodemarcação dos Guarani e Kaiowá. Imitando o grupo Invasão Zero, conclamam o
Estado a perpetrar uma ação violenta de despejo ou atuarão em seu lugar. Em
defesa da propriedade privada, o povo Guarani e Kaiowá é criminalizado como um
empecilho ao lucro que grupos privados obtêm com a exploração da terra
tradicional.
Os conflitos de terra
no MS refletem um contexto mais amplo da necessidade de expansão do capital em
crise sobre os territórios. Essa expansão é sustentada e legitimada através do
Estado Democrático de Direito e operacionalizada pelos diferentes governos, à
esquerda ou à direita, cujo papel vem sendo o de criar continuamente as
condições para viabilizar a produção destrutiva do agronegócio para acumulação
de renda nas mãos da burguesia agrária e do capital financeiro internacional.
Essas condições envolvem uma permanente reciclagem de dispositivos legais que
complementam os mecanismos violentos e de espólio perpetrados pelas classes
dominantes desde os tempos coloniais.
Do mesmo modo, o
saqueio vem sendo realizado contra a mãe-terra e os efeitos da mudança
climática se ativaram de forma alarmante na região. No Pantanal, as queimadas
de origem criminosa para desmatar e expandir o agronegócio começaram mais cedo,
em 2024, disparando os focos de incêndio em 1025% nos seis primeiros meses em
comparação ao ano anterior. Em 2023, a bacia do rio Paraguai apresenta seca
recorde a respeito de 2023, levando o bioma a uma das piores crises hídricas da
sua história em que alguns municípios pantaneiros apresentam redução da
superfície de água. Em alguns lugares, os moradores estão sem água potável e
precisam ser assistidos por caminhões pipa. Atualmente, o Mato Grosso do Sul,
cujas cidades se cobrem da fumaça vinda do Pantanal a cada ano, é um dos
estados brasileiros mais afetados pela severa estiagem causada pelo
desmatamento e as queimadas. Nos últimos meses, o estado registra um clima de
deserto, com índices de umidade relativa do ar entre 10% a 20% - níveis
considerados críticos e de grande impacto à saúde humana. Como se isso não
bastasse, a contaminação do solo, da água dos rios e dos lençóis freáticos e,
inclusive, da água das chuvas pelo uso intensivo de agrotóxicos que este modelo
produtivo/destrutivo na agricultura exige, é um grave problema invisibilizado
pela mídia hegemônica, pelos políticos locais e pelas autoridades de saúde
pública. O problema se agrava quando estes químicos nocivos à saúde humana e ao
meio ambiente são pulverizados nas proximidades de comunidades camponesas e
indígenas, sendo em muitas ocasiões utilizados como arma de guerra contra as
comunidades Guarani e Kaiowá.
Todo este cenário de
destruição e violência vai de encontro à simbologia exibida na posse
presidencial do Lula em janeiro de 2023. Na época, ele subia a rampa junto ao
cacique Raoni, liderança dos povos originários, invocando o fim de uma
conjuntura política anti-povos indígenas e anunciando uma agenda progressista
em favor das comunidades do campo e da cidade. Porém, a desconexão entre o
plano simbólico do espetáculo midiático e a efetivação concreta dos direitos
sociais aponta para a permanência de uma dívida histórica que se enraíza na
austeridade fiscal. Instrumento determinante no controle da distribuição da
riqueza social, o plano de austeridade apresentado pelo atual governo através
do arcabouço fiscal é a continuidade do projeto de poder neoliberal que o
capital vem impondo há décadas para manter seu secular padrão de dominação.
As migalhas destinadas
aos direitos sociais, seja educação, saúde, reforma agrária e demarcação de
terras indígenas são apresentadas ideologicamente como uma grande solução e
como o horizonte final ao qual o povo brasileiro deve se adaptar. Elas cumprem um
papel conciliatório na dimensão ideológica, mas na prática são parciais e
acabam por neutralizar as lutas tão necessárias à melhoria das condições de
vida de toda a população. Neste contexto de austeridade, uma das táticas da
burguesia agrária na questão das demarcações dos territórios indígenas é impor
os mecanismos neoliberais do mercado e da privatização da terra, flexibilizando
a Constituição de 1988.
Os limites da política
conciliatória do atual governo e a insuficiência das pseudo-alternativas
impostas pelo capital em crise já foram percebidos pelas comunidades Guarani e
Kaiowá. Para garantir formas de vida digna e a própria sobrevivência não há mais
opção do que efetivar com suas próprias forças comunitárias a autodemarcação
dos territórios. Um sintoma disso é a recente multiplicação de retomadas de
terra Brasil afora, como expressam as lutas dos povos Avá-Guarani no Paraná,
Anacé no Ceará, Guarani Mbya e Kaigang no Rio Grande do Sul, Parakanã no Pará,
e dos Guarani Kaiowá em outros municípios do próprio MS, como Caarapó, que
anunciam um novo ciclo de resistências.
• Demarcação de terra que nunca sai do
papel
O processo
demarcatório da TI Panambi-Lagoa Rica iniciado em 2005, está suspenso desde
2011 por uma ação judicial no Tribunal Regional Federal (TRF3) a partir de
sentença favorável ao produtor rural em fase de recurso. Em 2016, o processo de
demarcação foi anulado na 1a Vara Federal de Dourados através de um juiz que se
baseou na tese do Marco Temporal, a qual obriga os povos originários a
comprovar a ocupação dos territórios em 5 de outubro de 1988, data da
promulgação da Constituição como condição para efetivar a demarcação.
Durante décadas a fio,
a reforma agrária e a demarcação dos territórios indígenas têm sido
sistematicamente engavetadas nos labirintos dos rituais burocráticos apesar de
serem transformações estruturais necessárias à concretização dos direitos
sociais e da dignidade dos povos do campo e da classe trabalhadora, em especial
dos povos originários. O congelamento das demarcações de terras indígenas
previstas na Constituição de 1988 responde, por um lado, ao bloqueio histórico
das reformas estruturais outrora prometidas pela industrialização fordista e
escamoteadas no período neoliberal. Por outro lado, as saídas impostas
autoritariamente pelas classes dominantes brasileiras e internacionais em
tempos de hegemonia financeira apontam para o viés neoliberal e privatizante do
mercado.
A flexibilização da
Constituição de 88 se efetiva através da lei 14.701/23, ainda que todas as
ações judiciais que se baseiam no Marco Temporal estejam suspensas por
determinação do STF. Ao instituir o
marco temporal através desta lei, a bancada ruralista promoveu aumento
significativo da violência e da insegurança física e jurídica dos povos
originários, implicando graves retrocessos como o questionamento de territórios
em processo de demarcação ou já demarcados, a anulação da voz das comunidades
indígenas referente à entrada nos seus territórios de projetos extrativistas de
mineração e grandes empreendimentos e a legalização de práticas de
arrendamentos destinadas à produção de commodities agrícolas.
A lei 14.701/23
promulgada pelo Congresso ignorou a decisão colegiada do STF que rejeitou o
marco temporal e se posicionou a favor de sua inconstitucionalidade. Apesar
deste julgamento, o STF considerou viável a figura de indenização prévia da
terra nua aos não indígenas, leia-se grandes proprietários de terra. É
importante ressaltar que apenas a indenização das benfeitorias (e não da terra
nua) e o eventual acionamento da permuta são mecanismos permitidos dentro do
processo de demarcação para a desintrusão da terra, sobretudo para que pequenos
produtores tenham seus direitos garantidos quando suas propriedades incidem em
territórios indígenas. A União é obrigada a ressarcir as benfeitorias ou a
oferecer a permuta como alternativa, ao nosso ver justa, para reassentar os
pequenos produtores que não contam com os recursos necessários para recomeço
das suas vidas. Tudo isto é viável desde que estes procedimentos estejam
atrelados ao reconhecimento da tradicionalidade dos territórios indígenas e em
observância dos ritos do processo demarcatório segundo a Constituição.
O entendimento do STF,
apenas uma semana após considerar inconstitucional a tese do marco temporal, é
de que a indenização prévia da terra nua é um importante instrumento de
conciliação de conflitos. Porém, esta determinação que valida a compensação
monetária antecipada pela terra, e realizada fora do processo demarcatório
estabelecido por lei, viola a constituição e responde à operacionalização da
lógica mercantil e neoliberal nas políticas de demarcação de territórios. Estes
dispositivos cumprem duas funções muito importantes: 1) Recriam as condições de
acumulação e expansão do capital na agricultura; 2) Do ponto de vista
ideológico desmontam perigosamente a noção de tradicionalidade da terra
indígena, também prevista constitucionalmente. A ocupação pelos povos indígenas
de suas terras tradicionais e por eles habitadas em caráter permanente são
direitos originários, segundo os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988.
Isto significa que a ocupação é anterior às leis fundiárias e de parcelamento
do solo em propriedades privadas e antecede qualquer normativa legal da
sociedade brasileira. O questionamento do direito originário através da
indenização prévia da terra nua e a permuta implementada fora do processo
administrativo demarcatório cumpre a função de colocar as terras tradicionais
das comunidades no balcão do mercado nacional e internacional.
A substituição do
arcabouço constitucional por estas políticas parciais e mercantilizantes vem
tomando conta dos operadores burocratizados do Estado e dos governos de
turno, independentemente da cor
político-partidária. Há uma convergência unânime em torno da compra de terras
para indenizar os fazendeiros ou a permuta por fora dos processos
demarcatórios. Em evento de oficialização da exportação de carnes rumo à China,
realizado no frigorífico da JBS em Campo Grande no começo deste ano, o
presidente Lula anunciou a compra de uma fazenda para os Guarani e Kaiowá na
beira da estrada. Ao mesmo tempo, conclamou o governador do estado, Eduardo
Riedel, a criar uma parceria para a compra de propriedades rurais para assentar
os indígenas. Conhecido empresário e ruralista, Riedel organizou o Leilão da
Resistência quando era presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de
Mato Grosso do Sul (Famasul), em 2013. Há 11 anos, Riedel já apontava para essa
saída e inclusive participou da criação do Fundo Estadual para Aquisição de
Terras Indígenas (FEPATI), cujo objetivo é a captação de recursos públicos e
privados para a compra de fazendas que incidem em territórios indígenas - com o
consentimento do governo federal, inclusive de políticos locais ligados ao
Partido dos Trabalhadores. A proposta não contempla a devida consulta às
comunidades indígenas, passando por cima da tradicionalidade da terra, sendo
que já há terras identificadas e reconhecidas como tradicionais e originárias.
Esta imposição se configura como mais um processo de desterritorialização das
comunidades que teimam em acampar nas beiras de estrada próximas aos seus
almejados territórios.
O Ministério dos Povos
Indígenas, através de seu gabinete da crise, vem também sinalizando como
solução aos conflitos a retribuição monetária dos fazendeiros pela terra. No
fundo, dá continuidade à política do Governo Federal de conciliação dos
interesses antagônicos entre fazendeiros e os Guarani e Kaiowá. Porém, esse
mecanismo abre um perigoso precedente de vincular os direitos originários à
capacidade da União em arcar com os preços de mercado da terra exigidos pelos
fazendeiros, não levando em conta que essas terras são fruto de violências
expropriatórias contra os indígenas durante a história republicana do Brasil
que vai desde a cessão de 5 milhões de hectares de terra à Cia. Matte
Laranjeiras, passa pela Marcha para o Oeste durante o governo Vargas e perdura
até os dias atuais. Também, em um contexto de austeridade fiscal para os
direitos sociais, a morosidade de pagamento das terras aos fazendeiros se
converte em mais um mecanismo que retarda o acesso à terra.
A liberalização dos
territórios indígenas, efetuada a partir da deslegitimação ideológica da
tradicionalidade pela via da indenização prévia da terra nua, abre a
possibilidade de que variantes distorcidas de permuta sejam realizadas de forma
completamente diferente do estabelecido por lei. Grandes proprietários podem
passar a oferecer terras altamente degradadas às comunidades que reivindicam
territórios condicionando a entrega da terra ao recuo das comunidades e a saída
das retomadas. Esta situação aconteceu na recente audiência conciliatória entre
comunidades indígenas e fazendeiros no Ministério Público Federal pelo conflito
da TI Panambi-Lagoa Rica, em que grandes proprietários ofereceram 150 hectares
de terra degradada aos indígenas. Perante os 12.196 hectares reivindicados,
esta troca representou uma barganha inaceitável para os Guarani e Kaiowá que no
ato recusaram dignamente o ardil. Os mesmos 150 hectares de terra oferecidos
como forma de negociação mediada pelo MPF foram objeto de ordem de reintegração
de posse em favor dos fazendeiros. Se efetivado este tipo “saída” na TI Panambi
Lagoa-Rica se abre a possibilidade de um precedente de aplicação em nível
nacional além de promover a desobrigação do Estado no avanço das demarcações.
O paroxismo com que o
agronegócio busca ludibriar os mecanismos institucionais que garantem direitos
sociais e meio ambientais expressam uma crise estrutural muito profunda em que
o capital não mais aceita barreiras ao seu processo de expansão. Subordinada às
grandes corporações transnacionais e pressionada pela feroz concorrência no
mercado internacional de commodities, a burguesia agrária local não consegue
reproduzir seu padrão de acumulação e domínio sem um alto grau de destruição de
seres humanos e da natureza, levando a humanidade aos limites da catástrofe e
da mera sobrevivência através da acumulação por espoliação.
Torna-se essencial o
controle político através das bancadas no Congresso Nacional, dos
representantes ideológicos ao interior do STF e da ocupação de pastas no
Governo Federal, onde redes de burocratas, cujos interesses estão intimamente
vinculados à estabilidade do sistema, operacionalizam a drenagem da riqueza
socialmente produzida via cadeias globais de acumulação comandadas pelos
grandes monopólios do capital financeiro internacional. Os dispositivos
acionados são os mais diversos: isenções fiscais através da antiga Lei Kandir
e, mais recentemente, da reforma tributária, o perdão das dívidas ao setor e,
caso notável que escancara a assimetria de poder econômico e político é a do
Plano Safra 2024-2025, que destinou um montante de R$ 600 bilhões ao agronegócio.
As propostas de indenização prévia da terra nua e de permuta em suas inúmeras
variantes junto com a flexibilização da constituição são mais um capítulo do
saqueio em curso que reflete a crise global em que o capital se encontra
atualmente.
• Os limites do Estado e da administração
do conflito
No dia 17 de julho, os
fazendeiros locais entraram com ação judicial de reintegração de posse ajuizada
na 1ª Vara Federal de Dourados com pedido de antecipação de tutela para o
despejo da comunidade Guarani e Kaiowá. O pedido dos ruralistas foi aceito e legitimado
pelo juiz, que deu 5 dias para que a comunidade saia do seu legítimo território
tradicional, já identificado a partir do processo demarcatório. O juiz, sem
fazer referência expressa, se utiliza justamente da tese do marco temporal para
descaracterizar o território indígena e tratar os Guarani Kaiowá como invasores
da propriedade privada rural. Ao deferir a antecipação de tutela, o juízo
ignora a existência do processo demarcatório impedindo a defesa do povo do seu
território.
Desde a ordem de
reintegração de posse, um helicóptero sobrevoa a área da retomada impondo o
terror e trazendo lembranças do Massacre de Guapo´y em 2022, quando um
helicóptero da Polícia Militar literalmente caçou os indígenas, deixou dezenas
de feridos e um morto. Os fatos mostram como o Estado democrático de direito é
funcional aos interesses do grande capital, dando ares de legalidade e
legitimidade à concentração da riqueza social e da terra enquanto recorre à
violência direta quando lhe escapa das mãos o controle social. O “desforço
imediato” acionado pelos próprios fazendeiros e o uso de segurança pública para
“apaziguar o conflito” e “oferecer segurança aos indígenas” são lados da mesma
moeda do espólio de terras. Com efeito, de acordo com os próprios Guarani
Kaiowá, a Força Nacional, acionada pelo MPI, tem feito vistas grossas às
ameaças dos ruralistas ou mesmo agravado o tensionamento local.
A ampla gama de
instituições criadas para resguardar os direitos territoriais dos povos
originários - Gabinete de Crise do MPI, Grupo de Trabalho Povos Indígenas
(GTPI), Defensoria Pública da União (DPU), Departamento de Mediação de
Conflitos do MPI, Ministério de Direitos
Humanos e Cidadania (MDHC) - se mostra inofensiva e inoperante diante jogo de
forças com que os fazendeiros contam na hora de perpetrar um despejo que
anuncia mais um derramamento de sangue. Na prática, um MPI desfinanciado e
despido de suas atribuições de demarcação territorial tem sido
instrumentalizado pelo Governo Federal para tentar conciliar o inconciliável e
adiar a concretização de um direito inegociável: os interesses radicalmente
antagônicos de fazendeiros e povos originários. Ao fechar os olhos para a
reintegração de posse e insistir que um diálogo está sendo travado com os
fazendeiros, o Governo Federal, na figura de seus ministérios, aceita rifar os
direitos originários ao mercado cumprindo o papel subordinado aos interesses do
grande capital financeiro internacional.
A política de
apaziguamento das lutas já foi percebida pelos indígenas que resistem e se
recusam a abandonar seus territórios secularmente usurpados. A poucos dias de
execução do despejo e de um iminente massacre, o povo Guarani Kaiowá mantém a
sua resistência e mostra que a única reconciliação possível se encontra na
demarcação das terras indígenas!
Fonte: Correio da
Cidadania
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