quarta-feira, 31 de julho de 2024

Na Amazônia, hotéis de selva adotam agenda ESG e comunidades trocam extração de madeira por ecoturismo

“Quando chegamos em Novo Airão (AM) para construir um hotel de selva há 18 anos, políticos locais reclamavam que mais de 80% da área do município está localizada em unidades de conservação ambiental. Para eles, isso era um empecilho para o desenvolvimento da região. Hoje o discurso é: ‘Somos o paraíso ecológico da Amazônia’”, afirma Guto Costa Filho, sócio operador do Anavilhanas Jungle Lodge, hotel a 180 quilômetros da capital Manaus. Para ele, a mudança evidencia uma maior percepção de que a floresta de pé tem valor. “Isso é o que os turistas buscam quando vêm para cá”, aponta.

Vindos de São Paulo, Guto e sua esposa e também sócia, Fabiana Caricati, abriram o estabelecimento nas margens do Rio Negro em 2007. Com 24 apartamentos em uma área de 520 hectares de floresta preservada, o hotel fica em frente ao Parque Nacional de Anavilhanas, um arquipélago fluvial de 400 ilhas reconhecido pela Unesco como patrimônio natural da humanidade.

Oferecendo guias nativos bilíngues que levam a passeios como avistamento de botos e trilha na floresta, serviços de hotelaria de luxo e uma gastronomia sofisticada com ingredientes regionais, o local foi elogiado logo no primeiro ano de funcionamento em reportagem de turismo publicada no jornal The New York Times e já recebeu personalidades como o fundador da Microsoft, Bill Gates, e a atriz americana Julianne Moore.

Em 2023, o Anavilhanas Jungle Lodge recebeu o certificado de empresa do Sistema B, que atesta o alinhamento com algumas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG). Contou pontos para isso o fato de ser o maior empregador privado de Novo Airão, município de 16 mil habitantes onde existem apenas 227 trabalhadores formais, segundo o último levantamento do Ministério do Trabalho, de 2019.

O hotel possui 124 funcionários com carteira assinada (85% deles locais) e paga salários acima da média do Estado: uma camareira recebe R$ 3.184, sendo que o piso da categoria no Amazonas é de R$ 1.377. Entre os benefícios adicionais estão 14º salário e empréstimos sem juros para funcionários.

“Embora infelizmente estamos longe de erradicar a pobreza no município, proporcionamos uma redução dela ao gerar grande parte dos empregos formais diretamente no hotel e indiretamente nos fornecedores locais, como mercados, quitandas e lojas de artesanato, que hoje representam mais de 50% de todas as nossas compras”, afirma Fabiana. No hotel, os salários são iguais para homens ou mulheres na mesma função e 67% dos cargos de gestão e supervisão (os de maior remuneração) são ocupados por mulheres.

Por meio de seu instituto, o Anavilhanas construiu uma escola e uma biblioteca na região. Também equipou com freezer e gerador de energia a escola e envia periodicamente frutas e verduras para a merenda escolar das comunidades ribeirinhas do entorno. Além disso, oferece aulas de inglês para as crianças.

“Enviamos alimentos para que as crianças tenham uma dieta diversificada e incentivamos as comunidades para que façam suas hortas”, explica José Verneck, coordenador de Sustentabilidade do hotel. “Isso atraiu alunos de outras comunidades para nossa escola”, adiciona Rosinete de Oliveira, liderança da Comunidade Santo Antônio, que recebe hóspedes do hotel interessados em conhecer mais da região.

Em questões ambientais, o Anavilhanas Jungle Lodge construiu uma usina solar fotovoltaica, que é hoje responsável por gerar 58% da energia consumida no local. O aquecimento da água, armazenada em boilers, é feito por painéis solares. Para evitar garrafinhas de plástico, o hóspede recebe uma garrafa térmica para abastecê-la ao longo de sua estadia com água potável filtrada do poço.

As lixeiras têm sacolas de papel kraft e os shampoos e condicionadores ficam em dispensers, reduzindo o consumo de embalagens. No restaurante, a preocupação é direcionar 100% dos resíduos orgânicos para composteiras, de onde sai o adubo usado para o cultivo de legumes e verduras produzidos no sítio agroecológico e que abastecem a cozinha do hotel. O esgoto é tratado em fossas biológicas e a retirada do lodo é feita por empresas certificadas.

“Nosso propósito é manter a floresta de pé, potencializando o desenvolvimento sustentável da região e incentivando pessoas de todo o mundo a se juntarem à nossa causa. Já recebemos mais de 51 mil hóspedes e acreditamos que muitos deles também se tornaram embaixadores da floresta amazônica de pé”, afirma Fabiana.

•        De olho na COP 30

Com a proximidade da 30ª Conferência do Clima das Nações Unidas (ONU), a COP 30, em novembro do ano que vem em Belém (Pará), o potencial turístico da Amazônia como um todo tende a aumentar. Segundo estimativas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é esperado um fluxo de mais de 40 mil visitantes para a região durante os principais dias da conferência. Deste total, 7 mil são integrantes de equipes da ONU e das delegações dos países membros.

“Um evento do porte da COP 30 tem a capacidade de movimentar a economia de toda a região não apenas durante o evento, mas também promovendo uma visibilidade antes e depois”, afirmou o Ministério do Turismo a Um Só Planeta, por meio de sua assessoria de imprensa.

Dubai, sede da COP 28 em 2023, citada como exemplo, registrou recorde de turistas em 2023, com 17,15 milhões de visitantes internacionais ao longo do ano, crescimento de 19,4% em relação ao ano anterior. As atividades turísticas também tiveram aumento de receita, passando de uma movimentação de 10 milhões de dirhams (moeda local) em 2022 para 11,1 milhões em 2023.

No último dia 12 de junho, Guto Costa Filho, sócio-operador do Anavilhanas Jungle Lodge e do Hotel Villa Amazônia, e outros representantes do Amazonas Cluster de Turismo (associação que reúne 38 empresas do ramo) se reuniram com o presidente da Embratur, Marcelo Freixo, em Brasília. Na ocasião, foi assinado um acordo para troca de informações estratégicas para o fomento do turismo na região e a divulgação do destino Amazônia em feiras e eventos no exterior. Estão previstas, por exemplo, uma ação de promoção em setembro, em Nova York, e outra em novembro, durante a 29ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP 29, em Baku, no Azerbaijão.

“Estamos de olho no público que vem para a COP 30. O evento vai movimentar toda a região amazônica, já há uma dinamização importante acontecendo ali. Nessa reunião com o trade turístico do Amazonas, eles contaram que já estão com hotéis ocupados para grupos de ONGs que vão para lá fazer o planejamento para a reunião sobre o clima antes de seguir para Belém, no Pará”, afirmou a Um Só Planeta o presidente da Embratur, Marcelo Freixo.

•        Novas rotas aéreas

A falta de conexões aéreas é apontada como um dos principais gargalos que dificultam o turismo na Amazônia. Para melhorar o cenário, a Embratur, em articulação com o governo do Estado do Amazonas e o Ministério do Turismo, anunciou a retomada de um voo da companhia aérea portuguesa TAP conectando Lisboa, em Portugal, a Manaus e Belém a partir de novembro.

“Com isso, a gente reconecta a Amazônia ao mercado europeu. É muito mais razoável do que chegar em São Paulo para ter que subir para a região Norte. Isso tem enorme relevância para qualquer perspectiva do turismo para a região”, observa Freixo. A meta agora é conseguir voos diretos de Miami e Nova York, nos EUA, para Manaus e Belém, portas de entrada para o turismo na Amazônia.

Outro desafio é desconstruir estereótipos em relação ao que será encontrado. “Você não vai ficar amigo de uma onça nem vai virar o Tarzan. Mas há uma cultura amazônica que tem a ver com os guias caboclos, com a cultura tradicional, a gastronomia e os saberes. Esse é o produto que a gente precisa trabalhar lá fora”, destaca Freixo. “Temos exemplos de países vizinhos, como o Peru e a Colômbia, que souberam fazer bem esse trabalho”, acrescenta.

•        Da extração de madeira para o turismo de base comunitária

Além do turismo de luxo, o desenvolvimento do turismo de base comunitária, de povos ribeirinhos, quilombolas e indígenas, também tem potencial de crescer na Amazônia

“O turismo de luxo é importante, ele traz receita e desenvolve regiões, mas queremos também o turismo de base comunitária. Ele é mais acessível para quem tem menos poder aquisitivo e a riqueza fica com a população local”, destaca o presidente da Embratur.

Um dos exemplos bem-sucedidos de empreendimento de turismo de base comunitária está na Reserva de Desenvolvimento do Rio Negro, a pouco mais de uma hora de barco de Manaus: a Comunidade Tumbira. Ali o ex-madeireiro Roberto Brito de Mendonça administra com a família uma pousada, um restaurante e casas de comunitários para hospedar visitantes, totalizando 60 leitos. São oferecidas atividades como trilha na mata, acampamento na selva, passeio por praias de rio e pelo Parque Nacional de Anavilhanas, canoagem em igarapés e igapós e oficina de artesanato.

“No ano passado, recebemos 554 turistas e tivemos um faturamento bruto de 420 mil reais. Poderia ter sido mais, se não fossem os três meses de seca que interromperam as atividades”, conta Brito. A chegada de visitantes fomenta o comércio, o artesanato, a pesca e a produção de farinha local. “Hoje 70% da renda da nossa comunidade, formada por 40 famílias, vem do turismo”, afirma o líder comunitário.

A receita gerada é usada para compra de equipamentos, como aparelhos eletrônicos, barcos e pagar serviço de acesso à internet. O plano agora é expandir a capacidade de hospedagem e investir em educação para receber visitantes estrangeiros.

“A ideia é que mais famílias da comunidade ofereçam suas casas para receber quem vem de fora. Também pretendo pagar aulas para cinco jovens aprenderem a falar inglês. Hoje só recebemos turistas brasileiros porque ninguém daqui domina a língua inglesa”, conta Brito.

Para Virgilio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), ONG que atua na região, o principal desafio para desenvolver o turismo nas comunidades ribeirinhas é formar pessoas que antes viviam da extração ilegal da madeira, da pesca e da agricultura para atuar na indústria de serviços. “Gente que nasceu sem luz elétrica, que vive em condições muito difíceis e que precisa receber uma formação. É sair de uma situação do século 19 para entrar no século 21”, afirma.

Com avô e pai madeireiros, Roberto Brito trabalhou mais de 20 anos com a extração ilegal de madeira antes de migrar para o turismo em 2010. “Antes eu passava a semana toda dormindo no meio do mato, derrubando a floresta para tirar meu sustento. Era o que tinha para fazer na época”, afirma. “Hoje eu vivo em harmonia com a floresta e faço uma atividade que é muito mais prazerosa e que me dá muito mais qualidade de vida”, acrescenta.

•        Mentoria e capacitação

A Comunidade Tumbira recebe o apoio da FAS, que tem um programa de empreendedorismo com foco em turismo sustentável. “Apoiamos 24 restaurantes e pousadas em diferentes comunidades da Amazônia. Fazemos mentoria e oferecemos cursos de capacitação, qualificação e acesso ao mercado, porque o turismo exige uma preparação para atender as pessoas”, afirma Wildney Mourão, gerente de Empreendedorismo e Negócios Sustentáveis da FAS.

Tumbira também costuma receber grupos de estudantes interessados em vivenciar a cultura amazônica e conhecer a floresta. Muitos deles vêm de longe - estudam em escolas de elite do Sudeste, como o Colégio Santa Cruz, de São Paulo, e o Escola Parque, do Rio de Janeiro. “Recebemos alunos de 17, 18 anos. De um grupo de 60 alunos, entre 15 e 20 estão bem interessados em interagir, aprender e levar nosso conhecimento para a cidade deles. Isso é importante porque uma viagem como essa pode influenciar as futuras decisões deles como gestores”, aposta Brito.

O ex-madeireiro conta que só estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, mas que o turismo sustentável lhe abriu uma série de oportunidades. “Quando larguei a motosserra há 14 anos, a palavra sustentabilidade era difícil até de eu pronunciar. Hoje dou palestra na sede da ONU e na Universidade de Columbia, em Nova York”, diz o empreendedor. “Cuidar da Amazônia é um desafio porque ela não é só mato, rio e peixe. Tem seres humanos que vivem ali. Se você não oferece alternativas para eles, não consegue proteger a floresta”, resume.

•        Desafios

Mourão destaca que o empreendedor da floresta enfrenta três grandes desafios estruturais, com problemas de logística, energia e comunicação. “Ele já larga no 3 a 0”, afirma. Na avaliação de William Soares, presidente da Comunidade Tumbira, o principal entrave é o alto custo do transporte. “Aqui a gente se locomove de barco, nossas estradas são os rios e o combustível é muito caro. Para uma viagem de pouco mais de 1 hora de lancha da comunidade até Manaus, você não gasta menos de 1.000 reais de gasolina”, conta.

Falta de energia elétrica e de acesso à internet são outros problemas recorrentes. “Só agora as comunidades começaram a ter acesso a energia elétrica. Muitas vezes, o fornecimento é irregular e, quando tem algum dano no cabeamento, a manutenção leva dias. Imagina para um empreendedor que precisa conservar a carne na geladeira? São desafios estruturantes, que exigem articulação de políticas públicas”, afirma Mourão. Outra dificuldade é o acesso a crédito para populações que não têm histórico bancário, como é o caso dos ribeirinhos.

•        Políticas públicas

O Ministério do Turismo aponta que os esforços para desenvolver o turismo amazônico envolvem ações não só do governo federal, mas também dos governos estaduais e municipais e da iniciativa privada. No momento, as atenções do governo federal estão voltadas para a COP 30 em Belém, no Pará. O governo federal instituiu, junto à Casa Civil, a Secretaria Extraordinária para a COP 30, que coordena a preparação para a conferência sobre o clima e que tem, entre seus objetivos, fortalecer o turismo na região Norte como um todo.

Segundo o ministério, o novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) prevê R$ 38,7 bilhões para rodovias, pontes e pavimentação na região. Estão previstos, ainda, R$ 8 bilhões para ferrovias e melhoria de aeroportos locais. No início do mês foi anunciado um aporte de R$ 40 milhões para infraestrutura e hotelaria na capital paraense e em diversos municípios vizinhos, visando acolher melhor os visitantes. Os recursos se somam aos R$ 100 milhões liberados pelo Fundo Geral de Turismo para a concessão de financiamentos para a preparação da COP 30.

Na avaliação de Freixo, o turismo sustentável pode ser um motor para o desenvolvimento de uma economia da Amazônia, gerando empregos, preservando a floresta e fortalecendo a cultura local. “Muita gente fala que temos que combater o garimpo ilegal na Amazônia. Todos concordamos com isso, mas é preciso criar uma alternativa econômica para quem vive lá. O turismo é uma economia legal onde a economia ilegal ainda é muito forte”, afirma o presidente da Embratur. "A COP 30 vai ser a oportunidade de avançarmos nessa pauta e mostrarmos ao mundo o potencial turístico da região", destaca.

 

Fonte:  Um só Planeta

 

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