sábado, 31 de agosto de 2024

Eberval Gadelha Figueiredo Jr.: “Elon Musk, neofilibusteiro’

Nos últimos anos, com o aumento da importância econômica relativa das cidades de médio porte no Brasil, muito tem se falado sobre o fenômeno do Novo Cangaço, tipo de assalto no qual uma quadrilha, como faziam os cangaceiros de antanho, assume o controle de pequenas e médias cidades com o intuito de saqueá-las. O cangaço, no entanto, não é a única modalidade de espoliação que voltou à moda. Acontecimentos recentes apontam também para um renascimento muito mais grave da filibustaria, e o nome do neofilibusteiro-mor é Elon Musk.

O termo “filibusteiro” e seu cognato inglês, filibuster, tem suas origens no espanhol filibustero, que vem, por sua vez, do holandês vrijbuiter, com o significado de pirata, corsário ou, simplesmente, ladrão. Apesar disso, é possível afirmar, sob grave risco de incorrer em lisonja desmerecida a figuras do naipe de Elon Mosca (sic), que o protótipo histórico dos filibusteiros do século XIX não foram os piratas e corsários ingleses do séculos XVI e XVII, mas sim figuras como Júlio César e Hernán Cortés, conquistadores cujas respectivas ações na Gália e no México foram recebidas em suas épocas de forma ambivalente pelo Senado de Roma, no caso de César, e pela Coroa Espanhola, então encabeçada pela Casa D’Áustria, na figura do sacro-imperador Carlos V, no caso de Cortés.

De forma semelhante a César e Cortés, e diferente dos corsários e piratas ingleses do início da Idade Moderna (para os quais o termo espanhol filibustero foi inicialmente concebido), os filibusteiros do século XX e seus descendentes do século XXI possuem ambições muito maiores, e relações muito mais ambivalentes com os poderes oficiais do Estado. É importante ressaltar que conquista e pilhagem por si sós não configuram um filibusteiro, de modo que chefes de estado como Marco Aurélio e Filipe II jamais poderiam ser classificados como tal, nem mesmo com a liberdade do anacronismo.

Stricto sensu, o exemplo mais infame foi o americano William Walker, sujeito de corpo esquálido e rosto pré-pubescente que fez várias tentativas de estabelecer, com o auxílio de milícias privadas, uma colônia particular na região da América Central. Assim, é notável a precisão do nome do inquérito das milícias digitais, no qual Elon Musk passou a ser investigado, visto que os filibusteiros históricos nada mais eram do que milicianos.

Muitos são aqueles que criticam a romantização do passado, mas poucos deles pensam que podem estar errados, e que a história humana, de fato, perde gravitas conforme avança, ficando cada vez mais ridícula e escrachada. Cortés não era César, mas ele e seus semelhantes, como Pizarro e Alvarado, não deixam de ser figuras um tanto mais respeitáveis, por assim dizer, do que William Walker.

O que temos hoje em dia é uma espécie de café coado de quarta categoria. Nossos neofilibusteiros não têm carisma. São corpocratas sem rosto preocupados em assegurar o fluxo contínuo das commodities, engravatados pretensamente magnânimos que movem ações caríssimas financiadas por fundos de investimento obscuros, ou pior, bilionários espiritualmente desempregados com tempo e dinheiro demais nas mãos, que passam seus dias copiando e colando frases prontas sob as postagens de usuários em suas próprias redes sociais (se um dia a automação e o desemprego estrutural chegarem a eles, nada de valor será perdido).

Com cinco décadas de vida nas costas, compartilham memes que sequer compreendem, na vã tentativa de apelar para as sensibilidades estéticas das gerações mais novas. Pelo menos o figurino de Hernán Cortés era estiloso.

Com o passar do tempo, essas figuras também se tornaram cada vez mais apologéticas. Ao conquistar a Gália antes de tornar-se ditador de Roma, Júlio César tratou o empreendimento, de certa forma, como um fim em si mesmo (afinal, a conquista era o telos aristotélico romano), mas também como forma de sanar seus próprios problemas financeiros.

Não havia grande preocupação em forjar um discurso legitimador que escapasse de uma realpolitik quanto à segurança das fronteiras romanas. Em sua conquista do México, Hernán Cortés agia, supostamente, em nome da Coroa Espanhola, mas é amplamente sabido que suas ambições privadas de fama e fortuna colocaram-no várias vezes em oposição às ordens régias (ao contrário do que dizem os hispanistas de hoje, embriagados que estão por um imaginário neoconservador moralizante e completamente anacrônico, a preocupação humanitária com os sacrifícios humanos era no máximo um mero detalhe).

William Walker legitimava seus empreendimentos com os devaneios febris de um Destino Manifesto, muito em voga na época. Hoje, Elon Musk esperneia contra decisões judiciais brasileiras fazendo uso da retórica de defesa da “liberdade de expressão”, apresentando-se como amigo e libertador das massas brasileiras que julga serem oprimidas pela folclórica “ditadura do judiciário”.

O fato é que vivemos em tempos muito apologéticos. Toda e qualquer ação imperialista hoje em dia exige aquilo que os israelenses chamam de hasbará, “explicação”, ou seja, é preciso fazer besteira primeiro e explicar-se depois, não necessariamente nessa ordem. Isso ocorre porque os poderes constituídos do atual status quo se enxergam sempre como bons moços. Seus eventuais conflitos têm sempre um teor paternalista, pedagógico e/ou humanitário.

Todos sabem, por exemplo, que a invasão dos EUA ao Afeganistão foi feita com o único e exclusivo intuito de assegurar os direitos das pobres meninas e mulheres afegãs. Se por vezes essas meninas e mulheres são atingidas pelas balas, pelas bombas, ou mesmo pelos avanços sexuais indesejados dessas forças de intervenção militar beneficente, é apenas um fruto infeliz do acaso. Quaisquer inimizades schmittianas que o Ocidente venha a ter são prontamente disfarçadas pelo véu popperiano do “Paradoxo da Intolerância”: não se pode tolerar o intolerante. Mas é claro, o intolerante é sempre o outro.

Apesar de suas bravatas, nem mesmo figuras erráticas como Elon Musk fogem desse padrão, devendo sempre deixar encobertos quaisquer interesses particulares escusos. Por isso mesmo, em seu discurso, a desobediência às ordens do judiciário brasileiro não é movida por desdém e ganância, mas por coragem e compaixão. Neofilibusteiros adoram apresentar-se como salvadores de pátrias que sequer são suas. Assim, VMusk não declara o povo brasileiro como seu inimigo, mas o gesto não deve ser recíproco. Contra certos inimigos, o caminho para a vitória não passa pela conciliação.

O final de William Walker foi bastante trágico. Ou não. Depende do ponto de vista. Após uma última tentativa fracassada de conquistar a América Central, William Walker foi capturado e fuzilado pela marinha britânica em Honduras. Anos antes, havia sido derrotado pelas forças do general hondurenho Florencio Xatruch, jurista de formação, um sujeito de cabelo e barba cheios e vistosos.

Elon Musk deveria aprender com o exemplo de William Walker. Assim como Deleuze imagina “um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo modo que uma Gioconda bigoduda”, não é difícil imaginar um novo Xatruch, brasileiro, literalmente sem barba e cabelo, pelo qual Elon Musk vem sendo derrotado.

 

•        5 perguntas para entender embate entre Elon Musk e Alexandre de Moraes

A rede social X emitiu nesta quinta-feira (29/08) um comunicado sobre a possibilidade de ser bloqueada no Brasil.

A expectativa, que gerou grande repercussão entre muitos dos mais de 22 milhões de brasileiros na rede, surge após a plataforma declarar que não cumprirá as determinações emitidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na quarta-feira (28/08), o ministro emitiu uma intimação direcionada ao bilionário Elon Musk, proprietário da X (anteriormente conhecida como Twitter), exigindo que fosse designado um representante legal no Brasil dentro de 24 horas.

O descumprimento dessa ordem, de acordo com a notificação, poderia resultar na suspensão da rede social no país.

“Nos próximos dias, publicaremos todas as exigências ilegais do Ministro e todos os documentos judiciais relacionados, para fins de transparência. Ao contrário de outras plataformas de mídia social e tecnologia, não cumpriremos ordens ilegais em segredo”, escreveu a conta de relações internacionais da plataforma.

Este é o capítulo mais recente de um embate entre o empresário sul-africano-canadense e o ministro brasileiro. Abaixo, relembramos os episódios que culminaram na possibilidade da suspensão do X no Brasil.

•        1. Como embate entre Moraes e Musk começou?

Em 8 de janeiro de 2023, uma multidão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, insatisfeitos com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, invadiu o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, e vandalizou símbolos da República.

Após esse episódio, o STF intensificou as investigações sobre a disseminação de conteúdos falsos e o possível financiamento de grupos que ameaçam a democracia brasileira.

O ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos que apuram a disseminação de fake news, milícias digitais e atos golpistas, ordenou o bloqueio de diversos perfis em redes sociais administrados por usuários acusados de atentar contra a democracia brasileira e o processo eleitoral.

As ordens emitidas pelo ministro geraram repercussão negativa entre parte dos apoiadores de Bolsonaro e eleitores da ala direitista da política brasileira, que alegavam que as medidas violavam o direito à liberdade de expressão.

Enquanto isso, Moraes contou com o apoio dos demais ministros do STF, que ressaltaram que a liberdade de expressão não deve ser confundida com a permissão para desrespeitar leis ou promover ideais antidemocráticos.

Como proprietário da rede social X, Elon Musk concordou com os apoiadores de Bolsonaro e acusou o ministro brasileiro de censura. A plataforma não retirou do ar os perfis, descumprindo as decisões do STF.

•        2. Por que Elon Musk fechou escritório do X no Brasil?

Em 15 de agosto, Alexandre de Moraes aumentou de R$ 50 mil para R$ 200 mil a multa diária aplicada ao X por descumprir suas decisões. O ministro havia determinado que a rede social bloqueasse o perfil do senador Marcos do Val (PL-ES) e de outros investigados.

Do Val é investigado por obstruir investigações sobre as invasões de 8 de janeiro ao Supremo e Congresso Nacional.

Pouco depois, em 17 de agosto, a rede social anunciou, por meio de uma publicação na própria plataforma, o fechamento de seu escritório no Brasil, alegando ameaças de prisão contra a responsável pela rede no país, Rachel de Oliveira Villa Nova Conceição, por não cumprimento de decisões judiciais. Mesmo com o encerramento das atividades administrativas, a rede social continuaria funcionando normalmente.

Em suposto despacho divulgado pelo X, Moraes teria afirmado que a representante da empresa no Brasil agiu de má-fé, tentando evitar a notificação da decisão proferida nos autos, conforme noticiado pela Agência Brasil.

Sem a localização de representantes da empresa, o ministro Moraes teria supostamente determinado a prisão da representante legal por desobediência à determinação judicial e aplicado multa diária contra a funcionária, ainda segundo o documento divulgado pelo X.

A veracidade do despacho não foi confirmada pelo STF. Procurada pela Agência Brasil, a assessoria de imprensa do Supremo informou que a Corte não vai se manifestar sobre o tema.

"Como resultado, para proteger a segurança de nossa equipe, tomamos a decisão de encerrar nossas operações no Brasil, com efeito imediato. O serviço X continua disponível para a população do Brasil. Estamos profundamente tristes por termos sido forçados a tomar essa decisão. A responsabilidade é exclusivamente de Alexandre de Moraes", disse o comunicado da rede social.

•        3. Por que Alexande de Moraes ameaçou bloquear o X?

Em resposta, Moraes determinou no dia 29 de agosto que o X nomeasse em 24 horas um novo representante legal no Brasil, conforme exigido pela legislação local.

A intimação foi feita por uma postagem no perfil oficial do Tribunal na própria rede social.

O ministro advertiu que, se a empresa não o fizesse, ele poderia determinar que a rede social fosse imediatamente tirada do ar.

Em site oficial, o STF afirma que ''Musk é investigado no Inquérito (INQ) 4957, que apura a suposta prática dos delitos de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime.''

Como forma de 'cobrar multas' aplicadas contra a rede social X por descumprir decisão judicial, Alexandre de Moraes também decidiu bloquear as contas da empresa Starlink, de Elon Musk, no Brasil.

"Essa ordem é baseada em uma determinação infundada de que a Starlink deve ser responsável pelas multas aplicadas —de forma inconstitucional— contra o X", divulgou a empresa. O STF disse "não ter essa informação".

•        4. Como Elon Musk reagiu?

Elon Musk reagiu à determinação com uma série de posts sobre Alexandre de Moraes na rede social. Entre as publicações, estão memes que comparam o ministro ao vilão Voldemort, dos filmes da série Harry Potter, e outros ataques diretos, como o que diz que Moraes é uma 'vergonha para as togas de juízes'.

Não é a primeira vez que Musk faz postagens citando diretamente o magistrado. Em abril deste ano, o empresário utilizou o próprio perfil no X para atacar Moraes e ameaçar não mais cumprir suas ordens judiciais.

"Por que você está exigindo tanta censura no Brasil?", perguntou a Musk a Moraes.

Horas depois, Musk ameaçou reativar contas no X anteriormente bloqueadas após decisões judiciais.

•        5. Como X pode ser bloqueado?

Na quinta (29/08), o X postou uma mensagem na plataforma sugerindo que não cumpriria a determinação de Moraes de indicar um representante legal para a empresa no Brasil.

"Em breve, esperamos que o Ministro Alexandre de Moraes ordene o bloqueio do X no Brasil – simplesmente porque não cumprimos suas ordens ilegais para censurar seus opositores políticos. Dentre esses opositores estão um Senador devidamente eleito e uma jovem de 16 anos, entre outros", diz o comunicado da rede social.

O processo de bloqueio no Brasil, como em casos anteriores, começa com a Anatel, que recebe uma ordem judicial do STF e a repassa às operadoras de telecomunicações.

A Anatel comunica a necessidade de cumprimento da ordem e acompanha a implementação.

O bloqueio geralmente ocorre via endereços IP, impedindo o acesso ao site. Em alguns casos, pode ser necessário reconfigurar rotas de tráfego para evitar o acesso por IPs não bloqueados.

O uso ainda poderia acontecer via VPN, já que bloqueá-las completamente seria um desafio, já que existem muitos provedores e tecnologias distintas, conforme explica o professor de Engenharia de Computação e Ciências da Computação no Insper, Rodolfo Avelino, em entrevista recente à BBC News Brasil.

No passado, decisões judiciais já barraram também o uso de VPN. Em maio de 2023, Alexandre de Moraes publicou um despacho em que ameaçava retirar o Telegram do ar por causa de uma mensagem enviada aos usuários contra o projeto de lei que ficou conhecido como PL das Fake News.

O bloqueio nunca aconteceu de fato, mas no documento o ministro do STF proibiu o uso de VPN para acessar o aplicativo caso isso acontecesse.

Entre os países que bloqueiam o acesso ao X atualmente estão China, Irã, Coreia do Norte, Rússia, Turcomenistão e Mianmar. O nível de controle à conexão à rede social varia de acordo com a nação.

 

Fonte: A Terra é Redonda/BBC News Brasil

 

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