"Plano
Real foi cópia pela metade do modelo alemão", diz ex-presidente do Banco
Central
Sete
anos antes de integrar a equipe econômica que formularia o Plano Real e
acabaria definitivamente com a alta descontrolada dos preços no Brasil, Gustavo
Franco se debruçou sobre as causas e os efeitos da hiperinflação alemã. Mais
precisamente sobre o período que foi da década de 1920, durante a República de
Weimar, até a recuperação após a Segunda Guerra Mundial. Quando defendeu sua
tese de doutorado em Harvard, mal sabia que essa experiência o gabaritaria anos
depois a identificar semelhanças e diferenças na inflação brasileira.
Em
2019, quando o real completou 25 anos de circulação, o ex-presidente do Banco
Central do Brasil (1996-1998) e um dos mentores da moeda brasileira afirmou em
entrevista à DW Brasil que, na prática, o plano brasileiro é uma cópia do
modelo alemão "pela metade".
Na
Alemanha dos anos 1920, tentou-se uma experiência com duas moedas
simultaneamente: o Reichsmark, que se desvalorizava com a inflação alta, e a
Rentenmark, que se mantinha estável. A população adotou no dia a dia a moeda
mais estável, que permitiu o controle da inflação no país.
Tal
experiência inspirou a criação no Brasil da Unidade Real de Valor (URV), que
vigorou de março a julho de 1994, enquanto também existia o cruzeiro real
(CR$). Ocorre que apenas este último era usada para pagamentos, e a URV vinha
estampada nos produtos como referência ao "preço real". A URV era
atrelada ao dólar, portanto estável, enquanto o cruzeiro real perdia
diariamente valor por conta da inflação. Com a chegada do real, em julho de
1994, URV e cruzeiro real foram extintos.
"No
Brasil, a hiperinflação não deixou um trauma como deixou na Alemanha, onde as
consequências da inflação vão bem além dos efeitos econômicos diretos",
comparou Franco.
LEIA
A ENTREVISTA:
• O senhor é um dos estudiosos dos
efeitos da hiperinflação alemã dos anos 1920. Quais são as diferenças e
semelhanças em relação ao que ocorreu nas décadas de 1980 e 1990?
Gustavo
Franco: Tem muitos paralelos interessantes. E a solução no nosso caso é uma
variação do Rentenmark alemão, implementado no verão de 1923. Dá para dizer que
o ponto de partida é semelhante, porque são inflações que estavam na faixa de
40% a 50% mensais, é a situação da Alemanha até o final do inverno e começo do
ano de 1923, e é a situação de quando o real é feito. Em ambos os casos, se tem
a introdução de uma espécie de segunda moeda. Mas na Alemanha foi uma
experiência muito mais desorganizada e muito mais rica, que foi a introdução
dos chamados Notgeld, que são as moedas de emergência de valor estável,
indexadas, que eram emitidas por agentes privados, fábricas, igrejas,
prefeituras. Essas coisas começaram a proliferar e com muita aceitação. E isso
se parecia, no caso brasileiro, com a disseminação dos contratos com indexação
pela economia. No Brasil, não tinha tanta emissão privada de moeda, mas tinha
prática generalizada de indexação. Aí vem o Rentenmark, o Estado alemão resolve
criar um segundo Banco Central, que vai emitir uma segunda moeda, no entanto,
construída com essa mesma lógica de moeda indexada, de valor estável. E o que
aconteceu com a Alemanha a partir do momento em que a experiência começa é que
se tem duas moedas: o Reichsmark, que é uma moeda comum, ruim, e o Rentenmark,
que é outra moeda nacional, boa, tão boa quanto a moeda estrangeira. O que
acontece é que a coexistência entre as duas moedas de pagamento provocava uma
explosão dos preços na moeda velha, porque ninguém queria mais aceitar a moeda
velha, e queria se livrar da moeda velha que tinha e só receber Rentenmark, a
boa. A inflação alemã que estava na faixa de 50% ao mês, chegou a 30.000% ao
mês no seu último momento, que foi em novembro de 1923.
• A experiência lembra de fato a
Unidade real de valor (URV). Como inspirou o caso brasileiro?
Aqui
a gente viu uma coisa muito genial no Rentenmark que serviu para terminar com a
inflação alemã, porém com esse problema de a inflação explodir, porque tinha
duas moedas de pagamento. Então o que a gente fez no Brasil foi um Rentenmark
pela metade. Era um Rentenmark que era só moeda de conta, e não moeda de
pagamento. As pessoas não podiam recusar o cruzeiro real para a aceitar a URV,
porque a URV não servia para pagar. Era o mesmo mecanismo do Rentenmark, tinha
uma imensa utilidade para coordenar expectativas, contratos, preços, salários e
tudo mais. Mas não provocou a explosão da inflação. O Rentenmark durou alguns
meses na Alemanha. O URV durou alguns meses e quando virou moeda, trocou de
nome para real, e o cruzeiro real deixou de existir. De modo que a gente nunca
teve as duas moedas circulando simultaneamente. A nossa inspiração veio da
Alemanha.
• Passados 25 anos desde o início do
Plano Real e em meio a certa estabilidade monetária, ainda faz sentido se
preocupar com a inflação?
Sim,
sempre existe o risco de voltar e tem uma discussão permanente no país sobre a
memória. E uma queixa muito comum é que no Brasil a hiperinflação não deixou um
trauma como deixou na Alemanha. Na Alemanha, as consequências da inflação vão
bem além dos efeitos econômicos diretos, é um ponto controverso na
historiografia. Aqui no Brasil, um dos mecanismos de reduzir o interesse de
fazer medidas de ajustamento mais drásticas para resolver nossos problemas era
um certo denial [negação]: "O Brasil não está vivendo uma
hiperinflação." Era uma coisa comum não usar uma palavra tão feia,
"porque só foi naqueles casos muito extremos na Europa" [diziam]. E
tinha referência com a Alemanha, como se a Alemanha não tivesse tido uma
inflação muito parecida com a brasileira, exceto nos últimos meses. No Brasil
era como se a coisa "não fosse tão grave”, "não é tão sério assim,
então não precisa de tantas reformas, tantas cautelas". Mas o fato é que
foi mesmo. Mas, felizmente, ainda que a percepção política seja um pouco complacente,
no Plano Real, as instituições foram muito protegidas dos vícios que fariam
voltar a inflação. Então, é muito difícil produzir hoje de novo o mesmo
fenômeno.
• Num evento realizado neste ano no Rio
Grande do Sul, o senhor disse que agendas discutidas na época do Plano Real
ainda não mudaram, 25 anos depois. Quais são essas agendas?
Uma
delas é a reforma da Previdência, que foi tentada várias vezes, passou em
alguns pedaços. Tem outras no plano fiscal: privatizações que não aconteceram,
pararam pela metade. É o caso do setor de energia. Acho que a gente conseguiu
completar algumas coisas, mas outras não. Tem muita coisa para privatizar
ainda, o Estado ainda é muito grande. Mais especificamente coisas pertinentes à
Lei de Responsabilidade Fiscal, teríamos que ter avançado mais, e fracassamos.
Um sintoma do fracasso foi o desempenho fiscal dos estados, que é muito ruim.
Em alguns estados grandes é tão ruim quanto era há 20 anos. O que é lamentável.
Ou seja, teríamos que ter avançado em cautela e instituições ligadas ao
orçamento para fazê-lo mais realista, mais defendido de pressões políticas.
• O Brasil concilia agora inflação
baixa e taxa Selic também num dos patamares mais baixos. Estas condições
combinadas deveriam ser favoráveis para uma economia em ascensão. Por que o
Brasil patina na retomada do crescimento?
Acho
que são várias razões. Houve uma recessão cíclica extremamente forte, e as
recessões assim são sticky [pegajosas], como se diz em inglês, a recuperação é
mais penosa e demorada, do que quando são recessões normais. Essa foi muito
violenta. Tem umas tensões na economia pelo lado da oferta que não são
triviais. Uma delas é a própria crise fiscal, mas tem um subproduto disso que é
importante, que foi um colapso no setor de óleo e gás e construção pesada,
decorrente da Operação Lava Jato. Alguns dos principais players em
infraestrutura são empresas que estão em estresse financeiro, algumas em
recuperação judicial. Não há dúvida que foi um certo estresse sobre o sistema
bancário e fez cair uma nuvem no panorama do crédito, fator para retardar a
recuperação. É preciso recuperar a confiança, e nós tivemos uma eleição
extremamente atípica no Brasil, o impeachment da presidente Dilma [Rousseff],
tivemos um ano de sossego e aí veio uma crise política em torno do presidente
Michel Temer, e uma eleição muito difícil e paralisante, com o mundo
empresarial amedrontado com a possível volta do PT. Passou a ser uma história
de se o Brasil vai para o caminho venezuelano ou argentino. Isso foi
paralisante para investimentos privados. E aí Jair Bolsonaro é presidente, e ele
ainda precisa estabelecer sua política econômica pró-mercado. É como se enxerga
o ministro da Economia [Paulo Guedes]. Mas ainda existem dúvidas sobre se esse
presidente conseguirá implementar esse programa, cujo principal item na partida
é a reforma da Previdência, que é muito difícil. A recuperação está ocorrendo,
mas de forma muito lenta. Perdeu um pouco do impulso neste último trimestre.
Suponho que com a passagem da emenda da Previdência a recuperação vai acelerar
um pouco mais.
• Uma das críticas feitas ao ministro
Paulo Guedes é que ele deposita confiança demais apenas na reforma da
Previdência e deixa de atuar em outras estratégias para retomada do emprego e
atração de investidores. O que o senhor faria de diferente?
É
um processo meio difícil de controlar, porque depende muito da dinâmica
política com o Parlamento. E a reforma da Previdência em razão dos adiamentos
ao longo dos anos, acabou se tornando uma coisa enorme. E é muito difícil para
qualquer Parlamento lidar com um texto constitucional de sete páginas numa
matéria muito complexa. Nos outros países, a Constituição é muito simples,
menorzinha, mais principista. No nosso caso, não. Então, quando tem que mudar
uma coisa desse tipo, é uma dor de cabeça gigante, porque cada pedaço da lei,
do texto constitucional, afeta um grupo social específico e facilita muito a
organização de pequenas coalizões de veto. Portanto, esse tipo de reforma é
muito difícil. Então, estrategicamente foi escolhido para ir em primeiro lugar,
porque as outras todas são muito mais fáceis, e é quando o governo está mais
forte e mais organizado. Poderia estar mais forte e mais organizado, mas é o
que temos [risos]. E está andando.
• De 1994 até 2019, o real acumulou
inflação de 508%. Bem maior do que a do dólar no período, mas ainda assim menor
do que havia registrado apenas no primeiro semestre de 1994. Esse resultado era
esperado ou merece preocupação?
É
que tem aí os primeiros 12 meses do real que fazem muita diferença. Nos
primeiros 12 meses, a inflação pelo IPCA foi de 33% de acumulado. Durante todos
esses 25 anos, provavelmente a inflação média anual está em 7%. Porém, o
primeiro ano estraga um pouco a média. A gente só teve inflação de dois dígitos
depois disso em 2003, por causa da desvalorização cambial na transição para o
governo Lula. E estava mais adiante em 2011 e 2012, com a Dilma, chegando a
10%. É um desempenho espetacular para nós, considerando que somos um ex-viciado
em drogas pesadas [risos]. Pequenos episódios de volta aos velhos vícios. Não é
exatamente como o dólar, mas é o mais próximo que poderíamos ter chegado em
toda a nossa história. Talvez os melhores 25 anos em matéria de inflação que o
país tem desde o século 19. É para a gente se orgulhar sim. Acho que a gente
não vai mais ter 33% ao ano, como tivemos entre julho de 1994 para julho de
1995. E veja, estamos indo para uma meta de inflação de 3,5%. Já tivemos 1,5%,
foi em 1998, aliás meu último ano como presidente do Banco Central, é o
recorde: 1,6% no IPCA, que foi importante para desintoxicar o organismo.
• Certa vez o senhor disse que em 1998
se chegou a um patamar americano de inflação...
Naquele
momento teve uma quebra estrutural. A coisa mais difícil em economia é quando
você consegue mudar o comportamento das pessoas, mudar estruturalmente a forma
de ver a inflação. Nos anos de 1997 e 1998, nós conseguimos isso, ao manter a
inflação durante esses dois anos abaixo de 5% ao ano, que era um experiência
que nenhum brasileiro vivo tinha tido. Você só vai achar a inflação brasileira
abaixo de 5% ao ano antes da Primeira Guerra Mundial, antes de 1914. Aí foi um
deslumbre para essas pessoas e para nós todos e criou-se um apoio popular à
estabilidade que acho que era no começo uma esperança. Mas era preciso entregar
o produto inteiro. Se estivesse parado no meio, tava todo mundo feliz em 1996,
mas a inflação ainda estava em 20% ao ano. Não dá para parar aí, você ainda
estava intoxicado. A gente teve que ir até o nível americano. Sabe, quando a
gente vai para o spa a gente tem que chegar no peso correto, não adianta chegar
perto apenas, senão vai engordar tudo de novo [risos]. Então chegamos a um nível
correto, que foi importante para desintoxicar o organismo.
NOTA
Esta
entrevista foi feita em 2019, por ocasião dos 25 anos do Plano Real.
Fonte:
Deutsche Welle
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