sexta-feira, 28 de junho de 2024


 

PL do Estupro: o poder da direita se alimenta do medo, da tristeza e da culpa da população

COMO DE COSTUME, começo esse texto com uma rápida digressão sobre o passado. Mais especificamente, sobre o conteúdo de um livro publicado há pouco mais de três séculos.

A “Ética demonstrada à maneira dos geômetras”, ou a “Ética de Espinosa”, é uma obra de 1677, publicada poucos meses após o falecimento de seu autor, o filósofo Baruch de Espinosa. O livro, não sem motivos, é considerado como a sua obra máxima, e nos apresenta um verdadeiro tratado sobre a natureza de Deus e a origem da moral ocidental.

A obra foi criticada e banida pela Igreja Católica, sendo considerada pelos censores como uma espécie de “manifesto ateu”, e taxada como um amontoado de blasfêmias proferidas por um inimigo “histórico” do cristianismo; a família de Espinosa, judia, foi perseguida pela inquisição portuguesa.

E esta não foi a primeira punição religiosa do filósofo por conta de suas ideias controversas sobre a bíblia judaica, aos 23 anos de idade, ele foi alvo de um chérem, isto é, foi expulso da comunidade judaica de Amsterdã, da qual fazia parte. Inclusive, foi renegado pela sua própria família.

Mas o que havia de tão controverso nas ideias de Espinosa que lhe garantiram o desprezo de judeus e cristãos?

Para além de suas teses metafísicas sobre a natureza do real e a substância divina, o aspecto mais escandaloso da Ética talvez seja a denúncia da chamada trindade moralista, os alicerces da moral e da política ocidental.

A saber, o escravo, o tirano e o padre.

Importante dizer que o escravo de Espinosa não é a pessoa que foi obrigada, por meio da violência ou da força, a se sujeitar ao poder de outrem, mas o indivíduo “livre” que se subordina por conta de seus próprios valores, por conta de suas “paixões tristes”. O tirano, por sua vez, é aquele que explora essas paixões para governar, enquanto o padre é o próprio porta-voz de toda essa estrutura moral.

Há um vínculo profundo e implícito entre esses três personagens: o grande trunfo do tirano não é subjugar seus vassalos, o escravo, por meio da força, mas por meio de temores e promessas dissimuladas sob a forma de uma religião ou de um sistema moral.

Promessas e temores que o próprio escravo defende em nome de recompensas futuras, o céu, a prosperidade material, a ascensão social, etc.… O que os une é, justamente, o medo daquilo que lhes escapa, a própria liberdade.

O tirano teme a liberdade, pois ela inscreve um limite para os seus poderes, enquanto o escravo a teme por medo da providência divina, da sanção da própria sociedade. E nessa estrutura, a igreja e a sinagoga teriam um papel crucial, pois seriam elas as responsáveis por deprimir o povo e recrudescer o seu pensamento, impedindo-o de imaginar um mundo para além do medo, da tristeza.

Isso lhe parece familiar?

Pois então voltemos ao presente, mais especificamente, para os eventos das últimas semanas, quando a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, mais conhecido como PL da Gravidez Infantil ou PL do Estupro.

É uma proposta obtusa que equipara a interrupção de gestações acima de 22 semanas — direito previsto em lei desde 1940 para casos de estupros, riscos à pessoa gestante ou anencefalia — ao crime de homicídio. Inclusive, prevendo penas maiores para a pessoa gestante do que para o seu agressor no caso de um estupro.

Felizmente, a manobra política acabou gerando o efeito reverso do pretendido e deu início a uma ampla mobilização social puxada por grupos feministas que contou, inclusive, com o apoio, ainda que tímido, de atores inesperados, como o apresentador Luciano Huck.

Apesar do fracasso e do recuo momentâneo, a estratégia da direita brasileira está cada vez mais cristalina: promover o recrudescimento. Recrudescimento não apenas da política, mas, por meio dela, o recrudescimento da própria imaginação da população brasileira, tornando-a cada vez mais afeita e aninhada em seus discursos conservadores extremistas.

De fato, ao contrário do que se imagina, a população brasileira não está tão alinhada com a política conservadora. Para que se tenha uma ideia, a pesquisa Datafolha sobre a PL do Estupro aponta que a maior parte da população não aprova a medida: 66% é contra.

Até mesmo os evangélicos, costumeiramente apontados como mais suscetíveis a esse discurso, desaprovam a ideia. Apenas 37% desse segmento concorda com o projeto de lei.

E por isso mesmo, políticos da direita lutam tanto para controlar políticas educacionais, políticas de saúde pública e o acesso a informações. Eles sabem que, por meio dessas ferramentas, podem trabalhar diretamente no imaginário da população, tornando-a cada vez mais receptiva ao seu projeto de poder.

De fato, quando olhamos bem, percebemos que esse projeto de lei não é “apenas” sobre o aborto em si ou sobre o controle dos corpos de pessoas com útero, é também sobre o controle do próprio imaginário social a respeito dessas pessoas.

E, a partir disso, desse espaço, estabelecer o controle sobre aquilo que se pensa e imagina sobre outros temas. Como os fascistas do passado – vide o regime de Mussolini -, almejam, por meio do controle das pessoas com útero, das mulheres, construir e consolidar um único modo de existência.

Obviamente, um modo de existência controlado por eles.

Aproveitam-se, inclusive, do histórico descaso da esquerda partidária, em especial dos governos petistas, para alavancar o seu domínio sobre estas pastas. Enquanto essa esquerda se foca apenas na manutenção de sua política desenvolvimentista, a direita avança sobre (e sob) a subjetividade da população.

Espalhando a sua mensagem por meio das igrejas, por meio da desinformação, mas também por meio (ou pela falta) de políticas públicas voltadas para o tema. Avançam no seu projeto de construir um regime de medo, de temores e sujeitos deprimidos que são verdadeiramente incapazes de imaginar uma outra forma de viver.

Eles sabem que a própria ideia de que uma gravidez possa ser interrompida, independente do motivo, é capaz de suscitar uma série de questionamentos que ameaçam esse projeto de poder.

Eles sabem que o aborto é, em si mesmo, uma ideia poderosa, pois ele nos diz algo muito importante sobre a autonomia e a liberdade dessas pessoas que, historicamente, são oprimidas pelo sistema.

Tal como os tiranos de Espinosa, o poder dessa direita se alimenta do medo, da tristeza e da culpa da população. E por esta razão, temem tanto a liberdade. Em especial, a liberdade daquelas pessoas cuja opressão é um dos principais alicerces de todo esse sistema.

Por isso temem tanto a liberdade das mulheres, das pessoas com útero. Eles sabem o que ela verdadeiramente representa.

 

           Filho de Olavo de Carvalho é acusado de tortura e estupros por quatro mulheres

Pelo menos quatro mulheres acusam o astrólogo e empresário Tales de Carvalho, filho do escritor Olavo de Carvalho, de estupro, tortura física e psicológica. Tales, um dos proprietários do Instituto Cultural Lux et Sapientia (ICLS), é apontado pelas mulheres como responsável pelos abusos.

Calinka Padilha de Moura, ex-esposa de Tales de Carvalho, junto com suas duas filhas mais velhas, Julia Moura de Carvalho e Ana Clara Moura de Carvalho, e uma mulher que ficou sob condição de anonimato, estão entre as mulheres que fizeram as denúncias à coluna de Guilherme Amado, no Metrópoles. Elas alegam que, ao longo de mais de duas décadas, foram submetidas a episódios de sadismo e crueldade. Além disso, afirmam que Tales criou uma espécie de seita ao redor do Instituto Cultural Lux et Sapientia (ICLS). Ele nega as acusações.

Todas as denunciantes descreveram experiências traumáticas. Em março deste ano, Tales de Carvalho foi notícia nos jornais quando a família de uma estudante de Goiás obteve uma decisão judicial obrigando a jovem, de 18 anos, a retornar ao estado. A jovem havia se mudado para Curitiba dois meses antes para morar com Tales.

Para que ela comparecesse diante de um juiz e confirmasse se sua mudança foi voluntária, a família, com ajuda de um advogado, teve que acionar a Polícia Federal e a polícia paraguaia. A estudante foi localizada na cidade paraguaia de Presidente Franco, na fronteira com Foz do Iguaçu, na casa de Luiz de Carvalho, irmão de Tales. Dias antes, sob ordens de Tales, ela havia sido enviada para lá. Inclusive, a reportagem da Fórum à época obteve o áudio enviado por Tales à família.

Segundo as ex-mulheres de Tales de Carvalho, seu irmão Luiz Gonzaga de Carvalho, conhecido como Gugu, é considerado o "guru" do Instituto Cultural Lux et Sapientia (ICLS). Gugu, uma figura conhecida na ultradireita, foi amplamente apoiado por seu pai, Olavo de Carvalho, que chegou a gravar um vídeo recomendando os cursos do ICLS e exaltando as qualidades de Gugu.

O Instituto Cultural Lux et Sapientia (ICLS) oferece uma ampla gama de cursos, abordando temas que vão desde religião e astrologia até “segredos para um bom matrimônio” e leituras de clássicos como Platão e Shakespeare. No entanto, de acordo com as denúncias, Tales de Carvalho utiliza o ICLS como um meio para arrecadar dinheiro de "benfeitores" – alunos convencidos a seguir os preceitos da entidade e que contribuem mensalmente com somas que podem alcançar até R$ 100 mil. Além disso, as denunciantes alegam que Tales também utiliza o ICLS como um meio para encontrar múltiplas esposas.

           Calinka Moura

Tales chegou a ter quatro mulheres ao mesmo tempo, sob o mesmo teto. A primeira a se casar com ele foi Calinka, em setembro de 1997, quando ela tinha 18 anos e ele, 22. Na época, ambos eram budistas, mas Tales se converteu ao islamismo em 1998 e convenceu Calinka a fazer o mesmo.Naquela época, residindo em São Paulo, eles mantinham uma convivência limitada com Olavo, que já estava separado de Eugênia, mãe de Tales. Sua vida parecia comum, mas, segundo o relato de Calinka, situações perturbadoras estavam prestes a acontecer.

Após cerca de quatro anos de casamento, Calinka relata que Tales informou sua intenção de ter uma segunda esposa, uma criança de 12 anos na época. Em resposta à coluna, Tales negou que a esposa, agora com 35 anos e ainda casada com ele, tivesse essa idade na época. Em uma nota enviada ao Metrópoles por seu advogado, Tales afirmou que ela tinha 14 anos, uma idade na qual uma relação sexual não seria considerada estupro de vulnerável.

“Eu não podia falar nada. Eu era a burra, sabe? Que não tinha estudado, que era ignorante. Então, eu sempre tinha que ficar quieta, porque se eu falasse a minha opinião, eu era ridicularizada. Quando ele pediu ela em casamento, ela tinha 12 anos”, afirma. 

Em 2003, em uma mensagem enviada por e-mail à Camila, ele diz que “sentia algo muito forte” pela menina. “[….] Embora você saiba que eu te amo mais que tudo (sic) eu não posso negar que eu sinto algo forte por ela, eu sei que é difícil para uma mulher compreender isto, por isso eu não espero que você me perdoe e me compreenda. Eu tive varias visões e sonhos aqui sobre este assunto. […] Nestas visões varias (sic) pessoas apareciam tendo um destino glorioso inclusive (sic) você, eu, [a moça com 14 anos na época, cujo nome a coluna, por entender que ela até hoje é uma potencial vítima, decidiu não informar], [pai da moça com 14 anos na época], e pasme, minha mãe. Portanto, não tenha maus sentimentos com relação à [moça com 14 anos na época] e minha mãe, você sempre será superior a elas para Allah e para mim”, escreveu o filho de Olavo.

           Torturas

De acordo com a esposa, as torturas começaram em 2007 e duraram dois anos, após a separação dos dois. Quando voltaram que as agressões se tornaram mais frequentes. “Ardia que nem fogo. Ele disse que havia pesquisado que o fio de telefone no corpo molhado era bom porque doía mais e não deixava marca”, relatou ela. Além disso, segundo ela, ele as obrigava a assistir vídeos de crianças sendo estupradas.

           Júlia Moura e Ana Clara Moura

Segundo o Metrópoles, as duas filhas de Tales,, Julia e Ana Clara, hoje com 26 e 24 anos, respectivamente, encontraram no computador do pai, ainda crianças, vídeos de estupros de meninos e meninas.

"Não quero ver, não quero ver e ele forçava a gente a ver”, disse Calinka ao jornalista Guilherme Amado.

De acordo com relatos de Calinka e das filhas, Tales também contraiu matrimônio com uma terceira mulher, de origem marroquina, que ele havia conhecido à distância. A chegada dela ao Brasil, em 2011, trouxe um breve alívio ao ambiente de violência na casa. No entanto, segundo Calinka, Tales não poupava maus-tratos à terceira esposa, criticando-a por ser “feia” e “mais velha do que o esperado”. A moça acabou sendo enviada de volta ao Marrocos em junho de 2011, apenas três meses após sua chegada, corroborando o relato de Calinka. “Ele era uma figura assustadora a maior parte do tempo”, resumiu Julia.

Após esses eventos, Tales teve matrimônio com mais duas brasileiras. A primeira, com quem ele permaneceu por quase uma década, deixou-o em fevereiro deste ano. A segunda esposa era uma jovem de 17 anos que ele conheceu em um site de relacionamentos e com quem ficou por aproximadamente três anos. Ela também era aluna do Instituto Cultural Lux et Sapientia (ICLS).

           "Não sou bandido", disse Tales, acusado de aliciar jovem de 19 anos

A Fórum teve acesso ao áudio enviado por Tales à família na época. O filho de Olavo é representante no Brasil da Tariqa Alawiyya, uma confraria esotérica islâmica, e é conhecido como Sidi Muhammad Issa. "Eu não sou bandido, sou professor, empresário. Porque ela fez o que fez? Eu sou mais velho que ela e sou da religião pela qual ela se converteu", disse Tales.

A jovem, que morava em Catalão, cidade a 261 quilômetros de Goiânia, foi localizada pela Polícia Federal (PF) no Paraguai, juntamente com Tales após advogados da família acionarem as autoridades, dizendo que ela foi aliciada. Ela estava na casa de Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, irmão de Tales.

Segundo a família, a jovem teria deixado Goiás para viver com Tales em Curitiba. O filho de Olavo disse que estava no Paraguai a passeio, para visitar um irmão. A narrativa foi confirmada pela jovem, quando ela foi encontrada pela PF. " Fui passear, queria ver meu cunhado.

Segundo a família, a jovem passou a interagir com Tales após ter interesse, durante as eleições de 2018, aos vídeos e cursos de Olavo de Carvalho. À época, ela tinha 13 anos e Olavo, entre outros impropérios, atacava Caetano Veloso o acusando de pedófilo. Processado pelo cantor, o guru bolsonarista foi condenado e obrigado a indenizá-lo em mais de R$ 2 milhões.

A família alega ainda que ela tem problemas psiquiátricos e pode ter sofrido assédio psicológico. Advogados de Tales negam e diz que a jovem viajou para Curitiba por vontade própria.

Em mensagem de áudio, após ser contatado pela família, o filho de Olavo de Carvalho disse que a jovem "fugiu para casar". "De hoje em diante, ela presta contas para mim sobre onde ela está e o que ela está fazendo, assim como eu presto satisfação para ela de onde eu estou. É duro, é duro, mas não tem outra opção a não ser aceitar, porque isso não vai mudar. Não é a pressão de vocês que vai fazer ela se divorciar, me largar”, disse.

No entanto, diante da possibilidade de ser processado, ele voltou atrás e disse não está de "sacanagem". "Ela é maior de idade. Eu não tô de sacanagem. Eu peço perdão, mas respeitei a vontade dela e eu vou tentar consertar, sem briga. Se foi errado, eu peço perdão", disse ainda o filho de Olavo, que alega não ser "namoradinho de internet" da garota.

Antes de se tornar um cristão radical, Olavo de Carvalho também fez parte da correntes islâmica e, segundo Heloísa Carvalho, irmã de Tales, chegou a ter três esposas muçulmanas.

"Hoje ele se diz católico desde criancinha, mas foi muçulmano e levou todos os quatro filhos, minha mãe a as esposas dele na época para o islamismo. Chegou a ter três esposas muçulmanas ao mesmo tempo. Não batizou nenhum dos quatro filhos do primeiro casamento", contou Heloisa em entrevista ao jornal O Globo em 2019. Ela se converteu ao catolicismo em 2015.

           O que diz acusado

Em resposta às 13 perguntas enviadas pelo Metrópoles a Tales de Carvalho sobre os relatos de Calinka, Julia e Ana Clara, além de sua atuação no ICLS, o filho de Olavo de Carvalho, por meio de seu advogado Frank Reche Maciel, declarou que as acusações de sua ex-mulher foram usadas como tentativa de “privá-lo da guarda de sua filha menor”. Segundo a nota, "a Justiça não deu crédito a essas mentiras, a guarda foi decidida em favor de Tales e Calinka se comprometeu a não repeti-las em troca da extinção de duas queixas-crime (vã promessa, como se vê)".

Sobre o casamento com a menina de 12 anos, a nota afirmou que é um "fato público que Tales e ela se enamoraram quando ela tinha 14 anos, passando a morar juntos quando ela já contava com 18 anos, depois do casamento segundo a religião islâmica". A reportagem do Metrópoles tentou entrar em contato com a mulher que ainda vive com Tales, a quem Calinka afirmou que ele pediu em casamento aos 12 anos, mas não obteve sucesso. Luiz Gonzaga de Carvalho, conhecido como Gugu e apontado como "guru da seita do ICLS", também foi contatado pelo jornal por telefone. Ao ser informado sobre o conteúdo da reportagem, ele teria desligado abruptamente.

 

Fonte: Por Orlando Calheiros, em The Intercept

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