Eberval Gadelha Figueiredo Jr.: ‘O
cenário político norte-americano’
A decisão de Joe Biden
de desistir de sua candidatura à reeleição e a subsequente ascensão de Kamala
Harris como a mais provável nova candidata presidencial do Partido Democrata
nas próximas eleições dos EUA provocaram um turbilhão de reações ao redor do
mundo, inclusive no Brasil. É de extrema importância reconhecer que algumas
dessas reações, especialmente entre setores da esquerda progressista
brasileira, demonstram uma fixação quase obsessiva com o cenário político
norte-americano.
Amplos setores da
sociedade brasileira têm uma relação quase doentia com a política americana. Há
uma tendência de supervalorizar os eventos políticos dos EUA como se fossem
determinantes diretos para a realidade política e social do Brasil. Eventos e
dinâmicas internas à política brasileira são frequentemente reduzidos a
alegorias ou imitações[1] de supostos correlatos americanos, a
exemplo da recente insinuação de desistência de José Luiz Datena à candidatura
nas eleições municipais de São Paulo, que previsivelmente envolveu uma alusão
(pode-se dizer obrigatória) ao gesto do presidente americano. “Se Biden pode
desistir, por que eu não?”.[2]
Talvez a manifestação
mais ridícula desse fenômeno seja o apoio apaixonado ao candidato X ou Y em
eleições nas quais nem se vota. Com a recente reviravolta na candidatura
democrata, isso tem ocorrido na forma do apoio a Kamala Harris por setores da
esquerda progressista brasileira (não toquemos no assunto dos inúmeros defeitos
de Kamala Harris, que já foram discutidos na Internet ad nauseam antes
mesmo da desistência de Biden, e que não são o foco deste artigo).[3]
Fala-se, por exemplo,
em uma suposta responsabilidade ou missão global de derrotar Donald Trump, como
se isso coubesse ou dissesse respeito a pessoas com domicílio eleitoral em
lugares como Colatina, que sequer decidiram seus votos nas próximas eleições municipais.
Tal fixação pode ser
explicada em função do curioso e eclético conceito de American
Tributary system, desenvolvido por Yuen Foong Khong.[4] Trata-se
de uma referência à história chinesa, especificamente ao sistema de tributos
que teve seu auge na dinastia Ming (册封体制 Cèfēng tǐzhì), configurando um modelo de relações internacionais em que o
Imperador da China, era um monarca de jurisdição universal, cabendo aos demais
governantes reconhecer sua precedência e superioridade mediante o oferecimento
de tributos literais e simbólicos.
Assim como a corte
chinesa e os burocratas confucianos classificavam nações estrangeiras em
“civilizadas” e “não-civilizadas” com base em seu nível de integração ao
sistema internacional centrado na China, os neoconservadores americanos
aninhados no Departamento de Estado fazem o mesmo. Assim como o Imperador da
China era chamado de “Filho do Céu”, o Presidente dos Estados Unidos é chamado
de “Líder do Mundo Livre™”, mundo esse que de livre não tem muito: trata-se
apenas de um sistema de tributos literais e simbólicos centrado nos Estados
Unidos.[5]
Mas qualquer
insinuação de que o mundo funciona assim é considerada paranoica, quando feita
por cidadãos comuns como eu ou a maioria dos leitores, ou como ultrajante,
quando feita por gente importante, como na vez que Emmanuel Macron disse que
“ser aliado não significa ser vassalo” dos Estados Unidos.[6] Ora,
em princípio, a fala de Emmanuel Macron nada mais foi do que a afirmação de uma
verdade autoevidente: um aliado não é um vassalo. Mas então por que o ultraje?
Enfim, o conceito
sugere que a política e a cultura americanas são o epicentro simbólico de uma
ordem global, influenciando e moldando as dinâmicas políticas dos demais
países, frequentemente de formas que sequer fazem sentido de um ponto de vista
interno e/ou pragmático. Isso frequentemente se dá através da identificação
errônea, muitas vezes inconsciente, para com o americano enquanto uma espécie
de “sujeito universal”, quase como um apego cívico delirante a uma nação
estrangeira. Assim surgem, por exemplo, direitistas brasileiros reclamando de
imigração, como se a pauta tivesse qualquer relevância aqui, ou enxergando a
China como uma “nação hostil”.
Similarmente, temos a
reação dos internautas brasileiros às tensões resultantes do assassinato do
general iraniano Qassem Soleimani em um ataque ordenado por Donald Trump no
início de 2020, temendo uma “Terceira Guerra Mundial” e pedindo para os
iranianos não atacarem o Brasil. Os iranianos, por sua vez, apenas acharam a
postura brasileira cômica e inusitada, uma anedota digna de noticiário.[7] Afinal,
por que o Irã revidaria um ataque dos EUA invadindo Codó no Maranhão? Até hoje
não se sabe.
Sintomática dessa
mazela é justamente a maneira com que a política doméstica americana assume um
caráter global. Nenhum outro país tem um processo político tão espetacularizado
quanto os Estados Unidos. Mais do que isso, em uma espécie de empatia forçada,
espectadores estrangeiros entram no personagem de cidadãos americanos,
acompanhando o processo como se o interesse do eleitor americano fosse o mesmo
que o deles. Haverá quem me acuse de falta de empatia, e a isso eu respondo: às
vezes deve haver limites para a compaixão. O eleitor americano médio decerto
não perde o sono pensando no meu bem-estar ou na política interna do meu país.
É claro que ignorar
por completo a importância global de eventos como o atentado contra Donald
Trump ou a desistência de Joe Biden e a ascensão de Kamala Harris seria ingênuo
e temerário. Tais eventos, no entanto, devem ser interpretados e respondidos de
outras formas, não como vem sendo feito. Mesmo o relativo pragmatismo de se
torcer pelo candidato americano que mais favoreça a política doméstica
brasileira em algum aspecto, seja em termos eleitorais ou nas pautas de
costumes (ou qualquer outro fator que não diga respeito diretamente à política
externa), configura também, à sua própria maneira, uma genuflexão,
reconhecimento tácito de vassalagem.
Em termos práticos, a
política americana tem muito menos influência direta nos assuntos internos
brasileiros do que vulgarmente se imagina. Assim, a política brasileira deve
ser pensada e desenvolvida com base em suas próprias necessidades e contextos,
não em mera resposta ou reação às dinâmicas internas dos EUA. O foco excessivo
nos eventos norte-americanos distrai-nos de nossas próprias questões urgentes e
específicas.
O Brasil deve cultivar
uma abordagem mais autônoma e focada em suas próprias realidades, fortalecendo
assim sua identidade política e sua capacidade de lidar com seus desafios
internos. A dependência simbólica em relação aos EUA enfraquece a identidade política
brasileira (vide comparações esdrúxulas e preguiçosas como “Trump é o Bolsonaro
americano”, “Hillary é a Dilma americana” e vice-versa), limitando o potencial
desenvolvimento de soluções criativas endêmicas para os problemas nacionais.
Por isso é crucial que
o imaginário brasileiro comece a se desvincular simbolicamente da política
americana. Esse desvinculamento não significa ignorar os eventos
internacionais, mas sim estabelecer uma independência analítica e política que permita
uma compreensão mais autônoma da realidade brasileira e global.
¨ Donald Trump é um protofascista? Por Valerio Arcary
Se há uma esquerda no
mundo que não deveria ter dúvidas que Donald Trump é um protofascista é a
brasileira. O Brasil foi um laboratório da história. Depois de tudo que
aconteceu durante os quatro anos de mandato, e após a semi-insurreição de 8 de
janeiro de 2023, a conclusão é incontornável. O golpismo foi uma estratégia
permanente.
Jair Bolsonaro cometeu
vários crimes de responsabilidade e só foi poupado de impeachment, porque fez
uma aliança com o Centrão que blindou seu mandato até o fim. Se o regime
democrático-liberal não terminou subvertido foi porque Jair Bolsonaro não
reuniu forças suficientes, e não quis correr os riscos. Não conseguiu
consolidar uma relação política de forças suficiente.
As trajetórias de Jair
Bolsonaro e Donald Trump são diferentes, mas ambos estão alinhados com o mesmo
projeto político. São dois monstros, e têm que ser derrotados, não podem ser
perdoados. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.
O Partido Republicano
de 2024 é uma máquina dominada, monoliticamente, pela extrema direita e
liderada por Donald Trump. Aqueles que fazem a distinção entre dois tipos de
extrema direita diferentes, qualitativamente, entre si estão equivocados. Quem
“passa pano” para o neofascismo, diminuindo o perigo, comete um erro teórico
infantil, um erro político irremediável e uma avaliação, moralmente,
imperdoável.
Não há uma extrema
direita que se estrutura como corrente, estritamente, eleitoral e respeita os
limites dos regimes em que lutam para chegar ao poder, e uma corrente
neofascista de combate com um pé na legalidade e um pé na contrarrevolução
insurrecional. Como em qualquer corrente política há dissensões entre os mais
moderados e os mais radicais, aliás, como até no partido de Hitler.
Mas todos abraçam a
mesma estratégia. São um mesmo e único movimento com duas alas no seu interior,
mas quem dirige são os neofascistas. Se Donald Trump vencer em novembro, a
ultradireita mundial ganhará um impulso formidável, talvez imparável em alguns países.
Resumo da ópera: Donald Trump fortalece Jair Bolsonaro.
Donald Trump pode
perder as eleições para Kamala Harris, e ainda assim ser o próximo presidente.
É uma aberração, mas essas são as regras. Há uma crise política do regime
norte-americano. É uma anomalia arcaica e disfuncional um sistema eleitoral em
que o partido que vence no sufrágio universal, mas pode perder as eleições no
Colégio eleitoral – porque são os delegados dos Estados que fazem o segundo
turno decisivo – e pior ainda, em função, unicamente, do resultado em seis
estados pêndulos.
Absurdamente,
antidemocrático e obsoleto sobreviveu, até hoje, por incríveis dois séculos.
Não é mais compatível com a realidade da sociedade norte-americana, porque não
corresponde mais sequer, em teoria, ao que seria uma análise lúcida dos
interesses do imperialismo mais poderosos do mundo, porque um mínimo de
legitimidade é necessário para preservar o discurso ideológico de que os EUA
defendem a “democracia” e o mundo “livre”.
A renúncia tardia de
Joe Biden foi um alívio. Mas, se o desfecho favorece a possibilidade de
reverter o atual favoritismo de Donald Trump, a luta política interna à cúpula
democrata foi um episódio desonesto, obscuro e lamentável. Afinal, se Joe Biden
não tem condições cognitivas para ser candidato, tampouco pode assumir as
responsabilidades da presidência até o fim do ano. Ou tem para as duas tarefas
ou não tem para nenhuma.
A saúde física e
mental de Joe Biden foi tratada como um tema tabu sem nenhuma transparência, o
que alimenta preconceitos etaristas, uma forma cruel de opressão dos idosos.
Barak Obama e Nancy Pelosi lideraram uma pressão subterrânea brutal para forçar
a renúncia porque as pesquisas indicavam uma inevitável derrota, a arrecadação
financeira estava ladeira abaixo, e os vexames na reunião da OTAN foram
grotescos.
Os dois principais
jornais que respondem à fração liberal do capitalismo yankee, The
New York Times e Washington Post, lançaram editoriais
exigindo a renúncia depois do fiasco do primeiro debate. A renúncia foi um fato
raríssimo, inusitado. O lançamento de Kamala Harris é uma solução improvisada
em um contexto de desespero.
Em 2020, Donald Trump
perdeu para Joe Biden, não foi Joe Biden quem derrotou Donald Trump. Não é um
trocadilho, um jogo de palavras. A sociedade está fraturada e Donald Trump
permanece favorito, embalado pela sobrevivência ao atentado. As pesquisas recentes
que indicam um empate técnico indicam, por enquanto, que o desenlace eleitoral
é imprevisível.
Em cem dias muito pode
acontecer. Mas é bom lembrar que, sem o desgaste do mandato de Donald Trump
entre 2016/20 – o aumento da pobreza e da desigualdade, a saída desastrosa do
Acordo de Paris, o protecionismo provocativo contra a China, maior portadora dos
títulos da dívida pública, por exemplo – e, sobretudo, sem o Black
Lives Matter, a maior onda de mobilização negra e antirracista, desde os
anos sessenta, que levou milhões da população negra e latina a comparecer para
derrotar Donald Trump, Joe Biden não teria vencido.
As variáveis
econômicas entre 2020/24 evoluíram favoravelmente, mas não foram o bastante. O
PIB cresceu 2,5%, acima da média europeia, o desemprego diminuiu e a inflação
caiu para menos da metade, mas não alterou a decepção com Joe Biden, que tem
baixa popularidade. Há uma furiosa luta política contra os imigrantes, uma
disputa misógina manipulada pelo conservadorismo moral fundamentalista, um
ressentimento social envenenado pelo racismo que defende a supremacia branca,
uma suspeita ou até hostilidade às propostas de descarbonização acelerada
diante do aquecimento global, um rancor individualista que defende o armamento
geral irrestrito, e um nacionalismo exaltado que justifica um imperialismo
militarista, além da desconfiança anti-intelectual contra o mundo da ciência,
cultura e arte.
Donald Trump faz uma
“guerra ideológica”, não quer somente vencer uma eleição. Se o nome destas
posições não é neofascismo, preservado o respeito aos excessos de uma analogia
histórica, qual é? Kamala Harris é uma mulher negra enérgica, o que pesa a seu favor,
mas não parece haver disposição da liderança liberal de enfrentar o
protofascismo como a gravidade do perigo exige.
Ninguém na esquerda
mundial pode desconhecer que Kamala Harris defende o apoio à ofensiva sionista
na Faixa de Gaza, mesmo com a condenação de Israel no Tribunal Internacional de
Justiça da ONU. Defende também o apoio à ofensiva da OTAN, estendendo sua posição
até à fronteira da Rússia, dissimulada como proteção do governo de extrema
direita de Volodymyr Zelensky na Ucrânia. Defende a doutrina de segurança
nacional que identifica a China como uma inimiga.
Trata-se de uma
representante de uma fração do capitalismo americano. A acefalia do Partido
Democrata e o domínio da extrema direita no Partido Republicano expressam um
novo momento da crise do imperialismo norte-americano. A derrota de Donald
Trump seria o melhor desenlace, em especial, para a esquerda brasileira que
ainda está ameaçada pelo bolsonarismo. Donald Trump e Kamala Harris não são
iguais. Mas o partido democrata, ou Kamala Harris, não merecem qualquer
confiança.
Fonte: A Terra é
Redonda
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