Os riscos do trabalho noturno para a saúde
Simone Camargo
trabalha há três anos como motorista de aplicativo madrugada adentro.
Até março de 2024, ela
começava a dirigir às 16h e só parava cerca de 12 horas depois, em torno das
4h.
Entretanto, desde que
começou a fazer a jornada noturna, passou a ganhar peso e a se sentir cada vez
mais cansada.
"Digo que quem
trabalha à noite não tem mais vida".
"Você dorme sete
horas durante o dia, mas o sono não rende igual o noturno".
Segundo Claudia
Moreno, pesquisadora do departamento de Saúde e Sociedade da Universidade de
São Paulo (USP), que estuda os impactos da jornada noturna na saúde do
trabalhador, os efeitos que Simone sente em sua saúde por trabalhar à noite não
são incomuns.
"Assim como a
coruja é habituada com a noite, o ser humano é com o dia."
"Dormir é
essencial para a saúde, assim como beber água, comer e praticar atividade
física", diz a pesquisadora, que também é porta-voz da Associação
Brasileira do Sono (ABS).
Moreno explica que o
ciclo circadiano, sistema temporal interno do nosso organismo chamado
popularmente de relógio biológico, é alinhado com a alternância entre o dia e a
noite, o claro e o escuro.
Assim, ao trabalhar à
noite, ocorre uma inversão do padrão natural de atividade e repouso.
Em regra, explica a
pesquisadora, essa inversão teria que ocorrer também com o padrão de todas as
funções do organismo, como a liberação de hormônios e as enzimas que auxiliam
na digestão.
A questão é que a
velocidade de ajuste ao "novo" horário não ocorre da mesma forma para
todas as funções do organismo.
"A temperatura
corporal, por exemplo, leva dias para alterar seu padrão, isto é, a pessoa
trabalha com a temperatura do corpo adequada para dormir e não para exercer
qualquer atividade", diz Moreno.
• Consequências para a saúde
No Brasil, estima-se
que 10% dos trabalhadores atuem na jornada noturna.
O último grande
levantamento do tipo realizado, em 2016, pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), mostrou que 6,9 milhões de trabalhadores brasileiros
trabalham nesta jornada.
Lais Aparecida
Marques, de 36 anos, é uma delas. Ela faz a cobrança em um pedágio do trecho
rodoviário da SP-255, em Itaí, no interior de São Paulo, e dá expediente das
22h às 6h.
"No começo, a
dificuldade foi com a adaptação do sono e do meu corpo entender a mudança do
novo hábito", conta Lais.
"Tinha a
impressão de que o sono de dia era mais leve, menos profundo."
Isso ocorre porque o
sono diurno não é igual ao noturno: dorme-se menos durante o dia e o sono é de
pior qualidade, explica Moreno.
O trabalho noturno
também pode fazer com que um trabalhador não consiga dormir a quantidade mínima
de horas que o corpo exige.
Segundo Francisco
Cortes Fernandes, presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho
(ANAMT), uma pessoa adulta precisa de seis a oito horas de sono por dia.
O problema é que uma
pessoa que trabalha à noite tende a dormir menos, visto que a vida social
"não trabalha à noite".
"A pessoa que
trabalhou a noite vai ficar acordada para levar o filho à escola ou para fazer
tarefas comuns do dia a dia”, aponta Ada Ávila Assunção, professora de saúde
pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Isso gera menos horas
de descanso e, consequentemente, cochilos involuntários, o chamado sono
inoportuno, sensação de cansaço e desânimo.
Além disso, um
trabalhador noturno dificilmente dorme tudo que precisa em um único período e
parcela o sono em duas ou mais ocasiões durante o dia.
"Com isso, essa
pessoa continuará com um débito de sono, que a longo prazo contribui para o
desenvolvimento de doenças, especialmente, as relacionadas com o próprio sono,
como a insônia, por exemplo", aponta Moreno.
• Menos sono, mais doenças
Pesquisadores ouvidos
pela BBC News Brasil apontam que trabalhadores noturnos correm mais risco de
sofrerem de doenças cardiovasculares, distúrbios gastrointestinais e
metabólicos (diabetes tipo 2; síndrome metabólica); câncer (mama, próstata e
colorretal); problemas de saúde mental e relacionados à reprodução.
Segundo Ada Ávila
Assunção, professora de saúde pública da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), isso acontece devido o corpo enfrentar o paradoxo de ter de funcionar
quando está em baixa produção de elementos fundamentais para aquelas funções.
"Para se ter uma
ideia, estudos mostram que enfermeiras que trabalham à noite durante ao menos
dois anos apresentam 81% mais risco de desenvolver hipertensão arterial quando
comparadas àquelas que trabalham durante o dia", ressalta Assunção.
Outro estudo realizado
por pesquisadores franceses, publicado na revista científica International
Journal of Cancer, mostrou que mulheres que trabalham em jornada noturna também
apresentam mais chances de desenvolver câncer de mama.
A explicação é que a
iluminação artificial do período noturno pode afetar o funcionamento da
glândula pineal, responsável pela produção de melatonina, e reduzir a produção
desse hormônio.
Isso porque a
melatonina, que tem um papel crucial em regular o ciclo de sono, é fabricada
pelo organismo na ausência de luz.
"Por sua vez, a
supressão da melatonina aumenta a produção de estrogênio. Quando esse hormônio
aumenta, a chance de câncer de mama aumenta também", explica Assunção.
Esse efeito é ainda
mais intenso em trabalhadoras noturnas que enfrentam situações estressantes,
segundo o estudo.
"Nessas
situações, são produzidas substâncias nocivas que tem a ver com a geração de
células cancerígenas”, explica Ada.
No Brasil, uma
pesquisa realizada pela Universidade de São Paulo (USP) também revelou que
profissionais de saúde noturnos têm risco aumentado de sofrerem de sobrepeso ou
obesidade.
De acordo com o
estudo, horários irregulares das refeições combinado com dessincronização do
ciclo circadiano, privação do sono e sedentarismo contribuem para o maior
risco.
Moreno acrescenta
ainda que mulheres grávidas não devem trabalhar mais de um turno noturno por
semana para reduzir o risco de aborto espontâneo.
Em busca de qualidade
de vida, a motorista de aplicativo Simone resolveu mudar sua rotina para
diminuir a quantidade de horas trabalhadas na madrugada. Agora, começa às 14h e
para às 2h.
"É uma forma que
encontrei de conseguir dormir mais à noite e voltar a fazer coisas que
gostava", diz ela.
"Antes, minha
vida era somente trabalhar e dormir".
• Quais são os direitos do trabalhador
noturno?
No Brasil, a
legislação trabalhista proíbe que menores de 18 anos trabalhem em jornadas
noturnas, que vão das 22h às 5h.
"Essa medida visa
garantir não somente a segurança, como o desenvolvimento saudável dos
menores", diz Mauricio Nahas Borges, advogado e membro da Comissão da
Advocacia Trabalhista da OAB-SP.
Borges explica ainda
que o trabalhador noturno tem direito a receber um acréscimo de até 20% no
valor pago pela hora trabalhada, o chamado adicional noturno.
Além disso, se o
empregado iniciar sua jornada às 22h de um dia e tiver esta jornada estendida
para o período diurno, ou seja, após às 5h, o adicional noturno deve ser pago
para todas as horas daquela jornada.
Outra diferença é a
hora reduzida. Enquanto a hora normal do trabalhador diurno dura 60 minutos, a
hora noturna, segundo a lei, nas atividades urbanas, é computada como sendo de
52 minutos e 30 segundos.
Isso significa que, na
prática, ao final de uma jornada de oito horas, por exemplo, o trabalhador vai
receber por nove horas trabalhadas, acrescidas do adicional de 20%.
Segundo Francisco
Cortes Fernandes, da ANAMT, essas regras trabalhistas visam mitigar os impactos
da jornada noturna na saúde do empregado.
"Além dessas
medidas, também é importante evitar jornadas de trabalho noturnas prolongadas e
mais de três turnos noturnos consecutivos", alerta Fernandes.
Fonte: BBC News Brasil
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