quarta-feira, 31 de julho de 2024

Salvador: Moradores antigos do Centro Histórico pagarão alto preço com chegada de grandes empreendimentos

No Centro Histórico de Salvador, centenários prédios entre a Praça da Sé e a Rua Chile estão dando lugar a hoteis e restaurantes de luxo. A mudança na paisagem urbana está acompanhada de um aumento significativo no custo de vida na região. O surgimento de empreendimentos comerciais de alto padrão e as obras em curso trazem uma nova fase para o local, levantando preocupações entre antigos moradores e comerciantes sobre os possíveis benefícios e prejuízos dessa transformação.

A quarta matéria da série “Da Decadência Urbana às Noites de Luxo no Centro de Salvador” explora como essas melhorias urbanas podem levar ao aumento dos preços de aluguel, alimentação e serviços, refletindo o fenômeno da gentrificação. Ele ocorre quando um bairro se torna mais caro e mais sofisticado, o que pode beneficiar a área, mas também pode deslocar os moradores que já viviam lá.

•        Investimento de grandes grupos

No Centro Histórico de Salvador, grandes grupos empresariais enxergam na decadência uma oportunidade para revitalizar o Centro, utilizando suas riquezas para transformá-lo em um ponto promissor da economia de luxo soteropolitana.

Um dos principais investidores na transformação da região é o Grupo Fera Investimentos, que adquiriu vários imóveis na área. Em entrevista ao BNEWS, o advogado Felipe Almeida, que participou da venda de cinco imóveis para o Grupo Fera no final do ano passado, acredita a área será reconfigurada para atender a um público de alto padrão, com a expectativa de que a transformação traga um novo perfil para a região. “As coisas por ali vão mudar muito. Vai ser para um público de nível A +”, avalia.

As vendas das quais tem participado são em locais como a Rua Chile, Rua Carlos Gomes e o Comércio. Ele explica que são imóveis antigos, por vezes com dívidas e em estado crítico de conservação, mas em pontos privilegiados da cidade, com vista para a Baía de Todos-os-Santos.

•        Deslocamento dos residentes históricos

A chegada das empresas de alto padrão não é bem aceita por alguns moradores do Pelourinho. A trancista Natasha Mendonça, de 24 anos, vive no local desde que nasceu. Mora em uma casa própria, o que considera um aspecto facilitador, mas diz ver conhecidos migrando para outros bairros devido ao aumento do custo de vida e às desocupações durante projetos de requalificação feitos no bairro nos últimos anos.

"Dá pra contar nos dedos quantas famílias moram, de fato, no Pelourinho. Porque o público maior é hoteis, pousadas… E o povo se vê sufocado a sair daqui", protesta. Ela frisa que a maioria dos moradores trabalha no local e a distância do trabalho gera obstáculos, como mais horas fora de casa e maior custo no dia a dia.

Um ex-morador da região, que preferiu não se identificar e trabalha como hostess em hoteis e restaurantes locais, relata que, apesar da conveniência de viver próximo ao trabalho, foi forçado a deixar o Pelourinho. “Ficou mais barato morar em Brotas do que morar aqui”, lembra, ao classificar o momento como “péssimo” para os antigos habitantes.

•        Impactos

O economista e professor universitário Edísio Freire explica que empreendimentos de luxo podem provocar gentrificação. Ele observa que, à medida que o ticket médio aumenta, isso pode ser economicamente positivo, pois indica desenvolvimento da área. No entanto, sugere que esse processo pode levar à segregação de algumas famílias que não conseguirem acompanhar as mudanças econômicas.

"O ticket médio começa a aumentar. Isso é muito positivo do ponto de vista econômico, porque a área se desenvolve. Com um público disposto a pagar um preço maior, é preciso oferecer um serviço melhor. Então, a região fica mais cara. E talvez algumas famílias que não conseguirem acompanhar esse processo acabem sendo segregadas", explica.

O vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA), Ernesto Carvalho, reforça que a segregação socioespacial ou socioeconômica é característica da gentrificação. “Provoca a saída de moradores ou frequentadores antigos por causa do aumento do custo de vida. Pode acontecer em áreas urbanas onde há expectativa de valorização ou revalorização imobiliária”, acrescenta.

Conhecido como ‘Mestre Calá’ no Pelourinho, Clarindo Silva passou a vida inteira na região. Dos seus 82 anos, 53 foram dedicados à administração do renomado restaurante Cantina da Lua, localizado no Terreiro de Jesus. Para ele, a chegada de empresas de alto padrão contribui para a preservação da área, além de gerar empregos e renda. No entanto, ele ressalta a importância de não prejudicar a população local e defende a implementação de ações sociais. “As pessoas precisam ter sensibilidade de que nós é que estamos aqui há vários anos. Merecemos respeito e isso a gente cobra da maneira mais enfática possível”, diz.

A líder comunitária do Santo Antônio Além do Carmo, Tânia Pastori, enxerga oportunidades de emprego na região e acredita que a inflação não tem afetado negativamente a população local. “É uma área de classe média. Tem pessoas de baixa renda, mas não como em outros lugares. Até essas famílias gostam das coisas que acontecem, porque conseguem renda.” Também reforça que os imóveis ficaram muito mais valorizados, com alguns alcançando preços em torno de R$ 1 milhão.

Tânia aponta que os moradores dominam os estabelecimentos do bairro e fazem parte da característica local. Por isso, não acredita em um possível processo de migração. “Os visitantes não querem ver uma avenida de longe. Querem ver um bairro bucólico, parecendo interior. Por isso, precisamos predominar o comércio, para evitar a gentrificação”, acredita.

O sociólogo e professor do Serviço Social da Indústria (Sesi), Leandro Passos, sugere que a percepção da população em relação ao aumento do custo de vida e às mudanças na cidade está diretamente relacionada à degradação da qualidade de vida e à segregação espacial.

O especialista explica que o aumento do custo de vida resulta na perda de recursos econômicos, levando a restrições no consumo e no acesso a serviços comuns, enquanto a segregação espacial provoca um sentimento de estranhamento em relação a um espaço que antes era familiar.

“Isso pode ser facilmente observado em Salvador em bairros que passam por um processo de gentrificação, a exemplo do Santo Antônio Além do Carmo, no qual anteriormente tinha em todo seu ecossistema uma dinâmica mais popular e devido a intervenções urbanas e econômicas mudam a natureza da região. Compra e reforma de imóveis por grandes empresas e consequentemente a elevação do seu padrão alteram a destinação social fazendo surgir moradias com valores mais caros e empreendimentos voltados a um público que não os dos moradores tradicionais daquela localidade. Sendo assim, é inevitável não ocorrer uma segregação e uma hostilidade ainda que sutil às camadas mais populares”, explica.

Já o economista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcos Alban, defende que a gentrificação não se aplica ao Centro Histórico. Ele aponta que não há infraestrutura suficiente para atender a população de alto padrão em setores como o de mobilidade, como acontece em áreas nobres. Alban ressalta que há restrições para as modificações que seriam necessárias, por ser uma área tombada.

Para que os novos empreendimentos se firmem a longo prazo, o especialista aponta como solução a moradia popular. Ele diz que a movimentação local proporciona sensação de segurança aos turistas e visitantes. “É preciso que os soteropolitanos ocupem o Pelourinho, morem na Rua Chile, da mesma forma que moram no Santo Antônio Além do Carmo”, defende.

O vice-presidente do CAU-BA, Ernesto Carvalho, destaca que a utilização de prédios públicos pela iniciativa privada pode contribuir para o processo de gentrificação.  Segundo Carvalho, embora isso possa gerar oportunidades de trabalho para diversas faixas socioeconômicas, a definição de áreas inteiras para empreendimentos exclusivos, se não for bem planejada, pode intensificar esse processo.

Ele defende que o poder público deve equilibrar a revitalização com a criação de moradias populares e o estímulo ao surgimento de serviços essenciais, como mercados, farmácias e escolas. "Poderia se converter em oportunidade de trabalho para diversas faixas socioeconômicas. Mas a definição de zonas inteiras destinadas a empreendimentos exclusivos tende, se não bem dimensionada ou devidamente planejada, a ser uma âncora desse processo", diz.

•        Desenvolvimento é necessário e gentrificação é inevitável

O economista Edísio Freire concorda que o desenvolvimento é necessário e que a gentrificação é inevitável, mas acredita que um equilíbrio será encontrado. Ele prevê que o início do processo será marcado por adaptações, com desafios para alguns e oportunidades para outros.

"O momento inicial vai ser de adaptação, com agonia para uns e alegria para outros. Quem conseguir se adaptar vai se manter, e os que não conseguirem vão precisar encontrar novos caminhos. E as empresas que chegarem vão promover o desenvolvimento na região. Mas à medida que as coisas forem evoluindo, a estrutura em si vai se adaptar", avalia.

Em meio a essa discussão, a transformação do Centro Histórico de Salvador segue em plena ebulição, impulsionada pela chegada de empreendimentos de alto padrão e pela valorização dos imóveis. O equilíbrio entre progresso e preservação será crucial para garantir que a evolução da região beneficie a todos, sem sacrificar a identidade e o bem-estar das comunidades históricas.

 

Fonte: BNews

 

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