Ângela Carrato, sobre o caso da repórter da
Record: Entidades e mídia silenciam
O Brasil tem uma das
piores mídias corporativas do mundo.
Verdadeiras capitanias
hereditárias, elas estão concentradas nas mãos de seis famílias, que controlam
perto de 70% de tudo o que a população lê, escuta, assiste ou acessa. Além dos
tradicionais jornais, esses senhores detêm as concessões de emissoras de rádio,
de TV e são os proprietários dos principais portais de notícias, UOL, G1 e R7.
A situação não é de
agora, mas está piorando.
Durante os 21 anos da
ditadura militar (1964-1985), em que pese a maioria dos donos da mídia ter
estado na linha de frente da derrubada do presidente João Goulart, alguns
rapidamente se desiludiram.
Já a maioria dos
jornalistas daquela época nunca se deixou iludir por slogans ufanistas (“Esse é
um país que vai pra frente”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”) e, menos ainda, por
vantagens que pudessem receber.
Uns poucos, no
entanto, se locupletaram. Pior ainda, fizeram escola.
A essa escola parece
pertencer a repórter da TV Record, Renata Varandas, que até a última
quarta-feira, acumulava também as funções de apresentadora eventual do Jornal
da Record, principal noticiário da emissora do bispo Edir Macedo, dono da
Igreja Universal do Reino de Deus.
Escalada para a
destacada função de entrevistar com exclusividade, na terça-feira (16), o
presidente Lula, Varandas conversou com ele quase uma hora. As perguntas foram
muitas e variadas, prevalecendo as relativas à economia, em especial corte de
gastos e arcabouço fiscal. Era de se esperar que a TV Record fosse a primeira a
veicular a entrevista, no mesmo dia, a partir das 19h55.
Mas o que fez
Varandas?
Uma das três sócias da
empresa de consultoria política Capital Advice, Varandas vazou, no início da
tarde, para um de seus clientes, a corretora de valores BGC, trechos
descontextualizados da entrevista.
O resultado foi uma
corrida ao dólar que, há mais de uma semana, vinha em trajetória de queda no
Brasil.
A elevação atribuída a
essas falas manipuladas e descontextualizadas de Lula contribuíram para gerar
nova crise e apreensão no mercado financeiro, possibilitando que alguns
espertalhões ganhassem com a especulação e muita gente perdesse dinheiro.
Quando a íntegra da
entrevista foi ao ar, a manipulação ficou evidente, mas o leite já havia sido
derramado.
Desde o início da
tarde, press release divulgado pela BGC, cuja elaboração é atribuída à Capital
Advice, dava conta de que o presidente Lula se dizia não preocupado com o
controle de gastos, um dos temas mais caros aos ricos e endinheirados
brasileiros e a seus parceiros estrangeiros.
Os bilionários querem
que o governo Lula corte gastos apenas pelo lado dos mais pobres, deixando
intactos seus privilégios. Aqui só pobres e classe média pagam impostos.
Dividendos estão isentos.
A folha de pagamento
das maiores empresas — nacionais e estrangeiras — segue desonerada (sem pagar
impostos ou com impostos reduzidos), itens de consumo de luxo como jatinhos,
iates e jet skis não são tributáveis, o mesmo acontecendo com as fortunas escondidas
em paraísos fiscais.
O ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, teve que se pronunciar a fim de desfazer a mentira, lembrando
que Lula tem compromisso com o controle dos gastos públicos e que a economia
brasileira vai bem, como apontam diversos indicadores.
O próprio Haddad
também não escapou da campanha. Memes com o “Taxad” invadiram as redes sociais,
na tentativa de reduzir o seu trabalho à “criação de taxas abusivas”.
Taxad é uma ironia se
valendo da palavra taxa e do sobrenome do ministro.
No mesmo dia da
divulgação da fala manipulada de Lula, na Times Square, em Nova Iorque, um dos
locais mais caros e com maior visibilidade no mundo, um painel luminoso com
oito metros de altura, mostrava os memes contra Haddad, afirmando que “ele e
Lula são os responsáveis pelas maiores taxas cobradas dos cidadãos em todo o
planeta”.
Por razões óbvias não
dá para desvincular o vazamento da entrevista, os memes e o painel na Times
Square. Por razões óbvias, igualmente, não dá para acreditar que foram
beneficiários dos programas sociais ou cidadãos comuns que criaram os memes e
bancaram o caríssimo luminoso contra Haddad e Lula, num momento em que tentam
fazer com que ricos e bilionários paguem alguns impostos.
Para entender o que se
passou é preciso, como sempre, seguir o dinheiro.
A BGC é a subsidiária
brasileira da corretora gigante de mesmo nome, com sede nos Estados Unidos.
Criada em 2004 e com
atuação global, sua especialidade é a gestão financeira e entre seus clientes
estão bancos de varejo, de investimento e fundos de pensão. O ideal para a BGC
é que o terceiro governo Lula, como fez Temer, Bolsonaro ou mesmo Fernando Henrique
Cardoso, pusesse o país à venda, privatizando tudo a preço de banana.
Para essa gente, Lula
é considerado inimigo, enquanto o governador de extrema-direita de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, é o amigo da vez, digno de todos os elogios da mídia
corporativa e aplausos do mercado financeiro.
Tarcísio acaba de
entregar a companhia de saneamento do Estado, a Sabesp, para o mercado.
Detalhe: a empresa, eficiente e lucrativa, foi arrematada em leilão do qual
participou uma única empresa, a Equatorial Energia, sem experiência na área.
A Equatorial é
integrada por vários fundos de investimentos, o que dificulta até rastrear quem
são efetivamente os seus donos.
Já a Capital Advice
foi criada em 2020 e tem Renata Varandas como uma de suas proprietárias. A
empresa vende boletins de “análise política”, “apurações on demand”, “projeção
de cenários” e “mapeamento de riscos políticos”, conforme consta do seu site.
O que Varandas fez foi
manipular e vazar informações supostamente obtidas na entrevista exclusiva que
fez com o presidente Lula para seu cliente. O cliente, a BGC, as utilizou para
criar confusão no mercado financeiro brasileiro e atribuí-las a “falas do
presidente Lula”.
Que as recentes crises
envolvendo a alta do dólar eram artificiais muitos já sabiam. Conceituados
economistas como Paulo Nogueira Batista Júnior, ex-vice-presidente do New
Development Bank (NDB) e representante do Brasil no FMI por décadas, as têm
denunciado.
Para ele, a atuação
nociva e absolutamente pró-mercado do atual presidente do Banco Central, o
bolsonarista Roberto Campos Neto, é a responsável. O que não havia era
evidência de envolvimento direto de jornalistas neste tipo de atuação.
Agora há.
As informações sobre o
que a TV Record vai fazer com a sua funcionária estão desencontradas, girando
de afastamento a demissão. Através de nota divulgada na quinta-feira (18), a
emissora se disse “surpresa” com o ocorrido, alegou não saber das relações da
repórter com a empresa Capital Advice, se comprometeu a apurar o ocorrido e
tomar as providências cabíveis.
De lá para cá, não
houve novo comunicado da TV Record, com raríssimos veículos de mídia se
interessando pelo assunto, apesar da gravidade. Motivo pelo qual, caro leitor
ou leitora, possivelmente você não tenha conhecimento de nada disso.
Afastamento ou
demissão da jornalista estão longe de significar ponto final no assunto.
Será que alguém
acredita que a direção da TV do bispo Edir Macedo desconhecia a situação de uma
funcionária na casa há 17 anos? Renata não era uma funcionária qualquer, tanto
que recentemente foi elevada à condição de apresentadora eventual do principal noticiário
da emissora.
Divulgação de
informação privilegiada (inside information) é crime previsto em lei e deve ser
apurada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia vinculada ao
Ministério da Fazenda, que tem por objetivo disciplinar e fiscalizar o mercado
financeiro. A pena é de um a três anos de cadeia.
Até o momento, a CVM
não se pronunciou.
Varandas infringiu
vários artigos do Código de Ética da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
No artigo 9º, por exemplo, é dito expressamente que “jornalista e veículo de
comunicação não pode associar-se às fontes de informação e a seus interesses,
nem lhes prestar aconselhamento ou assessoria de qualquer natureza”.
As punições previstas
vão do arquivamento à exclusão dos quadros da entidade, passando por penas mais
leves como advertência e suspensão.
Não sei se Varandas é
filiada à ABI. O certo é que até o momento em que escrevo, nenhuma entidade da
nossa categoria (a própria ABI, a Federação Nacional dos Jornalistas ou os
sindicatos regionais) se manifestou sobre o assunto.
Também estão em
silêncio as Faculdades de Jornalismo, entidades e movimentos sociais que lutam
pela ética e transparência da informação.
Que muitos jornalistas
são penas de aluguel não há dúvida.
Que muitos jornalistas
fazem o jogo dos interesses dos patrões para crescer na profissão, não é
novidade.
Que alguns jornalistas
se vincularam e se vinculam a grupos conservadores contra governos
progressistas, nunca faltaram suspeitas.
No entanto, a atuação,
com todas as digitais, de uma jornalista manipulando a informação para
beneficiar um poderosíssimo cliente (o mercado financeiro) contra o interesse
do governo e da maioria da população brasileira é uma lamentável novidade.
Um atentado à ética
profissional como esse deve nos remeter à importância da criação do Conselho
Nacional de Jornalismo, entidade prevista na Constituição de 1988, que ainda
não saiu do papel.
A exemplo da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e dos Conselhos Federais das mais diversas categorias
(médicos, engenheiros, arquitetos, contabilistas etc), nós, jornalistas, também
precisamos de uma entidade específica para discutir e se posicionar sobre
questões éticas envolvendo o nosso exercício profissional.
Códigos de Ética, no
presente e no passado, nunca faltaram aos jornalistas. Eles se tornam letra
morta, no entanto, se não existir entidade capaz de zelar por sua aplicação.
Um cirurgião que, por
incompetência ou desleixo, deixar pacientes morrerem, ou advogados, que não
respeitam as práticas adequadas de sua profissão, não podem continuar a
exercê-las. O mesmo precisa acontecer com jornalistas e empresas jornalísticas.
A informação é algo
extremamente sensível, que mexe com a vida das pessoas e com a imagem de
governos. Pode causar danos materiais, destruir reputações e até contribuir
para derrubar governos.
Quem pagará pelos
prejuízos que Renata Varandas causou a milhares de pessoas que compraram
dólares ou venderam a moeda estadunidense temendo crise na economia brasileira?
Quem pagará pelo
desgaste causado à imagem do presidente Lula e ao seu governo?
O jogo, como se vê, é
muito pesado.
Não resolve atribuir
mentiras e desinformação, como fez o próprio presidente Lula, durante essa
mesma entrevista, somente às big techs e às redes sociais.
Claro que as
plataformas e redes sociais estão coalhadas de mentiras e devem ser reguladas,
logo elas que atuam em parceria com os interesses das potencias imperialistas
ocidentais, em especial os Estados Unidos.
Claro que o Brasil
enfrenta uma epidemia de desinformação, uma das maiores de que se tem noticia
em todo o mundo. Mas é preciso estar atento para o fato de que a desinformação
começa na mídia corporativa brasileira e envolve seus profissionais, que fazem
de tudo para passar por “bons mocinhos”.
O caso Varandas e a
venda de informação privilegiada para o mercado financeiro pode ser a ponta de
um enorme iceberg, que precisa e deve ser investigado.
Fonte: Viomundo
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