Miguel
Nicolelis: A nova pandemia silenciosa
À
primeira vista, a manchete pode parecer quase surreal, mas os números trazidos
à tona por um artigo recentemente publicado pela revista Lancet Neurology,
apesar de estarrecedores, não deixam qualquer dúvida.
Produzido
pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME sigla em inglês), uma
organização voltada para à pesquisa em saúde pública, baseada na Faculdade de
Medicina da Universidade de Washington, na cidade de Seattle nos Estados
Unidos, o trabalho, como parte do Estudo do Impacto Global de Doenças (do
inglês Global Burden of Disease (GBD)), este trabalho estimou que no ano de
2021 cerca de 3,4 bilhões pessoas ao redor do mundo (ou 43% da população
global) sofriam com pelo menos uma das 37 doenças neurológicas incluídas na
pesquisa.
No
mesmo ano de 2021, o mesmo estudo estimou que 11,1 milhões de pacientes
morreram como resultado de doenças neurológicas. Como esta pesquisa não incluiu
na sua estimativa as várias doenças psiquiátricas de alta prevalência, como
depressão e ansiedade crônica, que no total acometem algo em torno de 1 bilhão
de pessoas em todo o mundo, o valor real da população mundial sofrendo de
alguma doença do sistema nervoso em 2021 pode ter atingindo algo entre 4-5
bilhões de pessoas. Quer dizer, aproximadamente 1 de cada 2 pessoas que estavam
vivas em 2021 sofriam de algum distúrbio neural.
Para
chegar à esta cifra alarmante, o IHME se valeu de uma colaboração de milhares
de pesquisadores, espalhados por todo o mundo, que coletivamente estimaram a
prevalência, mortalidade, morbidade, em termos de anos de vida perdidos ou
impactados por estas doenças cerebrais, num total de 204 países.
Um
dos achados mais importantes do estudo foi a constatação que a distribuição
descrevendo o impacto (em anos de vida) das doenças neurológicas exibe dois
picos fundamentais: um muito intenso nos primeiros dois anos de vida e um outro
que começa a sua ascensão a partir dos 60 anos de vida e define o maior número
de pessoas afetadas. Mesmo assim, as
doenças neurológicas pediátricas e do desenvolvimento neural, como autismo e
déficit de atenção, representaram 18.2% do impacto em termos de incapacidade de
longo prazo.
No
cômputo geral, estimou-se que em 2021 o mundo possuía 1,2 bilhões de pessoas
(quase a população da China) sofrendo de enxaqueca, 206 milhões (todo um
Brasil) com neuropatia diabética, 93.8 milhões com acidentes vasculares
cerebrais (ou derrame), 84,8 milhões com distúrbio de atenção, 61,8 milhões com
autismo, 57 milhões com doença de Alzheimer e outras demências, 38 milhões com
injuria traumática cerebral, 24 milhões com epilepsia, 15 milhões com lesões da
medula espinhal, e 11 milhões (toda uma cidade de São Paulo) com doença de
Parkinson. Estimou-se também que 23,4 milhões de pessoas em 2021 foram
acometidas por sequelas neurológicas crônicas da Covid-19, como distúrbios
cognitivos e síndrome de Guillain-Barré.
Estes
números assombrosos claramente definem a existência de uma pandemia totalmente
silenciosa, uma vez que ela não mereceu nenhum tipo de cobertura da mídia
internacional ou qualquer tipo de esforço global, visando não só conter a sua
expansão, mas também oferecer novas formas de tratamento e acompanhamento
daqueles já atingidos. De fato, um outro estudo do IHME revelou que apenas 46
(24%) dos 194 países estudados em 2017 possuíam algum tipo de política pública
voltada exclusivamente para o manejo adequado de doenças neurológicas. Tal
omissão é extremamente significativa quando se sabe que, por exemplo, 84,2% dos
efeitos de longo prazo que acometem vítimas de derrames, a primeira causa de
incapacidade produzida por uma doença neurológica em 19 das 21 regiões mundiais
analisadas em 2021, podem ser prevenidas a partir da redução à exposição de 18
fatores de risco previamente identificados.
Claramente,
a abordagem tradicional, utilizada até hoje, para o manejo clínico de doenças
neurológicas não tem como atingir a escala necessária para tratar e reabilitar
metade da população mundial. Não existe sistema público – muito menos privado –
de saúde atualmente, em nenhum lugar do mundo, que possa dar conta deste
verdadeiro tsunami neurológico que, infelizmente, tende a crescer ainda mais,
dado o enorme potencial de expansão de uma vasta gama de doenças mentais
decorrente do modo de vida moderno. Assim, novas terapias, novas abordagens de
manejo clínico, do pré-natal de gestantes e por toda a vida dos pacientes,
novos protocolos de reabilitação, e mesmo novas formas de atendimento clínico à
distância, como a criação de verdadeiros hospitais e centros de
neuroreabilitação virtuais, terão que ser implementadas nos próximos anos e
décadas.
Mas
por onde começar? Onde encontrar o fio da meada deste labirinto neural?
Curiosamente,
ao ler o trabalho do IHME em março de 2024, eu imediatamente me lembrei que
agora em 2024 comemoram-se três datas marcantes que vão diretamente de encontro
da ponta do fio da meada desta verdadeira encruzilhada em que o Brasil, como
todos os países do mundo, se encontrará por muitos anos. Exatamente 25 anos
atrás, em julho de 1999, num trabalho publicado na Revista Nature Neuroscience,
o meu grande mentor e companheiro de trincheiras neurocientíficas, professor
John King Chapin, e eu anunciamos uma invenção que, um ano depois, eu batizei
de interfaces cérebro-máquina.
Tal
tecnologia multidisciplinar, permitiu a animais ou seres humanos usar a
atividade elétricos dos seus cérebro para controlar os movimentos de artefatos
robóticos, eletrônicos (como um cursor de computador), ou mesmo de corpos
virtuais apenas com o pensamento. Pois bem, 15 anos depois desta publicação, ou
10 anos atrás, na tarde do dia 12 de junho de 2014, esta invenção, na sua forma
não invasiva (sem precisar implantar nada dentro do cérebro de alguém),
permitiu que um jovem paraplégico brasileiro, Juliano Pinto, desferisse o chute
inaugural da Copa do Mundo de Futebol do Brasil, usando um exoesqueleto
robótico de membros inferiores, controlado apenas pelo seu pensamento. Tal
feito, sem precedentes, foi acompanhado por uma audiência global estimada em 1,2
bilhões de pessoas (quase uma China toda).
Para
minha felicidade, uma bela reportagem da CNN Brasil comemorou este décimo
aniversário recentemente.
Todavia,
para que este chute mental fosse realizado em solo brasileiro, foi preciso
criar, exatamente 20 anos atrás o Instituto Internacional de Neurociências
Edmond e Lily Safra (IINELS), situado no Campus do Cérebro de Macaíba, uma
cidade da região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte, hoje gerido
pelo Instituto Santos Dumont. Sem o IINELS, o Projeto Andar de Novo, o
consórcio internacional sem fins lucrativos, formado por mais de 150
colaboradores, oriundos de 25 países, jamais teria conseguido implementar uma
interface cérebro-máquina e desenvolver o primeiro exoesqueleto robótico,
controlado diretamente pela mente humana, a tempo da abertura da Copa 2014.
Além de pesquisas na área de neuroengenharia, o ISD oferece um programa de
pré-natal completo e totalmente gratuito para gestantes de alto risco da região
metropolitana de Natal. Apenas em 2023, foram mais de 60 mil consultas
realizadas pelo Centro de Educação e Pesquisa em Saúde do Anita Garibaldi do
ISD.
Sem
nem mesmo saber à época, tanto o protocolo de neuroreabilitação, desenvolvido
pelo Projeto Andar de Novo, que até hoje permitiu que dezenas de pacientes
paraplégicos mundo afora voltassem a sentir o prazer incomensurável de voltar a
caminhar eretos, depois de anos presos à uma cadeira de rodas, como o
estabelecimento do programa de pré-natal do ISD, podem oferecer um verdadeiro
primeiro passo para se encontrar o fio da meada e, quem sabe, começar a
desenrolar o emarando desafiador imposto pela explosão dessa nova pandemia.
Eu
digo isso porque a combinação destes dois protocolos – de pré-natal de alto
nível e de neuroreabilitação – são a chave para abordar os dois lados da
distribuição de casos obtida pelo IHME no seu estudo de doenças neurológicas.
Foi com este intuito que, recentemente, eu criei um novo consórcio
internacional, denominado “Treat 1 Billion” (Tratar 1 Bilhão, na língua
Pátria), com o intuito de estabelecer uma rede de colaboradores por todo o
mundo que visa introduzir novas terapias – como as interfaces cérebro-máquina
não invasivas – novos protocolos de neurorehabilitação e até mesmo novas
estratégias de atendimento em grande escala , baseado num novo conceito de
telemedicina, com o objetivo, a longo prazo, de construir barreiras que possam
mitigar os danos causados por este verdadeiro diluvio neurológico.
Tudo
isso, quem diria, em apenas um quarto de século! Graças a uma ideia de boteco –
ligar cérebros às máquinas –, um chute de Copa do Mundo, e uma palmeira chamada
Macaíba.
Como
dizia Fernando Pessoa, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”!
Sim,
senhor Fernando! Valeu muito a pena!
Fonte:
CNN Brasil
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