sábado, 1 de junho de 2024

Quando a Amazônia começou a morrer

O general Ernesto Geisel foi o presidente da república que teve a mais demorada permanência contínua na Amazônia. Em dezembro de 1973, ele percorreu oito mil quilômetros. Durante seis dias na região, esteve em algumas das principais cidades, inspecionou obras públicas (todas elas executadas pelo governo federal), conversou com 600 pessoas, ouviu palestras e carregou centenas de quilos de papéis que lhe entregaram, com estudos científicos e técnicos sobre o desenvolvimento regional.

Formalmente, ele ainda nem era o presidente da república. Em plena ditadura, porém, a sua eleição pelo Congresso Nacional era um detalhe, já que era o candidato oficial do regime militar. O parlamento iria apenas carimbar sua nomeação.

O homem forte na tropa era o seu irmão, o general Orlando Geisel, que podia ter sido o candidato, mas optou pelo irmão mais novo. Ernesto era até então presidente da Petrobrás, cargo que assumiu em função da presunção de possuir conhecimento aprofundado do setor de energia, sobretudo o de gás e óleo. Era tido mesmo como um dos mais qualificados generais do Exército, um autêntico intelectual, a despeito das decisões equivocadas que viria a adotar no seu mandato presidencial.

O general acreditava que a ocupação da maior fronteira de recursos naturais do planeta exigia um planejamento rigoroso, competente e centralizado em Brasília. No poder, deu força de lei ao plano de desenvolvimento quinquenal que sua equipe prepararia. Dela participaram até notórios esquerdistas ou mesmo comunistas, sob o controle decisivo do mais importante ministro civil do governo. Era exatamente o chefe do planejamento, o economista paraibano João Paulo dos Reis Velloso, um pensador liberal capitalista, até hoje na ativa.

Geisel deu prioridade à Amazônia no justo momento em que a região iria ser incorporada de vez – e profundamente – como fornecedora de matérias primas e insumos básicos às economias nacional e internacional. Essa importância resultava do fato que iria revolucionar a então vigente divisão internacional do trabalho.

Derrotadas mais uma vez no confronto militar com Israel, as nações árabes decidiram recorrer a uma nova arma política: o preço do petróleo. A Opep, cartel do qual participavam os maiores produtores, elevou o preço do barril cinco vezes, encarecendo enormemente – e de súbito – o custo da energia.

O país mais atingido por essa medida foi o Japão, que era o maior competidor comerciais e econômico dos Estados Unidos. As 41 empresas, que garantiam o suprimento de toda demanda industrial interna por alumínio, se tornaram inviáveis. Teriam que ser fechadas. O Japão, como outros países mais desenvolvido, enormes consumidores de energia, teriam que se transferir para outras regiões, onde a energia fosse abundante e mais barata. Um desses destinos era a Amazônia. Ela deveria ser devassada logo.

Dois meses antes da viagem de Geisel, chegou a Belém para uma excursão em busca de informações uma equipe integrada pelo presidente da siderúrgica Sumitomo, a terceira maior siderúrgica do Japão, acompanhado pelo chefe do departamento de matérias primas da empresa. No ano seguinte começaram as pesquisas para a identificação de fintes de energia e de minérios destinados ao Japão.

Em 1976, o já presidente Geisel foi a Tóquio assinar os acordos e tratados que fariam os dois governos implantar no Pará a quarta maior hidrelétrica do mundo, em Tucuruí, no rio Tocantins, e a 8ª maior fábrica de alumínio primário, a atividade industrial que mais consome energia. O Brasil daria total colaboração a essas duas iniciativas, que colocariam a Amazônia no circuito das maiores unidades capitalistas do mundo. Definitivamente.

Na visita de 1973, quando os jornalistas pediram a sua opinião sobre a maior controvérsia então travada, em torno da decisão sobre por onde exportar o melhor minério de ferro do planeta, identificado apenas seis anos antes, em Carajás, no centro do Pará, o candidato militar evitou a intenção de colocá-lo em confronto com o general presidente, Garrastazu Médici, que viria a decidir pelo escoamento através do Maranhão e não do Pará.

Geisel declarou que cumpriria a decisão do governo Médici. Qualquer que ela fosse. Enfatizou: “Quando se procura uma solução que vise ao interesse nacional. Não se pode ficar olhando para os interesses regionais. Nesta hora, devemos esquecer todas as fronteiras do Estado, pensando apenas no que é melhor para o país”.

A partir de então, o melhor para a Amazônia seria determinado, de forma autoritária, a partir do Palácio do Planalto, em Brasília. O melhor para o governo federal, centralizador como nunca antes, seria fazer da Amazônia uma usina de dólares, graças à exportação de matérias primas intensivas em energia. Naquele final do primeiro choque do petróleo, seria a Ásia, principalmente o Japão. Agora, a China.
Para isso, o que a Amazônia era ou significava chegou ao fim, Fim que se aproxima a cada novo ano de destruição, principalmente das suas florestas.

 

¨      Mercados globais e seus efeitos sobre a exploração de recursos na Pan-Amazônia

O capital de investimento flui quando os preços estão altos, mas as empresas reduzem os investimentos quando esses preços caem. No entanto, as empresas não costumam abandonar os projetos que já estão em andamento; em parte, isso é uma resistência natural à baixa de um investimento existente, mas empresários experientes também sabem que os mercados são cíclicos. Se as empresas desejam “lucrar” quando os preços estão altos, elas devem ter capacidade instalada para aumentar a produção quando o preço for o correto.

Os preços dos minerais industriais estavam em níveis historicamente baixos antes de 2000, mas aumentaram drasticamente nas duas décadas seguintes, quando a China iniciou sua construção de infraestrutura sem precedentes, passando de uma economia emergente para uma superpotência global. A demanda por minerais industriais foi espelhada pelo aumento da demanda por petróleo e gás em uma época em que os suprimentos eram limitados pela guerra e pela geopolítica.

Coincidentemente, o preço do ouro quadruplicou devido às políticas fiscais e monetárias nos Estados Unidos, parcialmente resultantes da crise de crédito de 2008. Essa combinação de condições de mercado favoreceu a expansão do setor mineral na Pan-Amazônia, que viu as receitas aumentarem em 500% entre 2000 e 2013.

Após a queda dos preços das commodities em 2014, a maioria das empresas restringiu suas estratégias de investimento. As empresas chinesas foram a exceção; elas estavam com muito dinheiro e responderam a uma filosofia de gestão que considera o interesse estratégico do Estado. Desde então, elas reduziram os investimentos, provavelmente devido à redução da demanda chinesa associada a políticas para desacelerar o desenvolvimento da infraestrutura.

Como os mercados de commodities minerais são voláteis, as empresas modelam a viabilidade de um projeto baseando-se em um preço que está abaixo do valor médio de mercado calculado ao longo de pelo menos uma década. Por exemplo, os projetos de ouro são modelados segundo um preço internacional de cerca de US$ 1.200 por onça troy, que é apenas setenta por cento de seu preço em janeiro de 2023. As empresas petrolíferas já presumiram que o preço de longo prazo do petróleo era de cerca de US$ 100 por barril, mas, após o colapso dos preços do petróleo em 2015, elas reduziram essa referência para US$ 50, o que representa cerca de cinquenta por cento do custo de produção de um campo de petróleo existente no Equador.

Entre 2020 e 2022, o preço do petróleo caiu para uma baixa notável de US$ 30 devido à recessão global causada pela COVID-19, mas se recuperou para US$ 130 após a invasão russa na Ucrânia.

A partir de janeiro de 2023, outro boom de commodities parece estar em andamento. Em parte, isso se deve à guerra na Ucrânia e às dimensões e à duração (ainda desconhecidas) do regime de sanções imposto à Rússia pelos Estados Unidos, pela União Europeia e por seus aliados no Pacífico Asiático. Esse boom de commodities será diferente, no entanto, devido à crescente demanda por determinados minerais estratégicos necessários para fabricar os componentes e a infraestrutura exigidos pela transição energética dos combustíveis fósseis para a energia renovável. Esses minerais existem na Pan-Amazônia em quantidades globalmente significativas e haverá uma pressão econômica significativa para desenvolver esses recursos.

·        A realidade do risco político

Diferentemente dos direitos minerais nas economias avançadas, os recursos subterrâneos em todos os países da América Latina pertencem ao Estado, independentemente do proprietário da terra. Isso inclui propriedades privadas, mas também propriedades e territórios comunitários que foram cedidos pelo Estado a grupos indígenas e comunidades tradicionais. Consequentemente, a relação entre o Estado e a empresa privada define a responsabilidade legal que é dividida entre o Estado e o operador, bem como a distribuição dos custos e benefícios que acompanham o desenvolvimento da mineração e dos campos de petróleo. Os proprietários de terras podem não ter direitos legais sobre os benefícios econômicos, mas têm o poder de interromper um desenvolvimento por meio de protestos civis, o que explica a criação de esquemas de royalties para favorecer as comunidades locais.

Os setores extrativistas são de “capital intensivo”, um termo usado para descrever empresas que exigem uma grande aplicação inicial de capital financeiro antes da geração de renda em dinheiro. As minas industriais podem exigir mais de um bilhão de dólares para serem desenvolvidas; mais de uma década, às vezes duas, separam a descoberta de um depósito mineral e sua eventual exploração. O desenvolvimento de petróleo e gás é ainda mais caro, devido ao custo de pesquisas sísmicas e poços exploratórios – muitos dos quais fracassam – que precedem a decisão de desenvolver um campo.

O próprio tempo é um fator de risco porque tempo é dinheiro; é um clichê porque é verdade. Um atraso pode transformar um investimento promissor em um empreendimento medíocre, enquanto uma calamidade ambiental ou uma revolução política pode se transformar em um desastre financeiro. Os empreendimentos bem-sucedidos são bem-sucedidos porque seus proponentes identificam e gerenciam com eficácia as várias formas de risco que podem colocar em perigo seus investimentos.

O crescimento das receitas do setor extrativista na década de 2000 aumentou o risco político que reflete o histórico de turbulência política da América Latina. A região passou por um boom de investimentos após a privatização de empresas estatais na década de 1990, o que catalisou o aumento de novos projetos que amadureceram na década de 2000 e possibilitou o crescimento fenomenal das receitas do governo durante o boom das commodities.

A onda de políticas neoliberais levou a uma reação negativa na Bolívia e no Equador, mas, apesar da retórica dos governos de esquerda, o desenvolvimento e a exploração de minérios continuaram sendo, em grande parte, domínio do setor privado. Somente a Venezuela excluiu o investimento do setor privado, e sua economia de recursos naturais, incluindo hidrocarbonetos e minerais industriais, é atualmente apenas uma fração do tamanho que tinha na década de 1990. A eleição peruana de 2021 destacou o potencial de risco político com a eleição de um candidato socialista que (brevemente) expressou o desejo de nacionalizar setores estratégicos. Sua destituição do cargo em dezembro de 2022 levou a protestos generalizados que ameaçaram desestabilizar ainda mais o país.

·        Partes interessadas e interesses adquiridos

As receitas geradas pela exploração de minerais industriais e hidrocarbonetos fluem para os balanços patrimoniais de empresas com acionistas em seis continentes, incluindo várias que estão entre as maiores entidades corporativas do planeta. Suas operações são apoiadas por uma infinidade de empresas locais e nacionais, seja como contratadas ou como fornecedoras de insumos e serviços essenciais. Juntas, essas corporações multinacionais e seus parceiros domésticos criam dezenas de milhares de empregos que abrangem desde o espectro social do trabalhador comum até o engenheiro especializado. Os escritórios corporativos nas capitais regionais e nacionais geralmente empregam membros das elites sociais e políticas. Como as empresas em todo o mundo, elas exercem influência comprando publicidade nos principais meios de comunicação, participando de câmaras de comércio e fazendo lobby junto aos legisladores para que formulem políticas que beneficiem seu setor.

Os governos estão predispostos a apoiar os setores de mineração e hidrocarbonetos porque eles são voltados para a exportação e geram receitas para o Estado. Com pouquíssimas exceções, as empresas de mineração podem contar com o apoio dos ministérios das finanças que estão em sintonia (obcecados) com a necessidade de manter um balanço de pagamentos positivo. A mesma lógica vale para a produção de petróleo e gás, mas é reforçada pela produção doméstica que alivia a necessidade de importação de energia. Os ministérios da Fazenda estão entre os ministérios mais influentes do governo, em parte por causa de seus conhecimentos técnicos, mas também por causa de suas estreitas relações com os bancos multilaterais de desenvolvimento que veem o setor extrativista como um componente essencial da economia global. Além disso, os empréstimos baseados no setor extrativista atraem os funcionários dos bancos de desenvolvimento, que são avaliados por sua capacidade de fechar negócios e gerar receita de juros para a instituição.

Uma das tarefas mais importantes das agências multilaterais de desenvolvimento é organizar e financiar estratégias nacionais de desenvolvimento; essas estratégias orientam as carteiras de empréstimos e refletem as prioridades de desenvolvimento de longo prazo dos governos.

Nas últimas duas décadas, a orientação filosófica desses documentos evoluiu gradualmente para incorporar os conceitos de sustentabilidade; no entanto, eles mantêm os componentes principais dos modelos econômicos convencionais. Os planos estratégicos nacionais geralmente buscam agregar valor às commodities de recursos naturais e são acompanhados de iniciativas para transformar commodities em bens industriais. Isso requer energia, às vezes muita energia, o que promoveu a expansão da energia hidrelétrica e da bioenergia.

No século XX, as estratégias de desenvolvimento emanavam, em grande parte, de agências nacionais, mas atualmente elas também estão sendo geradas por governos regionais, onde as autoridades eleitas são menos comprometidas com o desenvolvimento sustentável e continuam sendo uma força poderosa para promover a expansão do setor extrativista.

As elites locais tendem a ter uma orientação filosófica baseada em modelos de negócios convencionais e, embora muitos façam afirmações retóricas sobre sustentabilidade e conservação, simultaneamente apoiam o setor extrativista.

Os setores extrativistas também se beneficiam de uma troca de conhecimentos técnicos entre as empresas privadas e os ministérios do governo. Embora possam estar vinculados à ética profissional, os funcionários do governo geralmente compartilham com seus colegas corporativos uma visão que reflete suas próprias ambições pessoais. Eles acreditam que um setor mineral robusto e lucrativo é de interesse nacional. Muitos estão comprometidos com os conceitos de sustentabilidade e estão convencidos de que suas ações para promover as melhores práticas são benéficas para o setor e para a nação.

As partes envolvidas na economia convencional são poderosas e bem conectadas, mas precisam enfrentar um movimento contrário que se opõe ao desenvolvimento contínuo do setor extrativista. Organizados como organizações não governamentais (ONGs), os defensores do meio ambiente atuam em âmbito global, nacional e local. Alguns são adeptos de guerras de relações públicas e se opõem rotineiramente a todos os tipos de desenvolvimento mineral, enquanto outros buscam reformar o setor promovendo práticas recomendadas nos setores ambiental e social.

Ambos os grupos dependem de informações fornecidas por acadêmicos especializados em identificar e quantificar os impactos ambientais e sociais que influenciam um processo regulatório conhecido como avaliação de impacto ambiental (EIA).

Os críticos afirmam que esse processo é tendencioso em favor das empresas e das partes interessadas governamentais; uma opinião compartilhada pelas comunidades locais que, compreensivelmente, são reticentes em aceitar uma alteração maciça em sua paisagem local. As partes interessadas mais recalcitrantes são as comunidades indígenas que habitam a paisagem do projeto há décadas, séculos ou há muito mais tempo.

Os grupos indígenas sabem, por experiência própria, que os benefícios da extração mineral são de curto prazo e que os danos serão permanentes. Também sabem que a maior parte dos recursos econômicos, inclusive a receita de royalties e impostos, fluirá para governos locais e regionais que raramente são controlados por sua comunidade. No passado recente, eles foram totalmente despojados de suas terras, seja por terem sido deslocados da própria concessão mineral ou por uma enxurrada de imigrantes que foram atraídos por programas governamentais para se estabelecerem nas terras adjacentes à mina (por exemplo, em Parauapebas, Pará, Brasil) ou ao longo das estradas de acesso construídas para atender aos campos de petróleo (por exemplo, em Succumbios, Equador).

Os grupos indígenas tornaram-se adeptos da defesa de seus direitos. Por sorte, eles possuem uma arma jurídica extremamente poderosa chamada “Consentimento Livre, Prévio e Informado”. Conhecido pela sigla FPIC, esse princípio está consagrado em um tratado internacional que obriga os governos e as empresas a se reunirem com as comunidades afetadas e explicar, em linguagem acessível, as dimensões do desenvolvimento proposto. O projeto só pode prosseguir se conseguem o consentimento para sua execução. Como o tratado foi ratificado pelas legislaturas nacionais, seus elementos são aplicáveis de acordo com os códigos civis, administrativos e penais da nação signatária. Essencialmente, as comunidades indígenas obtiveram poder de vetar de fato o desenvolvimento de qualquer recurso mineral localizado abaixo ou adjacente às suas terras territoriais.

 

Fonte: Amazônia Real/Mongabay

 

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