Um estudo do caso Ailton Krenak
Este artigo ou ensaio
– na indecisão que hoje se faz presente – discute, com base em caso recente, o
artigo publicado no site A Terra é Redonda, a diferença entre as posições politicamente
revolucionárias e as retrógradas.
O professor Filipe de
Freitas Gonçalves – de quem sabemos que é professor pela menção que faz a seus
alunos, os quais parece tentar dissuadir das ideias defendidas por Ailton
Krenak, considerado por ele retrógrado – refere-se a este como sendo o autor de
três livrinhos – sabendo, decerto, muito bem o valor depreciativo do diminutivo
na língua portuguesa nesse caso. Segundo ele, esses livrinhos possuiriam forte
poder de persuasão, advinda de certa oralidade indígena de que são portadores.
Mas não seriam dotados de coesão, nem de sistematicidade, o que os tornaria
avessos a toda a crítica.
O autor desses
livrinhos – o emérito escritor, jornalista e filósofo brasileiro Ailton Krenak
– seria aquele que conhece a cultura ocidental apenas como alguém que sofreu
suas consequências, e não por mérito intelectual. Aliás, seu reconhecimento e
ingresso na Academia Brasileira de Letras só se teria dado pelo caráter
retrógrado de seu pensamento.
Do fundo de seu rancor
e de sua ignorância, Filipe desconhece Krenak como um intelectual (ou nao se
dispõe a atribuir-lhe esse atributo), e parece não saber que o emérito escritor
e ambientalista indígena recebeu o título de doutor honoris causa da UnB. Quando
souber, por certo dirá que isso se deu como consequência de seu charme
inebriante, e não por mérito genuíno.
Estranhamente, no
entanto, a partir de certo ponto de seu texto (publicado aqui em A Terra e
Redonda no mês de julho, com o titulo “A produção ensaística de Ailton
Krenak”), Filipe começa a se servir de certa linguagem coloquial, sem
conhecê-la a fundo (apesar de se entender marxista), o que fornece a sua
linguagem um quê híbrido e imitativo, que logo flagramos quando vemos sua falta
de domínio dos provérbios, ao esquecer que se joga o bebê junto com a água da
banheira – e não, claro, do balde!
E por falar em
provérbios, vemos que o macaco não enxerga o próprio rabo – ou cultiva o
complexo do Avestroutrem, se quisermos nos servir de mais sofisticação.
O problema, talvez,
esteja na verdade mais embaixo – se não, de onde viria tanto medo? Certamente
de seu marxismo religiosamente místico e idealizante, de onde extrai as suas
farpas. Afinal, acatar a defesa de Krenak da volta à mãe natureza provocaria enorme
abalo em suas convicções, já que chega a acreditar que os indígenas estão mesmo
em extinção, e que precisam estar assim, pela lógica evolutiva prevista no
pensamento mistificador – e retrógrado – ao qual adere.
Racismo e
etnocentrismo, eis a cilada reacionária com a qual ainda se alinha, por certo
sem se dar conta disso.
Viveríamos numa
sociedade em contínua evolução, sendo as crises também parte dessa evolução,
assim como o afastamento da natureza. Precisaríamos, apenas, acertar melhor o
passo nesse percurso, de forma a evitar maiores desastres – mas não, nunca,
imaginar um retorno à natureza ou aos atrasos da cultura indígena. Afinal, quem
estaria disposto a abrir mão da dipirona ou dos tratamentos contemporâneos
contra o câncer?
Esse é o pensamento
coeso e sistemático que Filipe nos oferece, renegando a possibilidade mística
de se falar com uma pedra, ou de se ter o rio como um avô.
É certo que os dois
pensamentos não podem, em princípio, se coadunar – o pensamento analítico e
racional e o pensamento místico – só não é tão certo que ambos não possuam seu
teor passional, ou que ambos não venham a se entrecruzar, dinamicamente, no percurso
evolutivo da História.
Nem que a argumentação
de Filipe seja tão coerente e sistemática como pretende. Note-se que, por um
lado, ele critica mordazmente a afirmação de Krenak de que tudo seria natureza;
mas, por outro, é ele próprio quem naturaliza o genocídio! Parece, afinal, que
haveria um certo limite a evitar, para que todos nós não sejamos destruídos e
extintos, mas que nesse limite não caberiam os indígenas com sua episteme
mística – essa a ser necessariamente superada, no sentido apenas negativo desse
termo. A essas alturas, seu pensamento – que acredita ser coeso e sistemático –
começa a me fazer lembrar de um certo nacional socialismo.
Penso com meus botões:
Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras – um
sonho que prevê a nossa humana fraternidade com tudo e com todos – do que
embarcar na naturalização do genocídio – dentro de um marxismo que só pode ter
sido mal lido e mal digerido, já que não parece se coadunar com o que
aprendemos do materialismo dialético.
Por isso mesmo, seu
pensamento é retrógrado, e não atingiu ainda nem mesmo os limiares do século
XX, o que dizer do século XXI, no qual se inserem, como vanguarda
revolucionária, as palavras bem pronunciadas e escritas por Ailton Krenak.
Insiste num marxismo
(mal digerido) do século XIX, e considera – assim parece – que essa forma
limitada e mecânica de pensamento daria conta dos fenômenos contemporâneos;
detém-se em binarismos mecanicistas – selvagem/civilizado, oralidade/escrita –
e desconhece o pensamento complexo que vimos construindo desde finais do século
XX, ou mesmo antes disso; desconhece o movimento indígena contemporâneo, ainda
chama de índios os nossos indígenas e os joga para o passado, reservando ao que
chama de brasileiros (que pela sua menção seriam os indígenas já integrados e
aculturados) o tempo e espaço contemporâneos. Por isso, em seu entender, a voz
de Ailton seria uma voz +morta, vinda de um passado irrecuperável. Em seu
racismo, sequestra dos indígenas o direito à contemporaneidade.
É claro que um dos
movimentos importantes para que possa sair dessa posição marcadamente
retrógrada em que se encontra precisaria envolver uma vontade genuína de
conhecer mais sobre nossos indígenas, particularmente em tudo o que vêm
construindo a partir da Constituição de 1988 na esfera cultural, artística,
cinematográfica, acadêmica. Aliás, por sua petulância e desconhecimento de
causa, refere-se às pinturas feitas em seu rosto por Ailton Krenak nesse ano de
1988 como sendo a partir de barro preto. Mais um sinal de seu desconhecimento
das causas e das culturas indígenas que entende poder criticar.
De erro em erro sua
posição se revela retrógrada – mas o principal deles reside em sua leitura
estruturalista do marxismo, estruturalista e por isso mesmo não dialética, o
que compromete sua própria noção de História, que passa a ser linear e
mecanicista. Não é o que o marxismo postula, e por isso mesmo acaba enterrando
os indígenas (que ainda chama de índios) no passado. Para Filipe – em sua
argumentação infundada, que pretende ser coesa e sistemática dentro de uma
leitura equivocada do marxismo – eles estão e precisam estar mortos. Onde
ficaram nessa sua leitura as assimilações – i.e. rupturas e continuidades –
previstas no materialismo dialético? Estariam para ele nossos indígenas mortos
junto com todo seu lastro místico, permanecendo apenas restos de sua cultura
material?
Segundo ele, a voz de
Krenak seria uma voz já fadada a morrer, mesmo porque viria dos mortos. Essa
linha de pensamento prevê o assimilacionismo à cultura hegemônica e, portanto,
a rendição das culturas entendidas como subalternas, dentro de uma perspectiva
notadamente reacionária.
O estudo desse caso –
que nos é apresentado pelo artigo equivocado e presunçoso do professor e
doutorando Filipe – é digno de nota para a reflexão a respeito do contraste
entre o assimilacionismo (ou seja, os movimentos de assimilação e aculturação à
cultura hegemônica, de teor marcadamente opressor, retrógrado e reacionário) e
a assimilação enquanto Aufhebung (que prevê destruição/superação e
continuidade). Esta última – prevista pelo materialismo dialético (e de caráter
marcadamente revolucionário) – implica necessariamente a sobrevivência do
legado advindo das camadas subalternas – e não sua morte, como a leitura
equivocada de Filipe nos sugere.
Fonte: Por Maria
Silvia Cintra Martins, em A Terra é Redonda
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