segunda-feira, 1 de julho de 2024

O luto sem fim de famílias de desaparecidos no RS

“Estamos esperando encontrar mais alguém para fazer o velório do Dorly.”

Assim Luana Brino, de 23 anos, resume a angústia de quem aguarda há dois meses o momento de enterrar mais da metade dos parentes, que foram vítimas da maior catástrofe ambiental da história do Rio Grande do Sul.

Em uma única tarde, Luana e o marido, Eduardo Brino, de 24 anos, perderam seis familiares em razão da chuva torrencial que caía desde a véspera.

Três deles ainda estão desaparecidos: Elírio Brino e sua mulher, Erica, ambos de 78 anos; e Janice, de 49.

Eles são os três moradores do município de Roca Sales, no Vale do Taquari, a 142 km de Porto Alegre, que não foram encontrados após temporais e enchentes atingirem a região.

Os três não compartilhavam apenas o sobrenome, mas também o endereço em uma pequena propriedade na localidade de Linha Marechal Hermes, a cerca de 18 quilômetros do centro da cidade, onde a família criava bois e porcos.

Elirio e Erica viviam com o filho, Dorly, de 58 anos, e com a mulher de Dorly, Janice, de 49. Também viviam ali as netas do casal idoso e filhas de Dorly e Janice: Maria Eduarda, 20 anos, e Gabriela, 9 anos.

Dorly e Janice são pais também de Eduardo, que vivia com Luana no município vizinho de Muçum.

Elirio, Erica e Dorly foram vistos pela última vez por volta das 15h30 de 30 de abril.

Nas semanas seguintes à tragédia, equipes do Corpo de Bombeiros encontraram os corpos de Dorly, Maria Eduarda e Gabriela.

Maria Eduarda e Gabriela foram enterradas, mas o corpo de Dorly permanece no Instituto Médico Legal (IML) na esperança de que seja possível velá-lo em companhia dos pais e da mulher.

As buscas pelos desaparecidos prosseguiam até o fechamento desta reportagem.

A dor da perda de tantos parentes é diariamente agravada pela tentativa frustrada de localizar os corpos.

“Agora sou a única pessoa ao lado dele [do marido]”, desabafa Luana à BBC News Brasil.

•           Os últimos momentos da família Brino

Para Luana e Eduardo, a espera é entremeada com lembranças amargas dos últimos contatos com as vítimas.

Horas antes de desaparecer, Janice fez várias ligações por celular para Eduardo para alertá-lo sobre o mau tempo.

“Se cuida”, dizia.

“Ela [Janice] ficava ligando de tempo em tempo para saber como nós estávamos”, conta Luana.

“Moramos em ponto alto da cidade, a enchente não chega até aqui, mas dizíamos a eles que a chuva estava muito forte.”

A família Brino foi soterrada por uma imensa massa de rochas e lama que se desprendeu de um morro na propriedade, cobrindo tudo que existia nas imediações.

A elevação era considerada tão segura que Eduardo e Luana pretendiam construir uma casa no topo e se mudar para lá para ficar junto com os familiares.

Em 29 de abril, uma segunda-feira, quando soou o primeiro alerta vermelho, Eduardo esteve no local para deixar uma carga de blocos de concreto destinados à obra.

O deslizamento, que produziu um estrondo, ocorreu em segundos, de acordo com vizinhos. Eles tentaram, junto com Dorly e Janice, desentupir uma vala nos instantes anteriores à tragédia.

A família não sabe com exatidão o que aconteceu a partir do momento em que um dos vizinhos, que operava um trator, aconselhou Dorly e Janice a suspender o trabalho, porque a água já havia chegado à metade da altura da máquina.

“Vamos ter de abandonar”, teria dito o amigo do casal.

Após se despedirem, Dorly e Janice começaram a descer o caminho de terra que leva à casa, onde se encontravam Elirio, Erica, Maria Eduarda e Gabriela.

“Provavelmente, eles continuaram tentando abrir a vala enquanto desciam”, imagina Luana.

•           Quem são as vítimas ainda desaparecidas

Elírio, Erica e Janice estão entre as 34 pessoas que continuam desaparecidas após as enchentes.

O número é muito menor do que no auge da crise, no dia 10 de maio, quando as autoridades buscavam 146 pessoas em todo o Estado.

No Rio Grande do Sul, 179 pessoas perderam a vida por conta da catástrofe, segundo a Defesa Civil do Estado.

Como costuma ocorrer em catástrofes dessa proporção, o cômputo de desaparecidos decresceu à medida que a chuva amainou e os corpos das vítimas foram localizados.

Assessora da Defesa Civil, a tenente Sabrina Ribas diz que, a partir de agora, o órgão só divulgará boletins quando houver alteração nos números.

Antes, chegaram a ser divulgados três boletins diários com contagem de vítimas.

O maior número de desaparecidos está em Cruzeiro do Sul, a 124 km de Porto Alegre, onde autoridades ainda buscam seis moradores — outros 12 habitantes já foram confirmados entre os mortos no Estado.

Um bairro inteiro, Passo de Estrela, na divisa com o município de Lajeado, foi varrido do mapa pela força das águas do rio Taquari, que atingiu a marca histórica de mais de 33 metros.

Com 23 desaparecidos, o Vale do Taquari, onde estão localizados Roca Sales e Cruzeiro do Sul, responde por 67,6% dos que ainda estão desaparecidos em razão da catástrofe.

Também ainda não foram encontrados moradores de Arroio do Meio (1), Encantado (2), Estrela (1), Lajeado (1), Marques de Souza (1), Poço das Antas (1), Relvado (1) e Teutônia (1).

Porto Alegre, a capital, tem apenas um habitante na lista.

•           Até quando vão as buscas?

O delegado Mario Souza, diretor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Secretaria de Segurança Pública do Estado, afirma que as buscas prosseguirão até que a ocorrência seja arquivada — seja por meio da localização com vida, se forem achados os corpos ou restos mortais das vítimas ou da decretação de morte presumida.

A legislação brasileira prevê a presunção de morte, entre outras situações, quando é extremamente provável que alguém em situação de perigo extremo tenha morrido, mas seus restos não tenham sido localizados.

Nesses casos, a morte é declarada por decisão judicial, a ser requerida depois de esgotadas as buscas pelo corpo. A sentença fixa, no caso de morte presumida, a data provável do óbito.

Desde o início da tragédia, a principal preocupação do Departamento de Homicídios, segundo Souza, foi adaptar o trabalho das equipes para fazer frente ao grande número de registros de pessoas com paradeiro ignorado.

“No dia 6 de maio, aumentamos a estrutura da busca por desaparecidos de um para quatro delegados à frente de quatro equipes”, afirma o diretor.

A partir do momento em que um desaparecimento é informado à Polícia Civil, por meio de um boletim de ocorrência feito em delegacia especializada – que, desde maio, também pode ser feito por WhatsApp ou ligação telefônica para o número 0800-642121 –, a investigação passa por distintas etapas.

A primeira passa pelo contato dos policiais com familiares e amigos. Em um segundo momento, são realizadas buscas de rotina em sistemas de câmeras, bancos e bases de dados das polícias. O estágio final são as diligências nas ruas.

“É um trabalho sensível, complexo, que precisa ser feito com muito cuidado e abrangência. Às vezes, um desaparecimento pode envolver um crime, um problema de saúde, uma situação em que a pessoa não quer ser encontrada ou um suicídio”, diz Souza.

•           Tragédias em sequência

O destino dos Brino exemplifica de forma dramática a participação de Roca Sales na crise gaúcha.

Afetado por enchentes por duas vezes em menos de um ano, o município pagou um preço aproximado em vidas humanas em ambas as ocasiões.

Em setembro de 2023, Roca Sales registrou 16 mortos e nenhum desaparecido. Oito meses depois, o cômputo da Defesa Civil do Estado indica que 12 pessoas pereceram.

Outras três, os Brino, ainda não foram localizadas. Além da distância no tempo, porém, há uma diferença entre os dois episódios: enquanto no primeiro a morte veio pela água, no último impôs-se pela terra.

“Em setembro, todas as 16 vítimas fatais em Roca Sales morreram por afogamento. Em maio, todos foram soterrados”, diz o prefeito Amilton Fontana (MDB).

O Rio Taquari, que banha a região, surpreendeu os moradores em 2023, fazendo com que este ano os alertas da Defesa Civil em relação a cuidados e evacuações tenham sido mais rapidamente seguidos.

“A enchente de maio foi a maior da história. Se as pessoas não tivessem saído, ia dar muita morte”, afirma.

 

¨      Lula deveria olhar para o RS como estratégia: com El Greco e com tudo. Por Tarso Genro

Toda a região metropolitana e a maior parte do território gaúcho – em maior ou menor grau – enfrentam a fúria da natureza em rebelião e a presença constante da morte. Os rios e os arroios querem voltar para os seus cursos imemoriais, apertados nas suas margens por toneladas de argamassa e tiras de asfalto; as raízes das árvores não mais conseguem prendê-las nas terras altas; as hortas, os plantios e as encerras dos animais, são afogadas nas enchentes das novas catástrofes climáticas.

A correta decisão do Governo Federal de tratar, em primeiro lugar, da questão humanitária e iniciar o refinanciamento dos negócios e o financiamento das obras necessárias para que sejam amortecidos os efeitos da catástrofe, foi e é correta. E mais ainda: revelou o liberalismo de opereta de grande parte dos grandes empresários gaúchos, que rapidamente deixaram de lado o seu ódio às funções públicas do Estado Social e recorreram – alguns até com desaforos e mentiras – ao Estado, para repor-se no cenário produtivo e comercial do país.

Vai chegar a hora todavia – acho que em Janeiro de 25 – que a História poderá cobrar da comunidade política gaúcha e especialmente do Governo Federal, qual o papel reservado ao nosso Estado nesta brutal tragédia socioambiental, não somente nas questões humanitárias e de reconstrução, mas também sobre o que ela ensinou ao Estado brasileiro e ao seu Governo nacional para, a partir do Rio Grande, não só recuperar o que foi destruído, mas também sobre o que legaremos para o futuro, como estratégia de construção de um desenvolvimento nacional com inserção global soberana.

Penso que é necessário formatar um novo “bloco histórico” para governar o país e localizo na tragédia que se abateu sobre o Estado essa possiblidade. A do Estado tornar-se tornar dominante – não acessório – na questão climática global e reduzir drasticamente o “estoque” de necessidades que acumula a nossa população. Ela precisa comer melhor, fruir novas fontes de energia alternativa, educar-se melhor, morar melhor, proteger-se melhor e – a partir de uma nova concepção de desenvolvimento – distribuir melhor a renda, promover a pesquisa voltada para novas tecnologias produtivas e induzir – a partir do Estado – uma construção socioambiental ecologicamente equilibrada.

Tudo isso já era sabido, mas o que tem de novo é que a tragédia que nos assola nos dá a oportunidade de reconstruir o Rio Grande e ajudar o Brasil a reerguer-se do negacionismo estatal e ambiental do bolsonarismo criminoso, ainda instalado em nosso meio. O olhar de El Greco, desconfiando da eternidade e a genialidade de Turner, abordando a dramaticidade da luta para controlar a naturalidade, pode nos dizer muito sobre isso.

A construção de um modelo socioambiental correto para o Estado, aproveitando as suas carências e potencialidades também abrirá novos horizontes para o Mercosul e recolocará o Rio Grande no bloco “paulista-norte-nordestino”, que tem mais influência sobre os destinos da Federação desde há muitas décadas. Desde a deposição de João Goulart, aliás, em função do déficit da nossa estrutura política o Rio Grande tem sido objetivamente subestimado na sua capacidade de ajudar-se ajudando o Brasil.

A beleza trágica de um quadro de Turner, que viveu entre 1775-1881, exposto no Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa (um óleo sobre tela nominado “Naufrágio de um Cargueiro”) pode ilustrar a síntese perfeita de uma – das duas características – da grande arte pictórica da humanidade. A primeira delas está nesse quadro de Turner, de 1810, que mostra a luta dos humanos para subordinar as forças da natureza ao seu desejo de conquista, a partir do que estes, à época, concebiam como progresso.

No quadro, a rebelião das ondas, a velocidade cruel dos ventos e as costas rochosas impassíveis, vencem toda a ciência e toda a técnica, dispostas na construção do cargueiro que naufragará. O “afastamento” de todas as barreiras da natureza, para que os humanos imperem sobre ela, controlem as suas regras insondáveis a olho nu e dominem os seus impulsos, todavia, é uma experiencia de milênios.

A racionalidade moderna adaptou esta experiencia, tanto em valores materiais (o dinheiro, a propriedade) como imateriais (a ciência e a arte) e construiu as narrativas dos futuros, ora épicos, ora trágicos. Sua “razão”, porém – neste momento – está exposta como decadência em Porto Alegre, num só monumento de destruição negacionista e ultraliberal da capital: é o “Muro da Mauá”. O muro é uma síntese do vírus ideológico da extrema-direita, destrutivo da solidariedade social e da empatia que, combinado com o ultraliberalismo econômico solapa as bases de uma coesão social mínima para a construção de um destino comum.

A precariedade criminosa da sua manutenção é – ela mesma – um totem do negacionismo climático e as “obras de arte”, nele desenhadas – financiadas pelos donos da cidade para homenagearem a si mesmos – é a exploração dos limites entre o grotesco e a idiotia publicitária, através do qual eles querem – pela força do dinheiro – registrar para o mundo a sua passagem na vida, com poderes sobre a vida, a morte e a moradia dos habitantes de Porto Alegre.

Na guerra para dominar a natureza com as virtudes do progresso, nossos empresários e seus pintores não puderam fazê-lo com uma grande arte, dotada de uma dolorosa força civilizatória ascendente, como foram – por exemplo – os desenhistas das Pirâmides egípcias, construídas pelos humanos da época, submetidos à escravidão. Nem nossas obras físicas foram concebidas como as obras de irrigação dos Aztecas, que submetiam o fluxo das águas – originárias de fontes naturais – para fazer uma cuidadosa compensação natural, para os humanos sobreviverem à escassez e às intempéries pré-colombianas.

Diferente do aristocrático El Greco, que viveu entre 1541 e 1614) autor do espetacular “O enterro do Conde de Orgaz” (pintado em 1587) que tratava da dupla dimensão da vida – uma terrena e factual e a outra celeste e eterna – Turner concebe a natureza como um inimigo a ser vencido na luta pela sobrevivência.

Em El Greco, ao contrário, os Santos do céu baixam para receber o Conde, mas ele parece olhar para a vida eterna com o medo de quem não quer testá-la. Parece que com seu olhar mortiço, se pudesse, evitaria a morte e não apreciaria subir da terra para uma eternidade celeste puramente presumida.

O confronto com a morte e o confronto com a natureza são “valores” sempre renovados no cotidiano e na História dos humanos, pois não gratuitamente eles percorreram a História do Renascimento e todas as revoluções posteriores até chegaram aos nossos dias com os traços mais cruéis e desatinados do “capitalismo” liberal-rentista: é o ciclo histórico em que o domínio do homem sobre a natureza e o seu negacionismo climático já se tornaram tão perfeitos que conquistaram o senso comum na promessa de extinção da Humanidade trocada pelo progresso infinito.

Ter a morte coletiva como uma perspectiva previsível e “natural” – já fixada como um degrau definitivo do futuro – (uma segunda natureza incapaz de ser contornada por decisões políticas) é uma grande conquista da extrema-direita global, que se refletiu – aqui em nosso Estado – no monumento-síntese do Muro Mauá, transformado em outdoor. O descaso com a sua manutenção e a idiotia da sua “arte”, reverenciando os usufrutuários absolutos da cidade, diz mais do que as Pirâmides diziam dos Faraós, numa civilização escravista ascendente. Ele, o Muro, fez transparecer a alma do capital sem freios, devorando o que resta de solidariedade humana, ao que tudo indica já no ocaso desta forma fraturada de democracia liberal.

 

Fonte: BBC News Brasil/Sul 21

 

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