Fernando Nogueira da Costa:
‘Socialdemocracia — estágio na transição sistêmica’
Alcançar uma condição
de social-democracia em um país subdesenvolvido requer uma abordagem gradual e
adaptada às circunstâncias específicas de cada nação. Por isso, surgiu a
expressão social-desenvolvimentismo para designar os adeptos de uma adequação
dessas experiências europeias ao contexto latino-americano, aliás, bastante
diferenciado entre o Brasil e as nações vizinhas, além das demais até o México,
vizinho de uma potência hegemônica arrogante, mas em processo de atingir o
ranking dos dez maiores PIBs mundiais, como já é o caso brasileiro.
Algumas etapas e
considerações úteis nesse processo são as seguintes. O Brasil, sob governos sob
a hegemonia negociada de um partido de origem trabalhista com os demais
aliados, busca implementar políticas de modo a promover o crescimento econômico
inclusivo, redistribuindo os benefícios do desenvolvimento para toda a
população, em vez de concentrá-los em uma elite.
Para tanto, tem de
priorizar investimentos em educação de qualidade, cuidados de saúde acessíveis
e outras políticas sociais capazes de reduzirem a desigualdade e promoverem a
mobilidade social. Sem o fortalecimento das instituições democráticas, com o
fortalecimento do Estado de Direito, ao contrário do governo
neofascista-neoliberal anterior, não garante as instituições democráticas com o
respeito aos direitos humanos, à independência do Poder Judiciário e ao combate
à corrupção.
A participação cidadã
ainda é frágil no Brasil. Cabe então ao atual governo, eleito democraticamente
por uma pequena maioria, promover a participação ativa da sociedade civil na
tomada de decisões políticas e no monitoramento do próprio governo para garantir
transparência e responsabilidade.
As políticas de
bem-estar social, exigidas para o alcance da socialdemocracia como uma etapa da
transição sistêmica rumo a um novo modo de produção, talvez apelidado de
“socialista”, exigem cuidados da seguridade social. Significa implantar
sistemas abrangentes de seguridade social de modo a garantir a proteção contra
a pobreza, o acesso a cuidados de saúde, educação e previdência social para
todos os cidadãos.
A redistribuição de
renda é até mais fácil diante da dificílima redistribuição de riqueza, caso se
considere a acumulada ao longo da vida ativa de muitos trabalhadores. É
necessário o debate público esclarecer e distinguir a “sorte do berço” do
esforço individual de acumulação de riqueza para a aposentadoria e a ajuda aos
seus herdeiros.
Nesse sentido, adotar
políticas fiscais progressivas capazes de tributarem os mais ricos e
redistribuírem a renda para financiar serviços públicos e programas sociais
deve passar por um debate no Congresso Nacional. A faixa dos bilionários do
segmento Private Banking, capazes de serem tributados sem sentir a diferença
(“depois de um bilhão de dólares não se pensa em consumismo barato”) deve ser
distinguida da classe média do Varejo de Alta Renda.
Para essa construção
nacional de uma sociedade mais igualitária, é necessário o diálogo social e
negociação coletiva. No caso das relações trabalhistas, é necessário promover o
diálogo social entre empregadores, trabalhadores e governo para negociar condições
de trabalho justas, salários dignos e proteção social para os trabalhadores.
Embora decadente, por
causa das reformas neoliberais do governo golpista (2016-2018) com o corte das
verbas dos sindicatos, ainda cabe apoiar a negociação coletiva entre sindicatos
e empregadores para garantir direitos trabalhistas e condições de trabalho
decentes. O maior desafio diz respeito às novas gerações de microempreendedores
“urberizados” e “pejotizados”, pois são superexplorados, seja em extensão de
jornadas de trabalho, seja em carência de direitos trabalhistas.
Um problema é ter a
visão larga nacional para a redução de disparidades regionais. É necessário
implantar políticas de desenvolvimento regional e urbano de modo a reduzir as
disparidades econômicas entre áreas urbanas e rurais, promovendo o crescimento
inclusivo e a equidade territorial. Novamente, “fácil de falar, difícil de
fazer”.
Para investir em
infraestrutura urbana, habitação acessível e transporte público para promover o
desenvolvimento sustentável das cidades, para melhorar a qualidade de vida dos
habitantes urbanos é necessário… dinheiro! Verbas! São disputas na aprovação dos
orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios.
A “salvação da pátria”
é colocada por muitos na cooperação internacional. Serve até para países
pequenos, mas não para gigantes como o Brasil.
A assistência ao
desenvolvimento busca apoio e cooperação internacional, tanto financeiro quanto
técnico, de organizações internacionais, países desenvolvidos e agências de
desenvolvimento para fortalecer as capacidades institucionais e promover o
progresso social e econômico. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente… é
melhor confiar na integração regional.
Para tanto, participar
ativamente de blocos regionais e acordos de cooperação para promover o comércio
justo, a integração econômica e o desenvolvimento conjunto de maneira a apoio
mútuo junto a todas as nações latino-americanas talvez seja “a salvação da
lavoura”, isto é, a promoção do comércio continental. Países abaixo da linha do
Equador se encontram distantes das Cadeias Globais de Valor (CGV) do Norte
rico. Talvez seja mais barato comercializar com a África…
Enfim, a transição
para uma condição de social-democracia em um país subdesenvolvido requer um
compromisso de longo prazo com políticas progressistas, instituições
democráticas fortes e investimentos em desenvolvimento humano e bem-estar
social. É um processo gradual exigente de uma abordagem multifacetada e
adaptada às necessidades e realidades específicas de cada país.
Através de políticas
inclusivas e participativas, é possível alcançar um desenvolvimento econômico e
social sustentável de modo a beneficiar toda a população. Não será fácil,
tampouco em curto prazo, no mandato de um governo progressista. Exige seguidas reeleições
de governos de Frente Ampla com aliados igualmente com essa pretensão
social-desenvolvimentista.
A social-democracia
nem o social-desenvolvimentismo exige, necessariamente, a estatização completa
dos meios de produção, como equivocadamente ocorre em sistemas socialistas mais
radicais. Em vez disso, a social-democracia se baseia em um sistema econômico
misto, como o chinês, capaz de combinar elementos de mercado com uma ampla rede
de proteção social e intervenção estatal para garantir o bem-estar da
população.
A maioria dos meios de
produção permanece nas mãos de empresas privadas. Operam com base no lucro e na
competição de mercado.
O governo desempenha
um papel ativo na regulação da economia, implantando políticas para corrigir
falhas de mercado, promover a igualdade de oportunidades e proteger os direitos
dos trabalhadores e consumidores. Mas ele não elimina a propriedade privada nem
tampouco a intervenção estatal obstrui os negócios privados legais.
Em alguns casos,
setores considerados estratégicos para o interesse público, como energia,
transporte, saúde e educação, costumam ser pelo menos parcialmente estatizados
para garantir acesso universal e equitativo a esses serviços. O Estado mantém a
participação ou o controle em empresas públicas com prestação de serviços
essenciais, mas também podem existir empresas privadas concorrentes nesses
setores.
A social-democracia,
bem como o social-desenvolvimentismo, promove uma ampla rede de proteção
social, que inclui seguro-desemprego, saúde pública, educação gratuita,
aposentadoria e outros benefícios sociais financiados pelo Estado. Políticas
trabalhistas, como salário mínimo, limites de horas de trabalho, licenças
parentais e proteção contra demissões injustas, são estabelecidas para proteger
os direitos dos trabalhadores e garantir condições de trabalho dignas.
Quanto à
redistribuição de renda, impostos progressivos são aplicados para financiar
programas sociais e reduzir a desigualdade de renda, garantindo uma
distribuição mais equitativa da riqueza e oportunidades. O governo implanta
regulamentações para controlar o sistema financeiro, prevenir abusos e garantir
a estabilidade econômica e o acesso ao crédito para indivíduos e empresas.
Embora a
social-democracia e o social-desenvolvimentismo possam envolver alguma
estatização seletiva de setores estratégicos e uma forte intervenção estatal na
economia, não exigem a estatização completa dos meios de produção. Em vez
disso, ambos regimes buscam um equilíbrio entre o mercado e o Estado, com o
objetivo de garantir o bem-estar da população, promover a igualdade de
oportunidades e mitigar as desigualdades sociais e econômicas.
• Le Monde: Reconstruindo a esquerda
Apesar da maioria
relativa obtida pela Nova Frente Popular durante as eleições legislativas, o
cenário político francês continua marcado por divisões e incerteza. Digamo-lo
claramente: os ganhos registados pela esquerda em votos e assentos são, na
realidade, muito limitados e refletem um trabalho insuficiente no programa, bem
como nas estruturas. Só enfrentando resolutamente estas insuficiências é que os
partidos de esquerda conseguirão ultrapassar o próximo período de turbulência e
de governos minoritários, e um dia obterão a maioria absoluta que lhes
permitirá governar o país de forma sustentável.
O programa adotado
pelo NFP poucos dias depois da dissolução teve certamente o imenso mérito, em
comparação com os outros, de indicar onde encontrar os recursos para investir
no futuro: saúde, formação, investigação, infraestruturas de transportes e energia,
etc. Estes investimentos tão necessários aumentarão acentuadamente no futuro e
só existem duas formas de os financiar. Ou assumimos a entrada num novo ciclo
de crescente socialização da riqueza, impulsionado pelo aumento de impostos
sobre os mais afortunados, como propõe o NFP. Ou recusamos qualquer aumento de
impostos por ideologia, e depois contamos com financiamento privado, sinónimo
de desigualdades de acesso e de eficácia coletiva mais do que duvidosa.
Impulsionados por custos privados surpreendentes, os gastos com saúde
aproximam-se dos 20% do PIB nos Estados Unidos, para indicadores desastrosos.
Os montantes
mencionados pelo NFP poderiam, no entanto, ter sido assustadores: cerca de 100
mil milhões em taxas e novas despesas no prazo de três anos, ou 4% do PIB. A
longo prazo, estes montantes não são excessivos: as receitas fiscais aumentaram
na Europa Ocidental e do Norte, de menos de 10% do rendimento nacional antes de
1914 para 40-50% desde as décadas de 1980-1990, e foi a ascensão do Estado
social (educação, saúde, serviços públicos, proteção social, etc.) que permitiu
um crescimento sem precedentes na produtividade e nos padrões de vida,
independentemente do que os conservadores de todas as épocas possam ter dito
sobre isso.
A verdade é que
existem fortes incertezas sobre o calendário e a ordem de prioridades para um
governo de esquerda chegar ao poder. Se a exigência de justiça social é forte
no país, a mobilização de novos recursos continua a ser um processo frágil do
qual os cidadãos podem retirar o seu apoio a qualquer momento. Concretamente,
enquanto não for demonstrado de forma incontestável que os bilionários e as
multinacionais são finalmente postos a trabalhar, então é impensável pedir
esforços adicionais a qualquer outra pessoa. Contudo, o programa do NFP
permanece demasiado vago neste ponto crucial. Isto é ainda mais problemático
porque os governos de esquerda das últimas décadas, carentes de um programa
suficientemente preciso e de uma apropriação coletiva suficientemente forte,
sempre se viram cedendo aos lobbies assim que chegaram ao poder, por exemplo,
isentando os chamados ativos profissionais e quase todas as maiores fortunas do
ISF, com a consequência de as receitas serem ridiculamente baixas em comparação
com o que poderiam e deveriam ser. Para evitar a repetição destes erros, será
necessário envolver a sociedade civil e os sindicatos na defesa destas receitas
e dos investimentos sociais que as acompanham. Nestas questões como noutras, os
slogans não podem substituir o trabalho aprofundado e a mobilização coletiva.
Encontramos
dificuldades semelhantes com as pensões. Não faz muito sentido adotar como
slogan a aposentadoria para todos aos 62 ou mesmo aos 60 anos, quando todos
sabem que também existe uma condição de duração da contribuição para obter uma
pensão integral no sistema francês. Um slogan como “42 anuidades para todos”
tornaria mais fácil a compreensão do país e diria claramente que as pessoas com
ensino superior não sairão antes dos 65 ou 67 anos, ao mesmo tempo que
insistiria na injustiça inaceitável dos 64 anos da reforma de Macron, que
obriga, por exemplo, quem começou aos 20 anos a contribuir durante 44 anos.
Poderíamos multiplicar
os exemplos. É bom anunciar a eliminação do Parcoursup, mas teria sido ainda
melhor descrever com precisão o sistema alternativo mais justo e transparente
que lhe sucederá. É bom denunciar a mídia Bolloré, mas seria melhor comprometer-se
com uma lei ambiciosa para democratizar a mídia e desafiar todo o poder dos
acionistas.
Mencionemos também a
proposta que visa atribuir um terço dos assentos aos trabalhadores eleitos nos
conselhos de administração das empresas. Esta é a reforma mais profunda e
autenticamente social-democrata do programa NFP, mas beneficiaria se fosse
inserida num quadro mais amplo. Para permitir a redistribuição do poder
económico, seria necessário subir até 50% dos assentos nas grandes empresas,
limitando ao mesmo tempo os direitos de voto dos maiores acionistas e
comprometendo-se com uma redistribuição real dos ativos. Em vez de chafurdar
num radicalismo retórico superficial, é altura de a esquerda voltar a descrever
o sistema económico alternativo a que aspira, reconhecendo ao mesmo tempo que
as coisas serão feitas por etapas.
Em todas estas
questões, só o trabalho coletivo permitirá avançar, o que exige a criação de
uma verdadeira federação democrática de esquerda capaz de organizar a
deliberação e resolver disputas. Estamos longe disso: ao longo dos últimos
anos, a LFI nunca deixou de querer impor a sua hegemonia autoritária à
esquerda, como o PS de outrora, mas pior, dada a recusa de qualquer
procedimento de votação por parte dos dirigentes rebeldes. Mas o eleitorado de
esquerda não se deixa enganar: sabe bem que o exercício do poder exige acima de
tudo humildade, deliberação e trabalho coletivo. É hora de responder a esta
aspiração.
Fonte: A Terra é
Redonda/O Cafezinho
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