sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Lei da Anistia: 45 anos depois, ainda dá tempo de punir criminosos da ditadura se houver revisão?

Promulgada em plena ditadura militar, em 1976, a Lei nº 6.683, mais conhecida como Lei da Anistia, completa 45 anos nesta quarta-feira (28).

A lei foi responsável por libertar mais de 100 presos políticos e possibilitou a volta de mais de 2 mil exilados para o Brasil. Ao mesmo tempo, concedeu perdão a torturadores e assassinos a mando do Estado.

Sancionada pelo último ditador do período, João Figueiredo, a lei anistiou autores de crimes políticos e conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a lei é válida também para agentes estatais, por ter sido fruto de um consenso no período de redemocratização do país.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), elaborado em 2014, pediu a revisão da Lei da Anistia. O documento lista 377 pessoas como responsáveis por assassinatos e torturas, 210 desaparecidos e 191 mortos no período.

Também em 2014 foi protocolada no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 320, proposta pelo PSOL, que pede reconhecimento da Corte de que a Lei de Anistia não aplica regras e princípios de direito internacional que estabelecem que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistia conferida pelo próprio Estado ofensor.

Em abril deste ano, o ministro Dias Toffoli sinalizou realizar audiências públicas sobre a ADPF 320 ainda no segundo semestre deste ano, após se reunir com integrantes do Instituto Vladimir Herzog. Entretanto, até o momento, não há sinais da Corte de "desengavetar" a ação.

Para o professor de teoria da história da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Iuri Cavlak, já não há tempo hábil para prender e condenar agentes diretos e fazê-los pagar pelos crimes cometidos. Em entrevista à Sputnik Brasil, o historiador opinou que nem Congresso nem STF têm interesse ou força para tal reversão:

"Temos um Congresso que a cada quatro anos tem se tornado mais e mais conservador, e um STF assoberbado por demandas de todas as partes […]. Mexer nos problemas centrais da lei, acho difícil. A não ser em itens que não afetem diretamente privilégios estabelecidos […]. O problema é o de sempre, a correlação política, atualmente bastante favorável para os que perpetraram crimes na última ditadura", acrescentou Cavlak.

Ele ponderou, no entanto, que nunca é tarde para condenações póstumas, reconhecimentos ou indenizações.

Já a historiadora e professora Roberta Baltar disse à Sputnik Brasil que, apesar do contexto político para uma revisão da Lei de Anistia no Congresso ser complexo, o STF pode desempenhar um papel relevante nesse sentido:

"A lei, em sua interpretação atual, impede a punição de agentes de Estado por crimes contra a humanidade, o que contraria o direito internacional e impede a completa reparação das vítimas e seus familiares […]. O STF, ao julgar a ADPF 320, pode declarar a inconstitucionalidade da interpretação que impede a punição de agentes de Estado por crimes contra a humanidade, abrindo caminho para a responsabilização desses agentes."

Assim como Cavlak, ela também argumentou que a busca por justiça e a revisão da Lei de Anistia não tem prazo: "Enquanto houver vítimas e familiares buscando reparação e a sociedade demandando a responsabilização dos agentes de Estado, a oportunidade de revisão da lei existirá", frisou Baltar.

O Brasil ratificou uma série de marcos legais que determinam que crimes de tortura e desaparecimento de presos e opositores políticos, praticados por agentes do Estado, devem ser investigados e os agentes punidos, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Estatuto de Roma, a Convenção de Genebra de 1949, entre outros.

•        Reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

Instituída pela Lei nº 9.140/1995, a comissão foi criada para reconhecer pessoas desaparecidas que tenham participado ou foram acusadas de participar de atividades políticas no período entre 1961 e 1988. Fruto de uma demanda da sociedade civil, o colegiado será reinstalado nesta sexta-feira (30), após ter sido encerrado pelo governo anterior, de Jair Bolsonaro.

O historiador destacou que a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos pode contribuir para que lacunas deixadas pela lei sejam sanadas:

"Ainda se descobre Brasil afora covas onde jazem os restos mortais de desaparecidos. Pode ajudar na aceleração da identificação e no encontro de novos sítios. Isso é importantíssimo para as famílias que ainda procuram o paradeiro de seus entes", ressaltou Cavlak.

A falta de punição de torturadores e criminosos da ditadura contribui para movimentos golpistas do presente e a popularidade de políticos com discursos fascistas, defendeu o especialista:

"Isso se mostrou, inclusive, em relação ao golpe de 1964. Tivemos uma ditadura entre 1937 e 1945, com torturas de presos políticos nas cadeias do Estado, sem punição a quem quer que seja. Deu no que deu", opinou Cavlak, em alusão aos planos de golpe discutidos por integrantes do Exército e do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2022 e ao ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023.

A punição de agentes de Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade tem caráter educativo e de promoção da cidadania, defenderam os entrevistados, ao não naturalizar e deixar impune essas violações de direitos humanos e violência.

 

•        Lei da Anistia, história intensa e memória curta

No dia 28 de agosto de 1979, o general João Baptista Figueiredo, último “presidente” da ditadura civil-militar divulgou no DOU / Diário Oficial da União, a Lei nº 6.683, que trata de anistia.

Já em seu Artigo 1º, a lei conhecida como Lei de Anistia enunciava de maneira direta: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.

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A Lei de Anistia foi fruto de uma longa luta dos mais diversos setores da sociedade brasileira contra o golpe civil-militar de 1964 e foi a primeira grande vitória das forças de oposição que conseguirão por fim ao longo período ditatorial, com a promulgação, em 5 de outubro de 1988, da nova Constituição Federal.

O Golpe Militar de primeiro de abril de 1964 encontrou, desde o início, resistência de grupos políticos e movimentos sociais que reivindicavam o retorno ao Estado de uma ordem democrática. A repressão foi direta e dura sobre o movimento operário, que reagiu ao golpe com greves e manifestações. O governo militar também respondeu às manifestações, com cassações de mandatos parlamentares e de direitos políticos, com demissões arbitrárias de servidores públicos, de professores, com as prisões de militantes políticos e sindicais.

Outra importante frente de resistência contra a ditadura foi a dos estudantes, que nos primeiros meses de 1968 lutaram contra a ditadura e as reformas educacionais, que resultariam na degradação atual do ensino público brasileiro. O principal estopim da luta estudantil teve início em 28 de março de 1968 no Rio de Janeiro, com a invasão policial ao restaurante escolar do Calabouço, que resultou no assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto, morto pelo tenente-comandante do batalhão motorizado da PM, com um tiro de pistola no coração. No dia seguinte, apesar das ameaças dos ditadores, 50 mil pessoas protestaram no centro do Rio de Janeiro contra o assassinato do estudante de 16 anos.

No entanto, a resposta popular mais contundente veio em 26 de junho de 1968: 100 mil pessoas caminharam por mais de sete horas, em uma passeata de protesto que reuniu mães, padres, estudantes, artistas e intelectuais contra a repressão, a censura e outros atos ditatoriais. Os jornais disseram que o movimento não registrou nenhum incidente distúrbio. A enorme concentração começou na Cinelândia às dez e meia da manhã e terminou na praça 15 de Novembro.

Em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional n° 5, que representou brutal radicalização da política repressiva dos militares. A forte censura dos meios de comunicação e as ações de vigilância e repressão social se intensificaram com o AI-5, mas não impediram que militantes políticos, sindicais, artistas, jornalistas, religiosos, juristas e organizações civis pelos direitos humanos fizessem constantes denúncias contra os militares, acusando perseguições, prisões, torturas e desaparecimento de pessoas.

Em um Congresso Nacional dominado pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que era o braço político da ditadura, os deputados e senadores do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) empenharam uma longa, árdua e arriscada luta pedindo a redemocratização do país e a anistia política dos perseguidos e exilados. Muitos “medebistas” eram históricos militantes de partidos cassados pelo golpe, que se abrigaram no MDB até ocorrer nos anos 1980, o fim do bipartidarismo.

Outro núcleo de resistência que ocorreu com mais intensidade entre 1965 e 1973, veio das guerrilhas urbanas e rurais, movimentos de resistência com orientação socialista. Também foi fundamental a luta da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do proscrito movimento sindical, que travou no final dos anos 1970, intensa luta contra o modelo econômico e político dos governos militares.

A partir de 1975 ocorreram alguns eventos repressivos trágicos, que tiveram forte divulgação e mobilizaram a opinião pública nacional e internacional contra a ditadura brasileira. O mais emblemático foi o assassinato de Vladimir Herzog, diretor do Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975, durante uma brutal sessão de eletrochoques, no DOI-CODI da capital paulista.

O ato ecumênico na Catedral da Sé, realizado no sétimo dia da morte de Vladimir Herzog foi a primeira grande manifestação pública de protesto contra a ditadura militar desde o AI-5. O ato reuniu milhares de pessoas dentro e fora da igreja, mesmo com intensa vigilância dos agentes de repressão.

A publicação do Diário Oficial da União, que permitiu que tantos perseguidos pela Ditadura Militar pudessem sair da clandestinidade ou voltar do exílio, foi episódio decisivo para a redemocratização do Brasil, que ocorreria formalmente em 1985 com a derrota do candidato dos militares no Colégio eleitoral e depois a aprovação da Assembleia Nacional Constituinte e a elaboração da nova Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988.

Portanto, o dia 28 de agosto deveria ser um dia para ser relembrado em grandes reportagens, em matérias detalhadas, em depoimentos de personagens significativos da época; merecia até um pronunciamento em cadeia nacional. Deveria ser feriado, dia de celebração, de reflexão em escolas e instituições públicas.

No entanto, é motivo de manifestações isoladas de velhos militantes, de burocráticas notinhas de redação em veículos sem disposição para relembrar qualquer coisa cívica ou socialmente relevante. Enquanto isto, seguimos dizendo que as novas gerações não sabem de nada e não respeitam ninguém. Até agora, a vida me ensinou que os mais novos vão repetir de modo pior, os hábitos dos mais velhos e a cultura autoritária e alienada que eles receberam durante a criação.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Diálogos do Sul

 

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