quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Desvendando os mistérios do cérebro — com a ajuda da extraordinária biologia da lula

“Vai ter lula no jantar!”, grita o pescador Matt Rissell, enquanto se inclina sobre a amurada do barco Skipjack para verificar sua linha de pesca. Após navegar pela costa de Cape Cod, no estado de Massachusetts, durante uma manhã salgada de abril, as primeiras lulas da temporada começam a aparecer.

Rissell puxa o anzol e um macho da espécie Doryteuthis pealeii (embora todos no barco o chamem por um nome mais antigo, Loligo), com cerca de 30 centímetros de comprimento, emerge das ondas jorrando água e balançando os dois tentáculos e oito braços cobertos por ventosas. A pele iridescente de seu manto — o “tubo” — é possui tons de rosa, azul-petróleo e dourado, mas quando Rissell tira a lula da água, ela rapidamente assume um tom castanho-avermelhado.

Outros barcos também participam da caça às lulas. Mastros se curvam sobre a pequena frota de carretéis e varas reunidos nas águas rasas, onde as lulas desovam durante a primavera do Hemisfério Norte. Elas passam o resto do ano nadando em profundos desfiladeiros subaquáticos, capturando peixes, crustáceos e até mesmo outras lulas menores. Mais adiante, traineiras comerciais arrastam longas redes que capturam milhares de toneladas de lulas a cada ano, a maioria delas destinadas à culinária.

No entanto, a lula capturada pelo barco Skipjack tem um propósito de estudo cerebral. Ela seguirá alguns quilômetros na direção oeste, até o Laboratório Biológico Marinho de Woods Hole onde, durante quase um século, as lulas desempenham um papel fundamental em pesquisas neurocientíficas. Esses animais ajudaram cientistas a esclarecer muitos fenômenos, desde o básico da sinalização celular até a evolução de cérebros complexos. O estudo da biologia singular da lula pode até mesmo resultar em terapias aprimoradas para distúrbios neurológicos e genéticos em humanos.

No ano passado, essa pesquisa deu um grande passo quando um grupo de cientistas do laboratório utilizou a ferramenta de edição de genes CRISPR-Cas9 para desativar com êxito, ou “nocautear”, um gene em uma lula da espécie Doryteuthis — primeira experiência desse tipo em um membro do talentoso grupo de moluscos conhecidos como cefalópodes. O trabalho possibilita que os cientistas investiguem a genética por trás das habilidades quase extraterrestres dos cefalópodes: desde a mudança de cor das células da pele das lulas, passando pelo comportamento de acasalamento enganoso dos chocos, até a capacidade de memória e aprendizagem dos polvos.

“Como eles descobriram maneiras diferentes de desenvolver esses comportamentos complexos?” questiona o biólogo molecular Josh Rosenthal enquanto puxa uma lula até o Skipjack, tira do anzol e a coloca em um tanque com água, onde ela desaparece em meio a uma mancha de tinta preta. “Basicamente, esses animais lembram mais um molusco que um vertebrado.”

Porém, foi outra característica das lulas que as tornaram famosas entre os neurocientistas. Enquanto o Skipjack retorna com pelo menos 70 lulas no tanque, Rosenthal, líder da pesquisa que utilizou o CRISPR no Laboratório Biológico Marinho, grita para se sobressair ao som do motor: “foram as células nervosas gigantes!”.

•        Grandes axônios de lula

Poucas horas depois, quando Pablo Miranda Fernandez, neurocientista dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, leva uma das lulas capturadas no Skipjack até a sala de dissecação e decepa sua cabeça sem cerimônias, entendo o que Rosenthal quis dizer. Ele se dirige imediatamente até uma mesa coberta com água fria do mar, abre o corpo translúcido da lula e, com cautela, remove as vísceras com uma pinça de metal. Ele retira a casca interna e dura da lula, também chamada de “caneta”, para expor um par de fibras nervosas chamadas axônios, que se estendem da extremidade decepada da lula até seu manto musculoso.

 “Muito bom”, ele comenta ao medir a largura da fibra, que mede cerca de um quarto da espessura de um espaguete cozido. Com as extremidades atadas, Fernandez coloca o axônio em um recipiente contendo água sem cálcio, de maneira a não interferir nos íons internos e permitir que o nervo seja disparado. Centenas de vezes maior do que o maior axônio do corpo humano, sua circunferência permite que os impulsos elétricos entrem rapidamente no manto, dando à lula uma grande habilidade de escapar do perigo. 

Após a descoberta das fibras gigantes em 1936 (no início, os cientistas pensaram que eram vasos sanguíneos), pesquisadores começaram a utilizá-las em experimentos sobre os mecanismos químico e elétrico do sistema nervoso e do cérebro. O axônio da lula era tão grande que cientistas posicionavam eletrodos e os acionavam para medir as mudanças na voltagem; também era possível colher o líquido viscoso de dentro do axônio para analisar sua composição.

Leonid Moroz, neurocientista da Universidade da Flórida, chama o axônio gigante da lula de “presente da natureza para a neurociência”.

Os estudos dos nervos da lula resultaram em centenas de artigos científicos e dois prêmios Nobel. O primeiro prêmio foi concedido em 1963 após cientistas revelarem como os nervos transmitem impulsos elétricos para se comunicar com outras células por meio de uma cadeia de reações bioquímicas. Esse processo, denominado potencial de ação, é um mecanismo essencial em todos os organismos que possuem sistema nervoso. O segundo prêmio Nobel com relação ao estudo das lulas foi concedido em 1970 pela elucidação do papel dos neurotransmissores, como a adrenalina, na sinalização celular.

Atualmente, ferramentas de precisão que conseguem medir e manipular fibras nervosas menores tornaram o axônio gigante da lula menos essencial para pesquisas, mas o animal “ainda possui muitos mistérios e detalhes científicos que precisamos descobrir”, afirma Fernandez.

Nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, por exemplo, Fernandez trabalha com uma equipe que estuda a possibilidade de certas proteínas serem produzidas dentro do axônio da lula, que se estende a partir de um corpo celular, em vez de transportadas até o axônio a partir de um corpo celular. Fernandez comenta que a pesquisa pode resultar no aperfeiçoamento de tratamentos para células nervosas humanas danificadas, mas se antes não entendermos como o processo básico funciona em uma célula de lula, “não podemos ousar fazer isso em humanos”.

Genética ajustável

Rosenthal utilizará outros nervos de lulas capturadas pelo Skipjack para estudar a curiosa capacidade do animal de alterar a informação genética em moléculas de RNA dentro das células nervosas em taxas muito altas. Isso permitiria que a lula “ajustasse” a expressão dos genes em partes diferentes do corpo — mas ainda não se sabe ao certo, explica Rosenthal.

Uma melhor compreensão de como a edição de RNA funciona na lula pode resultar em tratamentos para humanos. Rosenthal é um dos fundadores de uma startup de biotecnologia que estuda as habilidades naturais de edição de RNA da lula para aplicá-las no combate a doenças do fígado, olhos e sistema nervoso central em humanos, corrigindo mutações prejudiciais sem ter que alterar permanentemente o DNA de uma pessoa.

Mas, para investigar esses e outros mistérios dos cefalópodes, é necessário que os cientistas consigam realizar pesquisas genéticas nesses animais. Para isso, há três requisitos fundamentais: acesso ao código genético completo de um organismo, a capacidade de manipular esse código e, por fim, criar o organismo em laboratório.

Durante décadas, isso foi possível com camundongos e outros organismos modelo clássicos, como moscas-das-frutas e vermes nematoides, permitindo inúmeros avanços para a biologia e a medicina. Porém, os cefalópodes — com seu tesouro de peculiaridades evolutivas — se mostraram menos receptivos à pesquisa genética (e não apenas por causa da notória habilidade dos polvos de escapar dos tanques).

As dificuldades encontradas pela equipe de Rosenthal ao editar apenas um gene de uma espécie de lula ilustram os desafios envolvidos.

•        Operando cefalópodes

O primeiro obstáculo foi o sequenciamento do genoma de um exemplar da espécie D. pealeii, ação necessária para a equipe saber onde fazer o corte, explica Carrie Albertin, neurobióloga do Laboratório Biológico Marinho, que liderou o trabalho de sequenciamento do genoma da lula. “Os genomas dos cefalópodes são grandes e complicados”, ela comenta.

O genoma humano consiste em cerca de 3,2 bilhões de letras ou bases, ao passo que o genoma da lula tem cerca de 4,5 bilhões de letras, das quais mais da metade é composta por sequências repetitivas. Sequenciar essas letras, explica Albertin, é como montar um enorme quebra-cabeça da imagem de um céu azul límpido. “Quando algo novo é desenvolvido”, ela complementa, “é necessário descobrir como superar os complexos desafios que a biologia impõe”.

Depois de um grande esforço para sequenciar e encaixar os bilhões de fragmentos de DNA de lula, a biologia pregou outra peça na equipe. Ao contrário de outras lulas, os ovos da espécie Doryteuthis têm uma camada externa espessa, com aspecto emborrachado, chamada córion, que dificulta a perfuração das frágeis agulhas utilizadas para injetar a ferramenta de edição molecular CRISPR-Cas9 no ovo. É como uma versão embrionária do jogo “Operando”: se a perfuração não for suficientemente profunda, o CRISPR-Cas9 não alcançará o alvo, mas se perfurar em excesso, o ovo não se desenvolverá.

“Durante anos eu falhei muito”, lamenta Karen Crawford, embriologista da Faculdade St. Mary's e membro da equipe de edição de lulas.

Após muitas tentativas e erros, possibilitados pelo fornecimento constante de ovos de lula capturados no Atlântico, Crawford encontrou uma maneira de utilizar microtesouras para fazer uma abertura no córion, grande o suficiente para a agulha passar, mas pequena o suficiente para se fechar após a introdução da agulha e manter o ovo intacto. “Virei especialista em furar ovos”, comenta Crawford.

Para a primeira inativação, a equipe escolheu o gene responsável pela pigmentação da lula. Ele foi selecionado porque seria fácil observar se a edição tinha funcionado. E funcionou. Em setembro de 2020, o grupo relatou na revista científica Current Biology que o gene foi interrompido em 90% das células da lula editada, representando um avanço fundamental para tornar a lula e outros cefalópodes passíveis de pesquisa genética. Enquanto as lulas normais possuem cromatóforos coloridos, as lulas inativadas eram transparentes como o vidro.

Rosenthal conta que, desde então, o grupo tem realizado experiências com a inativação de outros genes, como os dois genes que permitem a edição de RNA. Embora a função desse truque genético ainda não esteja clara, ele parece ser essencial para a lula: as larvas que não possuem genes de edição de RNA morrem logo após a eclosão.

Durante o meio deste ano, o grupo focou em adicionar, ou “introduzir” na lula um gene para produzir uma proteína que assume a cor verde fluorescente quando em contato com cálcio, substância que flui para o axônio quando um nervo dispara. Em conjunto com a inativação da pigmentação, isso permitiria que os pesquisadores observassem, em lulas transparentes, como os nervos se desenvolvem e começam a trabalhar.

•        Cultura de lula

Apesar dos avanços das pesquisas com a D. pealeii e sua carreira distinta como espécie a serviço da ciência, como organismo utilizado para pesquisa genética, as lulas têm uma séria desvantagem: não é fácil criá-las em laboratório. “Os exemplares adultos são muito grandes”, diz Crawford. “E gostam das águas profundas e frias do oceano.”

Exemplares selvagens da espécie Dorytheuthis podem ser mantidos em tanques após serem capturados, mas sobrevivem poucos dias. E, embora os ovos provenientes de lulas selvagens possam ser fertilizados em laboratório, os filhotes seguem uma dieta complexa e não é possível mantê-los vivos por tempo suficiente para que se reproduzam, fator necessário para cientistas criarem diferentes linhagens genéticas.

No entanto, do outro lado do campus do Laboratório Biológico Marinho, uma alternativa à Dorytheuthis flutua pacificamente em um tanque de plástico preenchido com água que imita o oceano da costa do Japão. Ao iluminar o tanque, Taylor Sackmar, especialista em cultura de cefalópodes, revela uma lula bobtail, da espécie Euprymna barryi, que é minúscula e transparente, exceto pelos olhos vermelhos reflexivos.

O filhote de um mês faz parte da primeira geração de filhos de dois pais geneticamente modificados, que flutuam em tanques próximos, parecendo bolinhos com tentáculos. Sackmar ilumina a lula mãe para mostrar listras sem cor em sua pele, indicando que ela não possui dois genes responsáveis pela pigmentação. Seus ovos, quando fertilizados por um macho que também não tem esses genes, geram filhotes albinos ou transparentes.

“A prole desta fêmea é a vanguarda da pesquisa sobre CRISPR”, Sackmar comenta em voz baixa, para não perturbar a lula.

Diferente da Dorytheuthis, a lula bobtail consegue eclodir, crescer até a idade adulta e se reproduzir em laboratório. Sackmar comenta que, embora o trabalho ainda esteja em fases iniciais, o objetivo do laboratório é um dia fornecer ovos de lula e animais adultos a cientistas de todo o mundo para fins de pesquisas genéticas. O laboratório também trabalha para criar culturas de outros cefalópodes com ciclo de vida completo, incluindo chocos das espécies Metasepia pfefferi e Sepioloidea lineolata e o polvo da espécie Octopus bimaculoides, proveniente da Califórnia, que tem o tamanho de uma bola de golfe. “Se esse trabalho tiver o resultado que esperamos, outros laboratórios vão querer mais exemplares”, diz Sackmar.

Porém, ainda há uma série de desafios em relação ao aumento da utilização desses cefalópodes como organismos para pesquisa. Por exemplo, ainda não é possível fertilizar ovos de lula bobtail in vitro, então qualquer edição de gene não pode começar até que a lula mãe decida se reproduzir. Lulas também levam um tempo relativamente longo para amadurecer após a eclosão, desacelerando o ritmo das pesquisas.

“As pessoas que adoram lulas dizem: ‘esta é a melhor coisa que aconteceu nos últimos tempos’. Mas, a realidade é que o caminho não será fácil”, comenta Miguel Holmgren, outro neurocientista dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos que utiliza o axônio gigante da lula em pesquisas.

Moroz, o neurocientista da Flórida, acredita que a lula bobtail é um organismo simples para responder a muitas perguntas que ainda restam sobre a neurobiologia dos cefalópodes, embora ele considere a pesquisa um “passo extremamente importante”. Ele complementa que, com a combinação de complexidade neural e distinção evolutiva, qualquer pesquisa básica sobre cefalópodes “realmente acelerará nossa compreensão do cérebro, da mesma forma que o axônio gigante de lula fez”.

“Esses organismos existem desde o final da era Paleozoica”, há 250 milhões de anos, afirma Crawford. “Eles têm muitas histórias para contar.”

 

Fonte: National Geographic Brasil

 

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