quinta-feira, 25 de julho de 2024

Eberval Gadelha Figueiredo Jr.: ‘O cenário político norte-americano’

A decisão de Joe Biden de desistir de sua candidatura à reeleição e a subsequente ascensão de Kamala Harris como a mais provável nova candidata presidencial do Partido Democrata nas próximas eleições dos EUA provocaram um turbilhão de reações ao redor do mundo, inclusive no Brasil. É de extrema importância reconhecer que algumas dessas reações, especialmente entre setores da esquerda progressista brasileira, demonstram uma fixação quase obsessiva com o cenário político norte-americano.

Amplos setores da sociedade brasileira têm uma relação quase doentia com a política americana. Há uma tendência de supervalorizar os eventos políticos dos EUA como se fossem determinantes diretos para a realidade política e social do Brasil. Eventos e dinâmicas internas à política brasileira são frequentemente reduzidos a alegorias ou imitações[1] de supostos correlatos americanos, a exemplo da recente insinuação de desistência de José Luiz Datena à candidatura nas eleições municipais de São Paulo, que previsivelmente envolveu uma alusão (pode-se dizer obrigatória) ao gesto do presidente americano. “Se Biden pode desistir, por que eu não?”.[2]

Talvez a manifestação mais ridícula desse fenômeno seja o apoio apaixonado ao candidato X ou Y em eleições nas quais nem se vota. Com a recente reviravolta na candidatura democrata, isso tem ocorrido na forma do apoio a Kamala Harris por setores da esquerda progressista brasileira (não toquemos no assunto dos inúmeros defeitos de Kamala Harris, que já foram discutidos na Internet ad nauseam antes mesmo da desistência de Biden, e que não são o foco deste artigo).[3]

Fala-se, por exemplo, em uma suposta responsabilidade ou missão global de derrotar Donald Trump, como se isso coubesse ou dissesse respeito a pessoas com domicílio eleitoral em lugares como Colatina, que sequer decidiram seus votos nas próximas eleições municipais.

Tal fixação pode ser explicada em função do curioso e eclético conceito de American Tributary system, desenvolvido por Yuen Foong Khong.[4] Trata-se de uma referência à história chinesa, especificamente ao sistema de tributos que teve seu auge na dinastia Ming (册封体制 Cèfēng tǐzhì), configurando um modelo de relações internacionais em que o Imperador da China, era um monarca de jurisdição universal, cabendo aos demais governantes reconhecer sua precedência e superioridade mediante o oferecimento de tributos literais e simbólicos.

Assim como a corte chinesa e os burocratas confucianos classificavam nações estrangeiras em “civilizadas” e “não-civilizadas” com base em seu nível de integração ao sistema internacional centrado na China, os neoconservadores americanos aninhados no Departamento de Estado fazem o mesmo. Assim como o Imperador da China era chamado de “Filho do Céu”, o Presidente dos Estados Unidos é chamado de “Líder do Mundo Livre™”, mundo esse que de livre não tem muito: trata-se apenas de um sistema de tributos literais e simbólicos centrado nos Estados Unidos.[5]

Mas qualquer insinuação de que o mundo funciona assim é considerada paranoica, quando feita por cidadãos comuns como eu ou a maioria dos leitores, ou como ultrajante, quando feita por gente importante, como na vez que Emmanuel Macron disse que “ser aliado não significa ser vassalo” dos Estados Unidos.[6] Ora, em princípio, a fala de Emmanuel Macron nada mais foi do que a afirmação de uma verdade autoevidente: um aliado não é um vassalo. Mas então por que o ultraje?

Enfim, o conceito sugere que a política e a cultura americanas são o epicentro simbólico de uma ordem global, influenciando e moldando as dinâmicas políticas dos demais países, frequentemente de formas que sequer fazem sentido de um ponto de vista interno e/ou pragmático. Isso frequentemente se dá através da identificação errônea, muitas vezes inconsciente, para com o americano enquanto uma espécie de “sujeito universal”, quase como um apego cívico delirante a uma nação estrangeira. Assim surgem, por exemplo, direitistas brasileiros reclamando de imigração, como se a pauta tivesse qualquer relevância aqui, ou enxergando a China como uma “nação hostil”.

Similarmente, temos a reação dos internautas brasileiros às tensões resultantes do assassinato do general iraniano Qassem Soleimani em um ataque ordenado por Donald Trump no início de 2020, temendo uma “Terceira Guerra Mundial” e pedindo para os iranianos não atacarem o Brasil. Os iranianos, por sua vez, apenas acharam a postura brasileira cômica e inusitada, uma anedota digna de noticiário.[7] Afinal, por que o Irã revidaria um ataque dos EUA invadindo Codó no Maranhão? Até hoje não se sabe.

Sintomática dessa mazela é justamente a maneira com que a política doméstica americana assume um caráter global. Nenhum outro país tem um processo político tão espetacularizado quanto os Estados Unidos. Mais do que isso, em uma espécie de empatia forçada, espectadores estrangeiros entram no personagem de cidadãos americanos, acompanhando o processo como se o interesse do eleitor americano fosse o mesmo que o deles. Haverá quem me acuse de falta de empatia, e a isso eu respondo: às vezes deve haver limites para a compaixão. O eleitor americano médio decerto não perde o sono pensando no meu bem-estar ou na política interna do meu país.

É claro que ignorar por completo a importância global de eventos como o atentado contra Donald Trump ou a desistência de Joe Biden e a ascensão de Kamala Harris seria ingênuo e temerário. Tais eventos, no entanto, devem ser interpretados e respondidos de outras formas, não como vem sendo feito. Mesmo o relativo pragmatismo de se torcer pelo candidato americano que mais favoreça a política doméstica brasileira em algum aspecto, seja em termos eleitorais ou nas pautas de costumes (ou qualquer outro fator que não diga respeito diretamente à política externa), configura também, à sua própria maneira, uma genuflexão, reconhecimento tácito de vassalagem.

Em termos práticos, a política americana tem muito menos influência direta nos assuntos internos brasileiros do que vulgarmente se imagina. Assim, a política brasileira deve ser pensada e desenvolvida com base em suas próprias necessidades e contextos, não em mera resposta ou reação às dinâmicas internas dos EUA. O foco excessivo nos eventos norte-americanos distrai-nos de nossas próprias questões urgentes e específicas.

O Brasil deve cultivar uma abordagem mais autônoma e focada em suas próprias realidades, fortalecendo assim sua identidade política e sua capacidade de lidar com seus desafios internos. A dependência simbólica em relação aos EUA enfraquece a identidade política brasileira (vide comparações esdrúxulas e preguiçosas como “Trump é o Bolsonaro americano”, “Hillary é a Dilma americana” e vice-versa), limitando o potencial desenvolvimento de soluções criativas endêmicas para os problemas nacionais.

Por isso é crucial que o imaginário brasileiro comece a se desvincular simbolicamente da política americana. Esse desvinculamento não significa ignorar os eventos internacionais, mas sim estabelecer uma independência analítica e política que permita uma compreensão mais autônoma da realidade brasileira e global.

 

¨      Donald Trump é um protofascista? Por Valerio Arcary

Se há uma esquerda no mundo que não deveria ter dúvidas que Donald Trump é um protofascista é a brasileira. O Brasil foi um laboratório da história. Depois de tudo que aconteceu durante os quatro anos de mandato, e após a semi-insurreição de 8 de janeiro de 2023, a conclusão é incontornável. O golpismo foi uma estratégia permanente.

Jair Bolsonaro cometeu vários crimes de responsabilidade e só foi poupado de impeachment, porque fez uma aliança com o Centrão que blindou seu mandato até o fim. Se o regime democrático-liberal não terminou subvertido foi porque Jair Bolsonaro não reuniu forças suficientes, e não quis correr os riscos. Não conseguiu consolidar uma relação política de forças suficiente.

As trajetórias de Jair Bolsonaro e Donald Trump são diferentes, mas ambos estão alinhados com o mesmo projeto político. São dois monstros, e têm que ser derrotados, não podem ser perdoados. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

O Partido Republicano de 2024 é uma máquina dominada, monoliticamente, pela extrema direita e liderada por Donald Trump. Aqueles que fazem a distinção entre dois tipos de extrema direita diferentes, qualitativamente, entre si estão equivocados. Quem “passa pano” para o neofascismo, diminuindo o perigo, comete um erro teórico infantil, um erro político irremediável e uma avaliação, moralmente, imperdoável.

Não há uma extrema direita que se estrutura como corrente, estritamente, eleitoral e respeita os limites dos regimes em que lutam para chegar ao poder, e uma corrente neofascista de combate com um pé na legalidade e um pé na contrarrevolução insurrecional. Como em qualquer corrente política há dissensões entre os mais moderados e os mais radicais, aliás, como até no partido de Hitler.

Mas todos abraçam a mesma estratégia. São um mesmo e único movimento com duas alas no seu interior, mas quem dirige são os neofascistas. Se Donald Trump vencer em novembro, a ultradireita mundial ganhará um impulso formidável, talvez imparável em alguns países. Resumo da ópera: Donald Trump fortalece Jair Bolsonaro.

Donald Trump pode perder as eleições para Kamala Harris, e ainda assim ser o próximo presidente. É uma aberração, mas essas são as regras. Há uma crise política do regime norte-americano. É uma anomalia arcaica e disfuncional um sistema eleitoral em que o partido que vence no sufrágio universal, mas pode perder as eleições no Colégio eleitoral – porque são os delegados dos Estados que fazem o segundo turno decisivo – e pior ainda, em função, unicamente, do resultado em seis estados pêndulos.

Absurdamente, antidemocrático e obsoleto sobreviveu, até hoje, por incríveis dois séculos. Não é mais compatível com a realidade da sociedade norte-americana, porque não corresponde mais sequer, em teoria, ao que seria uma análise lúcida dos interesses do imperialismo mais poderosos do mundo, porque um mínimo de legitimidade é necessário para preservar o discurso ideológico de que os EUA defendem a “democracia” e o mundo “livre”.

A renúncia tardia de Joe Biden foi um alívio. Mas, se o desfecho favorece a possibilidade de reverter o atual favoritismo de Donald Trump, a luta política interna à cúpula democrata foi um episódio desonesto, obscuro e lamentável. Afinal, se Joe Biden não tem condições cognitivas para ser candidato, tampouco pode assumir as responsabilidades da presidência até o fim do ano. Ou tem para as duas tarefas ou não tem para nenhuma.

A saúde física e mental de Joe Biden foi tratada como um tema tabu sem nenhuma transparência, o que alimenta preconceitos etaristas, uma forma cruel de opressão dos idosos. Barak Obama e Nancy Pelosi lideraram uma pressão subterrânea brutal para forçar a renúncia porque as pesquisas indicavam uma inevitável derrota, a arrecadação financeira estava ladeira abaixo, e os vexames na reunião da OTAN foram grotescos.

Os dois principais jornais que respondem à fração liberal do capitalismo yankeeThe New York Times e Washington Post, lançaram editoriais exigindo a renúncia depois do fiasco do primeiro debate. A renúncia foi um fato raríssimo, inusitado. O lançamento de Kamala Harris é uma solução improvisada em um contexto de desespero.

Em 2020, Donald Trump perdeu para Joe Biden, não foi Joe Biden quem derrotou Donald Trump. Não é um trocadilho, um jogo de palavras. A sociedade está fraturada e Donald Trump permanece favorito, embalado pela sobrevivência ao atentado. As pesquisas recentes que indicam um empate técnico indicam, por enquanto, que o desenlace eleitoral é imprevisível.

Em cem dias muito pode acontecer. Mas é bom lembrar que, sem o desgaste do mandato de Donald Trump entre 2016/20 – o aumento da pobreza e da desigualdade, a saída desastrosa do Acordo de Paris, o protecionismo provocativo contra a China, maior portadora dos títulos da dívida pública, por exemplo – e, sobretudo, sem o Black Lives Matter, a maior onda de mobilização negra e antirracista, desde os anos sessenta, que levou milhões da população negra e latina a comparecer para derrotar Donald Trump, Joe Biden não teria vencido.

As variáveis econômicas entre 2020/24 evoluíram favoravelmente, mas não foram o bastante. O PIB cresceu 2,5%, acima da média europeia, o desemprego diminuiu e a inflação caiu para menos da metade, mas não alterou a decepção com Joe Biden, que tem baixa popularidade. Há uma furiosa luta política contra os imigrantes, uma disputa misógina manipulada pelo conservadorismo moral fundamentalista, um ressentimento social envenenado pelo racismo que defende a supremacia branca, uma suspeita ou até hostilidade às propostas de descarbonização acelerada diante do aquecimento global, um rancor individualista que defende o armamento geral irrestrito, e um nacionalismo exaltado que justifica um imperialismo militarista, além da desconfiança anti-intelectual contra o mundo da ciência, cultura e arte.

Donald Trump faz uma “guerra ideológica”, não quer somente vencer uma eleição. Se o nome destas posições não é neofascismo, preservado o respeito aos excessos de uma analogia histórica, qual é? Kamala Harris é uma mulher negra enérgica, o que pesa a seu favor, mas não parece haver disposição da liderança liberal de enfrentar o protofascismo como a gravidade do perigo exige.

Ninguém na esquerda mundial pode desconhecer que Kamala Harris defende o apoio à ofensiva sionista na Faixa de Gaza, mesmo com a condenação de Israel no Tribunal Internacional de Justiça da ONU. Defende também o apoio à ofensiva da OTAN, estendendo sua posição até à fronteira da Rússia, dissimulada como proteção do governo de extrema direita de Volodymyr Zelensky na Ucrânia. Defende a doutrina de segurança nacional que identifica a China como uma inimiga.

Trata-se de uma representante de uma fração do capitalismo americano. A acefalia do Partido Democrata e o domínio da extrema direita no Partido Republicano expressam um novo momento da crise do imperialismo norte-americano. A derrota de Donald Trump seria o melhor desenlace, em especial, para a esquerda brasileira que ainda está ameaçada pelo bolsonarismo. Donald Trump e Kamala Harris não são iguais. Mas o partido democrata, ou Kamala Harris, não merecem qualquer confiança.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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