Os ventos
mudaram para o governo Lula
O governo Lula assumiu com a
vitória mais difícil de todo período democrático da Nova República. Sua eleição
foi produto de uma intensa mobilização social, da revolta dos de baixo contra
a austeridade liberal – com seu arrocho social – e das lutas por sobrevivência e
dignidade capitaneadas pelas mulheres, pelas pessoas negras, pelos povos
indígenas e a população LGTTQIA+.
A “Frente Ampla” foi composta por praticamente todos os setores com o mínimo de
decência republicana e democrática no país, entendendo que o adversário
representava um arranjo que não deveria ser uma alternativa nos quadros
constitucionais brasileiros. Adversário que, aliás, fez uso da maior
manipulação da máquina pública vista no século XXI, indo desde a criação de
benefícios aleatórios em período eleitoral – que são, obviamente, proibidos –,
táticas de intimidação e ameaça de morte de quem expressasse sua preferência por Lula até
a repressão direta e ilegal, inclusive contra ordem judicial, da Polícia
Rodoviária Federal.
Por
isso a vitória esmagadora de Lula foi transformada numa minguada diferença, chegando-se ao
ponto de viver, em 8/1, uma
tentativa de golpe de Estado protegida pelos militares.
Foi
nesse cenário que Lula assumiu. Seu apoio institucional, ainda mais com o 8/1, foi
geral. Até mesmo a mídia tradicional, usualmente antipetista, freou seu ímpeto e focou a artilharia no golpismo bolsonarista.
Mas,
de uns tempos para cá, os ventos mudaram.
O
primeiro ano do governo foi tenso, mas partidos do Centrão de forte vocação oposicionista aceitaram se aliar e
assumir ministérios, Haddad foi razoavelmente admitido pelo mercado e pautas centrais como
o arcabouço fiscal e a reforma tributária foram aprovadas. Como era previsto,
os programas sociais vitaminaram a economia e melhoraram as taxas de emprego e
renda. Os índices “surpreenderam” os pessimistas, estando ainda hoje quase
sempre acima das expectativas.
Tudo
começou a mudar quando Haddad começou a implementar pautas redistributivas de corte de
privilégios para equilibrar as contas públicas. Lobismos implícitos, como os
promovidos pelas próprias empresas de comunicação que adotaram um discurso
ambíguo em relação aos cortes, uma vez que beneficiárias das desonerações,
começaram a aparecer. Além disso, Lula também começou a adotar uma posição agressiva na política
externa em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia – com uma postura de conciliação, e não apoio –, flertou com o
“Sul Global” e criticou o genocídio em Gaza.
Ao
mesmo tempo, ia-se consolidando um novo consenso. Ele começou no mercado
financeiro, com agências de rating publicando relatórios em que Tarcísio de Freitas era aplaudido como gestor alinhado com os interesses
privados e potencial candidato à Presidência em 2026. Uma famosa consultoria,
por exemplo, já em março sintetizava a fórmula de Tarcísio como um “Bolsonaro melhorado” capaz de contemplar a
centro-direita, além dos seus naturais habitats na direita e extrema direita. E
então foi a vez do bastião do conservadorismo, Estadão, assumir a posição em
editorial, para algum tempo depois ser seguido
por Folha e Globo.
Ou
seja, o establishment adotou Tarcísio. Com uma vantagem: ao
estar no interior do bolsonarismo, ele tem ainda apoio da base fascista que
herda de Bolsonaro.
Assim: confluência entre mercado financeiro, latifundiários (totalmente
alinhados ao bolsonarismo), empresários arrivistas (boa parte da grana
nacional), e alinhamento entre a mídia estabelecida e o “partido digital”
bolsonarista. No primeiro ano de governo, a atitude de Campos Neto chegou até a ser escrutinada pela mídia alinhada com o
neoliberalismo, o que é surpreendente. No segundo, as coisas mudaram. O
alinhamento ocorreu por duas vias: críticas da falta de “confiança” na parte
fiscal do governo, com o evitamento do corte de gastos, e ataque ao STF, que estaria se excedendo ao investigar e
tomar medidas contra a extrema direita.
Lula estava
preparado para sofrer uma enxurrada de projetos absurdos no fim da gestão
de Lira.
Afinal, Lira não é mais que Presidente do Sindicato, e seu poder deriva
diretamente da caneta. E, assim como Cunha,
ele tem aquela marca do Poderoso Chefão, arbitrário e negociador, forte e
poroso. (Aliás, recentemente ouviu-se falar de interferência direta do
próprio Cunha no Congresso). Com o fim do mandato, Lira iria desaparecer. Por isso, era bem provável um último
bombardeio como tentativa de se perpetuar por meio de um sucessor.
Mas
a expectativa de Lula era um 0-0. Ou seja, o Congresso aprovaria algumas coisas, mas
manteria a pauta econômica intacta, e a partir de julho se dispersaria para as
eleições municipais. Aí, o governo voltaria ao jogo e poderia marcar seus gols.
O
problema é que tinha uma pedra no caminho. Lula não contava com uma
reaglutinação tão rápida da extrema direita, e com o apoio midiático a ela,
causando pressão sobre seu governo e as expectativas. A mídia abandonou Lula, deixando na condição que já viveu durante seu primeiro
governo, isto é: narraremos seus contras; se, depois, os prós ficarem
explícitos, a gente muda de novo a linha editorial.
Antes, Lula era capaz de influenciar a mídia local por meio da mídia
mundial. Como pode um líder celebrado no mundo inteiro ser tratado como um
pária pela mídia brasileira? Com isso, produzia um efeito de fora para dentro.
E
podemos perceber que essa era a intenção de Lula agora também. Não é
apenas “preguiça” de atuar internamente, ficando como chefe de Estado: Lula
sabe que a elite brasileira não o engole e, por isso, vai em busca de apoio
internacional.
Só
que o mundo não é mais o mesmo (ele sabe disso) e hoje existem polarizações no
âmbito internacional. Entre 2002 e 2010, houve uma pax generalizada regada pela
globalização. Portanto, Lula não pode mais contar com essa guinada de
fora para dentro.
O
que resta, então?
Bem,
a eleição de Lula foi apoiada sim, pelo establishment liberal, mas vamos
lembrar que o establishment esteve com Tebet no primeiro turno e teve que engolir Lula com certo
desgosto. Portanto, a fração realmente existente de representativa desse
“centro democrático” é pequena. É um caso óbvio de sobre-representação. Aliás,
o mesmo centro que cobra de todos autocrítica e invoca a tese da “polarização”
como diagnóstico é o mais condescendente consigo mesmo: será que a principal
crise que vivemos não é da esquerda, mas do arranjo tecnocrático neoliberal
centrista que se considera como destinado pelas forças divinas a governar para
sempre?
Mas Lula precisa,
urgentemente, de apoio social. E isso se faz como? O jeito de mostrar força nas
democracias hoje ocorre por duas vias: pressão digital, especialidade do bolsonarismo, e pressão nas ruas, que era nossa especialidade, hoje também
mais para o lado deles.
Vejamos
o caso das universidades. Muitos governistas criticam os professores pela greve em
função dos maiores investimentos que o governo está levando a cabo em relação
ao anterior. Mas é preciso lembrar o papel estratégico que têm as universidades
no debate público: assim como os jornalistas da mídia tradicional, professores
ocupam o lugar de intelectuais públicos e têm, por isso, a possibilidade de
influenciar no enquadramento dos problemas – o que é muito superior a
simplesmente já se posicionar dentro de uma polêmica. Além disso, o movimento
estudantil é hoje a forma de organização que consegue colocar mais jovens
juntos para lutar por direitos, correndo em paralelo a igrejas e outros meios
usados pelo bolsonarismo.
A
atitude de desmerecer as lutas é um erro tático, porque o que o governo precisa
é exatamente de uma sociedade mobilizada. Afinal, o agro, as
igrejas, a bala, enfim, todo mundo do lado de lá está permanentemente
mobilizado.
A
primeira coisa que a esquerda precisa é de um “partido digital”. Mas isso deixo
para outro texto. Vamos ao que dá para fazer nos quadrantes tradicionais.
Primeiro,
aquecer os partidos. Existe um problema geracional nos partidos de esquerda brasileiros que consiste no seguinte: a geração pós-Lula do PT é formada de quadros que operaram de cima
para baixo, sem grande vocação popular. E o PSOL, nos seus
quadros fundadores, tampouco era um partido popular, sendo muito mais um
partido esquerdista. Temos, no PT, figuras como Gleisi, Rui Costa, Padilha, Camilo Santana e o próprio Haddad – seu melhor quadro. Vejam os quadros do PT para disputa no
Sudeste e no Sul: vou citar o exemplo de Maria do Rosário em Porto Alegre, hoje claramente disfuncional. São
quadros com lutas importantes, mas com pouca adesão popular. No PSOL,
entre seus quadros fundadores, tínhamos Plínio, Luciana Genro, Babá e Heloísa Helena. Ainda temos outros que
parecem ter trilhado um caminho mais ousado, mas ainda assim têm o mesmo
problema: Marcelo Freixo e Alessandro Molon, por exemplo.
O PSOL percebeu
isso e está fazendo a transição com mais velocidade: hoje seus nomes
são Erika Hilton, Sâmia Bomfim, Guilherme Boulos, Henrique Vieira. Já o PT, anda a passos de
tartaruga. Há nomes fortes, como Renato Freitas, que esperam mais espaço no partido. O que Lula fez
muito bem em São Paulo, forçar a aliança com o PSOL de Boulos,
tem que ser radicalizado. Não é questão apenas de alianças: o PT pode
continuar na cabeça quando for o melhor. O problema é de abrir espaço. É
preciso formar novos quadros com vocação popular e linguagem digital para
ontem, sob pena de o PT tornar-se, muito rapidamente, um Partido
Trabalhista britânico com seus Tonys Blairs.
Se Lula não tomar parte nisso, as máquinas vão continuar no
automático.
Os partidos,
além disso, são máquinas de organização. Ok, muito burocráticas, cheias de
vícios, comandadas por feudos. Sim, concordo. Mas eles conseguem colocar gente
nas ruas quando dirigidos de forma mais popular, assim como associações
sindicais (CUT) ou movimentos organizados (MTST, MST). Assim, é preciso
juntar esse orgânico com o espontâneo que pode ser propulsionado pelo movimento
indígena, pelo movimento negro, pelo movimento feminista e pelo movimento LGTQIA+, assim como alianças surpreendentes com fandoms,
torcidas, coletivos de trabalhadores uberizados.
Não
se trata da burrice patológica dos esquerdo-machos contra o “identitarismo”. É
preciso que haja uma grande coalizão. Mas ela só acontecerá quando houver um
aquecimento dos movimentos, e os partidos são meios para aproveitar uma
organização já existente e permitir que as manifestações sejam maiores e
maiores. Somente uma mobilização popular cacifa o governo para enfrentar, com
base na sociedade civil, o Congresso mafioso que temos. Lembremos que foi isso
que aconteceu em 2022. Os mafiosos preferiam Bolsonaro, fomos nós, a sociedade
civil, que impediu que isso acontecesse.
Em
segundo lugar, parece que Lula terá que calcular muito bem a sucessão de Lira. Vale a pena continuar com essa base frágil e chantagista?
Talvez mediante uma reorganização partidária seja possível encontrar
parlamentares que topem no mínimo a “estratégia Rodrigo Maia”: pausa nas pautas de extrema direita (“costumes”), avanço nas
econômicas.
Vale
lembrar que um dos ideólogos do renascimento do Centrão foi, segundo consta no noticiário político, Aloizio Mercadante, então ministro da Casa Civil, quando estimulou a criação
de PSD e outros novos partidos com o intuito de desidratar
o MDB. Talvez o caminho agora seja o inverso: reaglutinar a dispersão,
para enfraquecer o troca-troca, e negociar um apoio mais sólido.
Além
disso, o governo precisa usar a caneta – se algo fez Dilma perder
politicamente, foi ter muito ameaçado e pouco executado. Na prática, a direita
não perdia nada; o discurso ficava cada vez mais “antigolpe”, ao mesmo tempo em
que as medidas caminhavam cada vez mais à direita.
Uma
reforma ministerial radical quando o impeachment já estava em vista (por
exemplo, após a aprovação na Câmara, naquele espetáculo hediondo), por exemplo,
nunca ocorreu.
Há
múltiplos meios de o governo usar poder, e ele precisa ser usado porque esta é
a única linguagem que o Centrão entende.
Finalmente,
voltando ao caso das universidades, mas pensando também nas demarcações indígenas e na política
da Petrobrás, o
governo precisa parar de atacar a sua base. Para que a base esteja viva e
resistente, como é o caso do momento, é preciso que haja sinalizações positivas
– e isso envolve que Lula se decida sobre algumas coisas.
Quando Lula assumiu
em 2023, eu acreditava que a era Dilma, de negacionismo climático e política antiambiental, havia ficado para trás. Mas hoje a gente vê o
mesmo Lula de 2008 (Pré-Sal): ainda trata a pauta ambiental de modo
oportunista. Com Marina Silva e Sonia Guajajara, Lula tem uma equipe sólida para tocar as questões
que são fundamentais para sua base. Se continuar jogando olhando só para os
inimigos, talvez no final não tenha mais ninguém na sua retaguarda – o que,
aliás, foi o que ocorreu com Dilma.
Aquecer
os partidos, reorganizar a base institucional, conter a dispersão clientelista,
reforçar suas questões fundamentais – esses são alguns pontos que acredito
poderem ajudar um governo que, sob forte artilharia, ainda pode oferecer uma
perspectiva de melhora.
¨
Um Estado forte para
uma democracia forte. por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Há
de se resistir às pressões do neoliberalismo e de seu bebê maligno: o nacional-populismo de direita.
Para
as sociedades capitalistas, o paradigma desejável e possível é o de um Estado forte, capaz, para uma democracia igualmente forte. A ideia de um Estado forte parece estar em contradição com uma
democracia forte, mas não é isso o que mostra a realidade. A Suiça e
a Finlândia são exemplos de países nos quais esse ideal está próximo
de ser alcançado, mas esta afirmação requer definir o que é uma democracia
forte e um Estado capaz.
O Estado é
o sistema constitucional-legal e a organização que o garante, enquanto
o Estado-nação é a sociedade político-territorial soberana formada por uma nação, um Estado e um território.
Um Estado é capaz quando a Constituição e demais leis do país são cumpridas.
Algo que não depende apenas do poder de polícia do Estado, mas também e
principalmente da coesão da sociedade em torno do Estado.
Em
outras palavras, depende de toda a sociedade entender que a lei é necessária
para a vida da sociedade, e de que cada cidadão considere seu dever denunciar
aqueles que agem contra ela. Ao agir assim, ele não será um “dedo-duro”, mas um
cidadão que cumpre o seu dever. No plano econômico, é capaz o Estado que tem o
poder efetivo de tributar – de aumentar impostos quando isto é necessário para
assegurar o equilíbrio fiscal.
A nação é
a forma de sociedade de cada Estado; ela compartilha uma origem, uma história e
objetivos comuns, estes explícitos ou implícitos no sistema jurídico. Uma “boa”
sociedade é aquela que é relativamente coesa. Nunca é plenamente coesa, porque
há a luta de classes e um número infinito de conflitos entre os cidadãos, mas
esta luta ou estes conflitos não são radicais, não implicam uma relação de vida
ou morte – e, portanto, podem coexistir com uma nação ou uma sociedade civil
(outro nome da sociedade de cada Estado) relativamente coesa.
A
democracia forte, por sua vez, é a democracia consolidada. É a democracia
existente em um país ou Estado-nação que completou sua revolução capitalista – já formou
seu Estado-nação e realizou a sua revolução industrial. E, por isso,
a nova classe dominante burguesa já não precisa do controle direto do Estado
para se apropriar do excedente econômico (ela pode realizá-lo no mercado
através do lucro).
É o
regime político no qual as novas e amplas classe média e classe trabalhadora
que nasceram da revolução capitalista preferem a democracia. Na prática, uma
democracia forte é aquela que soube resistir às pressões antidemocráticas do
neoliberalismo e, depois, do seu bebê maligno – o nacional-populismo de
direita.
Embora
a democracia seja o melhor regime político para um país que completou sua
revolução capitalista, essa mesma democracia enfraquecerá
o Estado dos países que ainda não a realizaram. E poderá igualmente
enfraquecer os Estados de países de renda média, que já realizaram sua revolução capitalista, como é o caso do Brasil, ao ser essa democracia
caracterizada por uma polarização que a torna incapaz de fazer compromissos
necessários para realizar as reformas institucionais. O império sabe
disso, e usa a democracia para garantir a sua dominação sobre os países da
periferia do capitalismo.
A
prioridade dos países de renda média é, portanto, fortalecer o seu Estado,
porque assim estarão fortalecendo sua democracia; é tornar
sua nação mais coesa; é livrá-la do conflito entre os liberais que se
submetem ao império e os que buscam soluções nacionais para os problemas.
Não
existe um caminho claro para alcançar maior coesão nacional. Porém, o simples
fato de as elites sociais – não apenas as econômicas, mas também as políticas,
intelectuais e organizacionais – saberem da necessidade dessa maior coesão já é
um passo nessa direção.
O Brasil é
um “Estado-nação-quase-estagnado” há 44 anos, cresce mais lentamente que os
países ricos e mesmo que as demais nações em desenvolvimento – não realiza,
portanto, o esperado alcançamento (“catching up“). Precisa, portanto,
dramaticamente fortalecer a sua nação e o seu Estado para
deixar de ficar para trás – como tem ficado neste quase meio século.
Fonte:
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário