terça-feira, 2 de julho de 2024

O que o Plano Real deixou de legado – e o que não entregou

Para os brasileiros com mais de 35 anos, é comum ter cenas como estas na memória: a família indo ao supermercado fazer a compra do mês inteiro assim que recebia o salário. Usar cédulas de uma moeda que já não existia mais, carimbadas com o novo nome e o valor com três zeros a menos. Funcionários de lojas sempre com maquininhas em punho remarcando os preços.

Tudo isso ficou para trás com o lançamento do real, em 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era o ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco. A moeda debelou a hiperinflação, após uma série de planos fracassados, e lançou as bases de um sistema macroeconômico finalizado nos anos seguintes e que perdura até hoje, baseado em metas de inflação e fiscais, além de câmbio flutuante.

chegada da nova moeda deixou legados positivos para famílias e empresas. A estabilidade deu maior previsibilidade sobre os preços, favorecendo decisões sobre o quanto poupar e onde investir, e reduziu a pobreza no curto prazo. O plano também deu maior peso à responsabilidade fiscal e foi acompanhado de outras mudanças, como a privatização de estatais.

Mas a promessa de que a estabilidade monetária levaria a um crescimento sustentado e a queda da desigualdade no longo prazo não se confirmou – devido a outros obstáculos estruturais, que ficaram mais evidentes após o fim da inflação alta.

·        Planejamento de longo prazo

O Brasil registra no momento uma inflação de cerca de 4% por ano. Nas décadas de 1980 e 1990, antes do real, ela costumava superar os 10% por mês – e atingiu picos de até 80% por mês, como em março de 1990. Numa realidade dessas, é muito difícil para as famílias e as empresas planejarem seus gastos de forma equilibrada.

Para as famílias, o importante passa a ser comprar o necessário o mais rápido possível depois de receber o salário, pois dali a um mês tudo estará mais caro. É preciso sempre estar pensando em como proteger seu dinheiro da perda de valor – uma tarefa ainda mais difícil para as milhões de pessoas que não tinham contas bancárias corrigidas pela inflação. E os traumas de seguidos planos econômicos com tabelamento de preços ou congelamento de contas levavam a decisões que nem sempre eram as mais eficientes.

"As pessoas trabalhavam com os nervos à flor da pele e um horizonte supercurto, e passavam a maior parte do tempo tentando proteger seu patrimônio", afirma à DW o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.

Para as empresas, esse cenário provocava ineficiência. Uma decisão importante passa a ser quando comprar os produtos e insumos, já que a cada dia eles ficam mais caros. Aquelas que revendem produtos físicos são incentivadas a manter grandes áreas de estoque, e as envolvidas em cadeias complexas de fornecimento precisam lidar com preços de cada item subindo em momentos diferentes.

Na época da hiperinflação, a cientista política Daniela Campello, professora associada da FGV EBAPE, trabalhava como engenheira de produção, e relata à DW que lidava diretamente com o problema das empresas que buscam manter grandes estoques. "Era péssimo do ponto de vista da otimização da produção, mas uma necessidade por conta da economia", diz.

Desde a adoção da nova moeda, exceto no primeiro ano do governo FHC, quando o real ainda dava seus primeiros passos, a inflação anual nunca ficou acima de 13%.

·        Redução da pobreza no curto prazo

Outro efeito positivo do real, registrado no primeiro ano da sua adoção, foi a redução da proporção de pobres no Brasil, associada ao fim da hiperinflação e a reajustes do salário mínimo.

Segundo a Pesquisa Mensal do Emprego do IBGE, que mede a renda do trabalho nas maiores regiões metropolitanas do país, em junho de 1994 cerca de 34% dessa população estava abaixo da linha de pobreza. Em setembro de 1995, eram cerca de 25,5%.

A hiperinflação era especialmente danosa aos mais pobres porque, excluídos do sistema bancário, eles sofriam mais com a perda constante de poder aquisitivo. "Naquela época, os pobres não tinham condição nenhuma de proteger a renda de uma inflação avassaladora", diz Mendes.

Outro fator que pesou para a redução da pobreza foi o reajuste do valor do salário mínimo. Em 1995, no seu primeiro ano no Planalto, FHC concedeu um reajuste de 42,9% – o maior em seus oito anos de governo. Segundo um estudo do Ipea, isso respondeu por 60% da redução da pobreza no período mencionado.

Mas a tendência de redução da pobreza não se manteve no longo prazo. Após a queda em 1995, a proporção de pobres se manteve relativamente estável até o final do governo FHC, e voltou a cair significativamente somente a partir de 2003, com a introdução do programa Bolsa Família no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

·        Responsabilidade fiscal e privatizações

Um dos pontos centrais do programa de estabilização da moeda foi comprometer-se com o equilíbrio nas contas públicas. Em âmbito federal, isso se traduziu na adoção de metas de superávit primário, que orientam o governo a gastar menos do que arrecada, excluído o pagamento de juros – com o objetivo de manter a dívida pública sob controle ou reduzi-la.

Um dos argumentos para a privatização de grandes estatais no governo FHC, como o Sistema Telebrás, também era obter receitas extraordinárias para equilibrar as contas públicas e consolidar o real. Ampliar a eficiência dessas empresas era outro argumento.

A busca por responsabilidade fiscal também se refletiu nos estados. Os bancos públicos estaduais, que atuavam como financiadores dos governos estaduais, revelaram grandes desequilíbrios estruturais após o fim da hiperinflação, e o primeiro governo FHC promoveu em 1997 a renegociação das dívidas dos estados.

Nesse processo, a União assumiu as dívidas dos estados, que deveriam ser pagas em condições vantajosas, e em contrapartida exigiu que eles fizessem ajustes fiscais e privatizassem estatais, inclusive os bancos estaduais. Segundo Mendes, esse mecanismo teve efeitos positivos para o equilíbrio das contas estaduais por cerca de dez anos, mas perdeu força após a flexibilização das regras no governo Lula e pelo boom de commodities, que incentivou o aumento das despesas sem que houvesse um aumento sustentável de receitas.

Em um evento na semana passada na Fundação FHC, em São Paulo, sobre os 30 anos do real, Rubens Ricupero, que sucedeu FHC no Ministério da Fazenda, afirmou que a responsabilidade fiscal foi o elemento que "menos pegou" do real, e que o Brasil, após uma fase inicial de melhora, está agora piorando nesse aspecto.

·        Crescimento baixo e juros altos

A ideia de que a estabilidade monetária estimularia investimentos privados e levaria ao crescimento da economia não produziu resultados de longo prazo, e as razões para isso são variadas e alvo de debate entre especialistas.

Mendes aponta, entre os motivos, que o Brasil segue tendo um setor público grande e com mais estatais do que precisaria, o que segundo ele trava o aumento da produtividade. Outras razões, diz, são uma economia pouco aberta à competição internacional e lobbies de setores específicos que conseguem manter subsídios públicos ineficientes.

Após a estabilização promovida pelo real, o Brasil também se manteve entre os países com maior taxa de juro real do mundo. As explicações para isso também são controversas. Mendes aponta para o desequilíbrio crônico do setor público, que força o governo a contrair mais empréstimos para financiar seu débito e pressiona as taxas de juros para cima.

Para Campello, o tamanho da dívida pública de fato tem impacto na rentabilidade de quem empresta ao governo, mas ela menciona outros possíveis motivos, como um aspecto inercial do mercado financeiro e pouca competição bancária.

·        Oposição do PT

Lula encontrou-se com FHC na última segunda-feira, no dia em que a Fundação FHC fazia seu evento para comemorar os 30 anos do real. Mas, em 1994, o plano de estabilização enfrentou forte oposição do PT, que então preparava a segunda candidatura de Lula ao Planalto.

O argumento do PT era que o Plano Real seria feito às custas dos mais pobres – Lula disse que a iniciativa era um "estelionato eleitoral" e que iria "apenas congelar a miséria". Quatro anos depois, após o sucesso do real, o petista reconheceu que a estabilidade monetária trazida pelo plano era positiva e tinha um efeito relevante para o poder aquisitivo dos mais pobres – e fez sua campanha naquele ano baseada em críticas ao baixo crescimento e à falta de programas sociais para as classes mais baixas.

O tucano venceu aquela reeleição no primeiro turno. Campello, que elaborou uma pesquisa analisando como a variação do preço das commodities e da taxa de juros nos Estados Unidos impacta a popularidade de governos brasileiros, disse que o apoio ao presidente se descolou da prevista por seu modelo em dois momentos da história, sendo um deles o período sob FHC após a estabilização da moeda.

·        Jabuticaba brasileira?

O debate sobre os 30 anos do real, na opinião de Campello, ganha em precisão se for acompanhado do contexto internacional. Ela ressalta que o plano foi "muito engenhoso" e trouxe uma mudança estrutural para o Brasil – mas cita que diversos países da América Latina conseguiram estabilizar suas moedas na mesma época.

Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, entre outros, também conseguiram debelar a inflação alta na década de 1990 – assim como a Argentina, esta de forma insustentável. "O mundo estava favorável naquele momento para esse tipo de programa de estabilização, e foi ótimo que se aproveitou", diz.

Em uma pesquisa realizada em 2003, ela concluiu que o sucesso do real teve a ajuda da dinâmica do mercado financeiro internacional, que incluía a queda da taxa de juros nos Estados Unidos e o Plano Brady, lançado pelo Tesouro americano para reestruturar a dívida externa de países em desenvolvimento.

Campello argumenta que o Plano Real representou o "grande momento do neoliberalismo" na América do Sul, que produziu alguns bens públicos como a estabilidade monetária, mas cujo modelo foi insuficiente para enfrentar a desigualdade e a pobreza.

 

¨      Como era a vida antes do Plano Real

Hoje pode parecer estranho, mas antes do reallançado há exatos 30 anos, as famílias e empresas brasileiras adotavam comportamentos criativos para proteger o seu dinheiro da alta constante dos preços.

Rotinas como ir ao supermercado assim que o salário era depositado, ter várias contas de poupança e investir em grandes estoques de produtos – pouco eficientes – eram imprescindíveis diante de uma inflação que chegou a bater em 80% por mês.

Essa época também teve traumas que nunca mais se repetiram, como o tabelamento de preços, a falta crônica de produtos nos supermercados e o confisco de poupanças.

Veja como era o cotidiano de famílias e empresas em boa parte das décadas de 1980 e 1990:

·        A grande compra do mês

Era um evento familiar. Como o preço dos alimentos subia constantemente, o melhor negócio era ir ao supermercado logo após receber o salário e encher um ou dois carrinhos com todo o necessário para o mês – ou meses – seguintes.

Para os que tinham condições, essa compra abastecia a despensa de produtos alimentícios e de limpeza.

Um bem muito cobiçado na época era o freezer – melhor ainda se fosse aquele horizontal, usado em estabelecimentos comerciais – para comprar carne em grande quantidade e armazená-la.

·        Maquininhas etiquetadoras

A remarcação constante dos preços nos supermercados era um desafio em si. 

Códigos de barras ainda não estavam difundidos, e o país tinha uma reserva de mercado para a indústria nacional de informática que dificultava que os varejistas digitalizassem seus sistemas.

As etiquetas com os preços eram coladas diretamente nos produtos. Como eles viviam subindo, isso era uma atividade permanente, que demandava um funcionário específico: o remarcador de preços.

"Era uma profissão odiada. O cara vinha com a maquininha na mão e não parava, ia de um setor a outro", lembra Carlos Eduardo de Oliveira, 67 anos, ex-funcionário do Banespa.

·        Malabarismos bancários

O brasileiro tem fama de ser criativo diante da adversidade, e isso valia para a relação com contas bancárias e produtos financeiros.

Muitos tinham mais de uma conta de poupança, com datas de aniversário em dias diferentes. Quando era necessário realizar um saque, ele era feito da conta cujo aniversário havia sido mais próximo – minimizando a perda de rentabilidade. O mesmo valia para a variedade de cartões de créditos, também com datas de vencimento distintas.

A inflação alta levou os trabalhadores a pressionarem as empresas a pagarem o salário em mais de uma parcela por mês. Receber quinzenalmente ou semanalmente era um objetivo almejado pelas entidades sindicais, alcançado em alguns casos.

Entre os empregados com maiores salários, alguns optavam também por comprar dólares assim que recebiam, para trocá-los conforme a necessidade.

·        Fiscais de preço e falta de produtos

O tabelamento de preços foi uma das muitas estratégias para tentar combater a inflação, como ocorreu no Plano Cruzado, de 1986, durante o governo José Sarney.

Itens alimentícios, combustíveis, produtos de limpeza e serviços tiveram os preços congelados, e o presidente pediu aos brasileiros que fiscalizassem os preços nos supermercados e denunciassem remarcações.

Alguns iam ao supermercados com um broche informando ser "fiscal do Sarney". Em alguns casos, isso rendia bate-boca com os comerciantes e confusões, que acabavam em prisões de empresários e interdições de estabelecimentos.

Não deu certo. Logo começaram a faltar produtos, seja porque os preços congelados não eram adequados para incentivar sua produção ou porque varejistas decidiam tirar itens das prateleiras. Comerciantes passaram a cobrar também um ágio para vender alguns produtos escassos – só tinha acesso quem pagasse o extra.

O congelamento de preços não era o único gatilho para a falta de produtos. A estocagem para longo prazo e o desafio de manter cadeias de fornecimento estáveis também provocavam faltas constantes. Oliveira relata que, em Santos, era comum ver pessoas formando fila no supermercado já às 5h nos dias em que haveria carne disponível. "Muitas vezes a polícia tinha que intervir para organizar", diz.

Problema parecido ocorria com os combustíveis.  A Petrobras tinha o monopólio do refino e da venda, e o governo exercia controle total sobre os preços. Quando havia o anúncio de aumento de preços, muitos corriam para os postos para encher o tanque, o que criava longas filas de veículos que dobravam quarteirões.

Outro trauma da época é o confisco da poupança. Isso ocorreu em março de 1990, no início do governo Fernando Collor, e atingiu não só as cadernetas de poupança, mas também investimentos e contas correntes.

A medida bloqueou os valores depositados que fossem superiores a 50 mil cruzados novos (equivalentes, hoje, a R$ 13,2 mil corrigidos pelo IPCA), que só poderiam ser sacados dali a 18 meses. A iniciativa drástica provocou problemas agudos para muitas famílias e empresas.

·        O preço está alto ou baixo?

A remarcação de preços não acontecia de forma homogênea com todos os produtos e por todas as empresas, o que levava a grandes diferenças entre estabelecimentos ou comparações absurdas.

No livro Saga brasileira – a longa luta de um povo por sua moeda, a jornalista Miriam Leitão registra alguns desses exemplos. Na mesma semana, um mesmo aspirador de pó podia custar 899 cruzados novos ou 2.009 cruzados novos, dependendo da loja. 

Um leitor de jornal reclamava que havia comprado um metro de elástico em uma loja por 14 cruzados novos, e no dia seguinte havia encontrado o mesmo produto em outro estabelecimento por 1,50 cruzado novo.

O desalinhamento de preços e a inflação alta obrigavam os consumidores a pesquisar muito e fazer contas sempre antes de comprar algo. No livro, Leitão relata que os jornais traziam tabelas para orientar as pessoas nas suas decisões: "Se a loja oferecesse 'só' 30% de desconto à vista, era melhor pagar com cartão – que não era considerado à vista –, perder o desconto e aplicar no overnight, que no final do mês já tinha superado 80%" – o overnight era uma aplicação de rentabilidade diária oferecida pelos bancos.

Para lidar com todas essas contas, não poderia faltar uma máquina de calcular. Na maior produtora do item na época, Dismac, as vendas dobraram de 1988 para 1989. 

"O telefone também era uma arma para fazer a melhor aquisição. Se fosse o caso, batia-se o martelo e ia lá buscar de imediato", diz Oliveira.

·        Compra por consórcio

Como a compra parcelada era inviável pela imprevisibilidade da inflação, popularizou-se a compra por consórcio, em especial para a aquisição de bens como automóveis e apartamentos.

Essa modalidade ainda existe até hoje, com menos alcance. Os interessados se vinculam a um consórcio para comprar, por exemplo, um automóvel, e depositam mensalmente um valor determinado em um fundo comum com rendimento. São feitos então sorteios periódicos no qual as partes podem fazer lances para receber o bem.

Oliveira diz que nas décadas de 1980 e 1990 ocorriam muitos golpes e falências de empresas de consórcio – para prejuízo dos participantes –, o que forçou posteriormente uma regulação mais rigorosa da atividade pelo Banco Central.

·        Horizonte curto para as empresas

A inflação alta era um transtorno para as decisões empresiarias. Planejar custos e despesas era um desafio com pitadas de adivinhação. Manter o dinheiro investido em aplicações de rentabilidade diária poderia parecer muito mais razoável do que arriscar investi-lo em pesquisa ou ampliação dos negócios.

Ter um grande estoque de produtos era um objetivo comum, já que eles não perderiam valor ao longo do tempo – apesar de isso reduzir a eficiência da operação, pois ter grandes estoques gera custos extras de armazenamento e gestão e imobiliza recursos que poderiam ser usados na ampliação do negócio ou nos esforços de vendas.

As vendas a prazo em muitos casos se mostravam um mau negócio, mesmo com a cobrança de juros e o impulso para desovar mercadorias. Com a inflação galopante, receber dali a trinta dias podia significar perder dinheiro.

Definir os preços era um pesadelo em particular. O empresário Oded Grajew, então dono da indústria de brinquedos Grow, citado por Leitão, disse que seu maior desafio era fazer e atualizar a lista de preços, sob o risco de fazer produtos encalharem ou levar a empresa ao vermelho.

Na era pré-internet, os catálogos impressos eram uma forma eficaz de chegar a um grande número de potenciais consumidores. Mas divulgar o preço de um produto em um papel impresso era também um perigo, mesmo que indicasse um prazo da promoção. Grandes varejistas desistiram do catálogo nos momentos mais agudos da inflação, apesar do potencial de venda.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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