terça-feira, 6 de agosto de 2024

Especialistas explicam: ‘O que faz o governo Maduro ser de extrema esquerda?’

Há 26 anos começava um novo regime na Venezuela. Em 6 de dezembro de 1998, o coronel Hugo Chávez ganhou as eleições presidenciais pela primeira vez, após protagonizar uma tentativa de golpe de Estado em 1992. Chávez desenvolveu um regime político que chamava de “socialismo do século XXI”, explicitando o viés esquerdista do seu autodenominado modelo de “bolivarianismo”.

Após comandar o país por 14 anos, Chávez morreu de câncer em 2013, quando passou o comando para seu então vice, Nicolás Maduro, que manteve as diretrizes da extrema esquerda em seus dois mandatos.

Felippe Ramos, PhD pela New School de Nova York e analista de risco político na FR Análise, destaca que chavismo constitui aspectos de uma esquerda radical: a reformulação completa da Constituição e a reforma do Estado venezuelano para desfazer o que eles chamavam de “Estado burguês”.

Antes de Chávez assumir o poder, havia um pacto em que dois partidos se revezavam no poder, no qual o liberalismo era o condutor das ações promovidas, lembra Stephanie Braun Clemente, pesquisadora de Política Externa na UERJ. A pesquisadora volta no tempo, até a Revolução Bolivariana, para explicar a base ideológica a qual Maduro busca dar continuidade.

“A Revolução Bolivariana pode ser descrita, resumidamente, da seguinte maneira: possuía a incumbência de libertar a Venezuela, seus cidadãos, assim como outros países do continente americano, da submissão ao imperialismo dos Estados Unidos”, pontua a especialista.

Frequentemente Maduro cita a expressão “imperialismo norte-americano” em discursos fervorosos voltados a apoiadores e em sintonia com pensamentos de setores antigos da esquerda e da extrema esquerda mundiais.

·        Extrema esquerda e a economia

Felippe Ramos explica que o principal aspecto de uma esquerda radical, ou extrema esquerda, no governo de Nicolás Maduro está relacionado sobretudo à economia. Entre os exemplos, estão a “total nacionalização da economia” e o “controle absoluto da política cambial”.

Ao relembrar que a Venezuela passou por crise econômica e teve forte diminuição do PIB em um período de sete anos, o especialista pondera que “as políticas de extrema esquerda na economia geraram essa crise econômica”.

“Então, a esquerda radical, um anti-imperialismo, um anti-americanismo, um conservadorismo moral e autoritarismo são as marcas principais políticas do chavismo madurista”, observou Ramos.

As políticas econômicas chavistas levaram o país a um cenário de hiperinflação, escassez de produtos básicos, um êxodo de milhões de migrantes e um alto grau de conflito social, com milhares de protestos contra o governo de Maduro, muitos dos quais foram reprimidos com violência.

·        A crise na Venezuela

Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper, pondera que os conceitos de direita e esquerda, nascidos na Revolução Francesa, estão gastos, havendo dificuldade no enquadramento de alguns governos nestes aspectos.

Porém, “o próprio regime Maduro, assim como seu antecessor, Hugo Chávez, proclamam ser de esquerda. Dentro dessa ideia à força que esse regime professa, ele está enquadrado na esquerda, e ao apelar para algo mais extremo do ponto de vista das suas próprias instituições, da sua própria maneira de implementar esse regime, aí a gente pode apelar para uma ideia de uma extrema esquerda”, diz Consentino.

Stephanie Braun Clemente, por sua vez, comenta: “Pensando em uma definição geral do conceito de extrema esquerda, ou seja, que se pauta pela defesa da extinção das desigualdades sociais, que seriam geradas pelo sistema capitalista, por serem negativas para a população, a Venezuela comandada por Nicolás Maduro pode, sim, ser caracterizada assim”.

·        Autoritarismo

Outro ponto comum ressaltado pelos especialistas ouvidos pela CNN é o autoritarismo do governo de Nicolás Maduro.

Felippe Ramos afirma que, na ciência política, este tópico se refere à concentração de poder.

“Hoje, apesar da Constituição venezuelana indicar a existência de cinco Poderes — aqui no Brasil são três —, esses cinco Poderes se remetem à Presidência da República. Uma submissão aos ditames do chefe de Estado. Portanto, a gente considera isso um regime autoritário”, comenta.

Esse seria ainda um ponto de diferenciação com o chavismo.

Segundo Stephanie Braun Clemente, “Maduro acaba por tomar atitudes autoritárias, que visam a manutenção da Revolução Bolivariana no poder”.

“Hoje, estamos vivenciando uma crise do projeto político-ideológico bolivariano, que confere a originalidade e especificidade da extrema-esquerda venezuelana”, adiciona.

Na última quarta-feira, a Human Rights Watch (HRW) disse nesta quarta-feira (31) que recebeu “relatos credíveis” de 20 mortes relacionadas a protestos na Venezuela sobre os resultados das eleições presidenciais. Na conta de outras ONGs, há relatos de mais de 300 presos políticos no país antes mesmo destas eleições.

Regiane Bressan, professora de Relações Internacionais da Unifesp, afirma que a política externa da Venezuela também foi “contaminada” com o autoritarismo, com uma política de fácil ruptura com a comunidade internacional.

A especialista diz ainda que não divulgar as atas eleitorais é um indício de que o governo Maduro “já rompeu com a democracia”.

Leandro Consentino também ressalta que alguns especialistas têm estudado e abordado a ideia de governos nacionalistas, que estariam comprometidos com “esse ideal nacionalista autoritário e governos mais pautados numa democracia liberal”.

Para Felippe Ramos, o nível de autoritarismo e a possível fraude na eleição presidencial fazem o governo venezuelano “deixar de ser um mero populismo radical, um autoritarismo competitivo”, no qual as eleições não são livres e justas, mas há possibilidade de a oposição vencer cargos, para um regime fechado — de extrema esquerda.

¨      Maduro faz “salada ideológica” ao expulsar embaixadores, diz especialista

O professor de Relações Internacionais da ESPM, Leonardo Trevisan, afirmou que o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, causou uma “autêntica salada ideológica” na América Latina ao expulsar embaixadores de sete países – Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai.

De acordo com Trevisan, a ação de Maduro atingiu um espectro variado de governos e evidencia as complexas dinâmicas diplomáticas na região.

“Ele expulsou tanto países que estavam mais à direita, quanto aqueles que se encaixam mais à esquerda. Maduro também baniu a Costa Rica, que é um país absolutamente estável, que podemos enquadrar como social democrático, e expulsou o Chile, que consiste em um socialismo democrático”, explicou o especialista.

<><> Mensagem clara de Maduro

Apesar da aparente incoerência ideológica nas expulsões, o professor ressalta que o objetivo de Nicolás Maduro é justamente enviar uma mensagem inequívoca: “Não se metam com a Venezuela”. A medida demonstra a postura defensiva do governo venezuelano em relação a interferências externas.

A decisão de Maduro tem potencial para causar mudanças nas relações diplomáticas dentro da América Latina. Trevisan destaca que a questão venezuelana está provocando “cisões” e “mudanças relevantes” no cenário político regional, o que pode ter implicações de longo prazo para a estabilidade e cooperação entre os países do continente.

Para o professor, o episódio ressalta a complexidade das relações internacionais na América Latina e o papel central que a Venezuela continua a desempenhar nos debates sobre democracia, soberania e cooperação regional.

 

¨      Venezuela sem autoritarismo. Por Carol Proner

A imprensa hegemônica no Brasil está em surto desde que ocorreram as eleições na Venezuela. Diante do impasse na divulgação das atas, tudo o que importa é que o ditador seja extirpado do poder para que os brasileiros possam viver em paz. Dadas as circunstâncias, o desfecho venezuelano também é o principal assunto nos círculos da esquerda, com opiniões de todas as cores.

Coloridas também foram, e ainda são, as estratégias para desequilibrar governos em diversos lugares do mundo. As chamadas revoluções de cores, desenvolvidas no espaço pós-soviético sob pretexto de derrubar regimes autoritários, incluíam táticas não violentas de resistência, discurso democratizante, liberalizante e pró-ocidental. Foram consideradas bem-sucedidas na Iugoslávia, na Georgia, na Ucrânia, no Quirguistão, no Líbano, na Tunísia, no Egito, no Yemen e na Armênia. Outras várias tentativas foram frustradas, mas ajudaram a aprimorar os métodos de ingerência civil-militar externa suave por meio das tecnologias e da ciberguerra, combinando táticas jurídicas (lawfare), diplomáticas e campanhas midiáticas para instalar a desinformação e a desconfiança em processos eleitorais contra líderes e partidos considerados alvos. 

Sempre haverá quem argumente que são meras conjecturas da conspiração, mas deveríamos lembrar dos fatos ocorridos na Bolívia durante as eleições de 2019 e comparar com o que ocorre atualmente na Venezuela. Precedida de uma campanha extremante racista contra o povo andino, impulsionada por milhares de contas falsas no Twitter acusando Evo Morales de assassino, corrupto e narcotraficante, as eleições bolivianas de 10 de novembro de 2019, vencidas pelo partido MAS (Movimento ao Socialismo), foram repudiadas pela oposição com acusações de fraude na contagem dos votos. No mesmo dia da apuração, diante de resultados ainda provisórios anunciados pelo Tribunal Supremo Eleitoral, que indicava a vitória de Evo Morales com mais de 10 pontos de diferença, a Organização dos Estados Americanos e a União Europeia precipitaram-se em questionar a regularidade do pleito, posicionamento que serviu de combustível para a onda de violência e terror que obrigou o candidato vencedor a sair do país para evitar ser assassinado. Como resultado da grave ingerência externa em nome da democracia, instalou-se o governo interino de Janine Añez que, durante um ano, facilitou contratos de privatização e rapinagem das riquezas bolivianas.

Assim como na Bolívia, nas últimas décadas ocorreram diversos outros casos que ilustram fatores de desestabilização programática no México, na Argentina, no Equador, na Colômbia, no Peru, na Guatemala e mesmo na Venezuela, muitos que inclusive estão em curso, mas não precisamos ir a outros países para entender como ocorrem os tais “golpes não tradicionais” que, aliados às elites entreguistas em cada caso, provocam a tempestade perfeita. Basta olhar para o Brasil a partir de 2013 ou mesmo antes. Ainda que fatores de ingerência internacional não apareçam como tão evidentes, a interferência estrangeira sempre esteve nas entranhas programáticas da desestabilização brasileira, seja na cooperação e treinamento militar, judicial e diplomático, nas manifestações de rua desejando a volta dos militares contra um governo civil de esquerda, ou no uso ensaiado do verde-e-amarelo em carros de som financiados por novos partidos, e em tudo o que se seguiu: impeachment sem lastro no direito, governo Temer “trocando o regime”, desestatizando e reformando o conteúdo social da Constituição, prisão do “Lula-ladrão” e eleição de Jair Bolsonaro, tudo em meio a uma campanha de desinformação, fakenews, ciberataques e do uso indevido do direito (lawfare) para acusar, processar e prender líderes, desestruturar empresas, eliminar empregos e atacar a soberania política e institucional do país. 

Tanto na Bolívia como no Brasil, ocorreram processos de desestabilização e troca de regimes que agora aparecem – mais uma vez – como tentativa na Venezuela. Mesmo completamente diferentes entre si, algumas táticas são equivalentes, assim como coincidem alguns personagens. É o caso de Elon Musk, neoconquistador do lítio na Bolívia, desafiante das leis brasileiras e agora inimigo de Nicolás Maduro, em todos os casos atuando muito sinceramente contra governos de esquerda. Os traços comuns nos três casos, e em outros atualmente em curso na América Latina, também incluem centros de estratégia e pensamento (think tanks) como o Atlantic Council, o Atlas Network, a Oper Society Fondations, a National Endowment for Democracy, a Usaid e a OEA de Luís Almagro, para além dos tradicionais órgãos de ingerência do imperialismo estadunidense.

Tudo isso está no contexto das atuais eleições da Venezuela, para além das platitudes repetidas à exaustão pela grande imprensa. Em mais de 25 anos de poder desde que o MVR foi fundado (Movimento 5ª República, fundado em 1997 por Hugo Chávez), a população foi chamada à consulta popular em mais de 30 oportunidades. Nas eleições de 2013 o roteiro da crise foi parecido com o atual: a oposição recursou-se a aceitar os resultados e, mesmo tendo sido negado o recurso diante do órgão eleitoral, incitou protestos que duraram 3 meses com um saldo de mais de 40 mortos, além de centenas de feridos, durante as chamadas “guarimbas”, espécie de barricadas urbanas formadas para protestar contra o governo. 

Assim como diversos países, também a Venezuela enfrenta problemas importantes em matéria de direitos humanos, e não são poucas as denúncias de violação de direitos em tribunais internacionais. Mas a situação de crise, extremamente agravada pelos embargos econômicos interpostos pelos Estados Unidos, é um problema que deve ser resolvido no âmbito interno de um país soberano. Aliás, neste caso sim, a Comunidade Internacional deveria reagir para coibir as ilegais sanções coercitivas unilaterais, mais de 150 sanções que, em última instância, sacrificam a vida do povo e o desenvolvimento do país.   

Confiando na sabedoria dos diplomatas encarregados em orientar a posição brasileira diante do impasse, bem como na experiência do Presidente Lula, um dos principais atingidos no processo de desestabilização à brasileira, seguramente o Brasil respeitará a institucionalidade na definição dos resultados eleitorais do país vizinho. O Brasil respeitará o princípio da presunção de regularidade dos atos eleitorais e a soberania política tão logo sejam anunciados, pelo Poder Eleitoral da Venezuela, os resultados definitivamente considerados.

Certamente esta será igualmente a posição da Colômbia e do México, lembrando que os três países emitiram comunicado conjunto, informando estarem atentos ao pleito e reiterando o chamado para que as autoridades eleitorais da Venezuela avancem na exposição da regularidade das eleições pela via institucional e verificação imparcial. 

Essa é a única posição respeitosa à soberania nacional e ao princípio de não interferência em assuntos internos por parte de terceiros países. Essa é a única posição decente por parte de juristas sabedores do direito público e eleitoral soberano de um Estado, seja qual for. E este é o ponto de partida para que os órgãos de imprensa façam a cobertura de modo isento e imparcial e, como tal, justo. No mais, seria puro autoritarismo. 

 

Fonte: CNN Brasil/Brasil 247

 

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