Ion
Andrade: ‘O que a volta da esquerda às ruas pode ensinar’
Mobilizações
mostraram que a agenda por direitos e civilidade pode derrotar a ultradireita.
Expor os retrocessos e apostar na capilaridade política é via para reconstruir
a democracia. Próxima tarefa: barrar a PEC do trabalho infantil e o ataque ao
piso da Saúde e Educação
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Como
na lenda, a luz do dia tem poder de incinerar vampiros.
A
tentativa do empresário Elon Musk de desmoralizar as instituições democráticas
do Brasil, a PEC do estuprador, ou a tentativa de privatizar as praias pela
extrema direita e a ameaça ao piso da Saúde e da Educação pela área econômica
do governo… se soldaram por uma derrota a priori marcada pelo recuo dos seus
insignes idealizadores mostrando que a sociedade pensa e age por cabeça
própria, para além da vontade ou guia de influenciadores digitais, da extrema
direita, dos falso moralistas hipócritas e mesmo de governos.
Isso
significa que as forças políticas que conseguirem entender e interpretar essa
agenda latente da sociedade (um cavalo selado) e conceber a partir dela uma
agenda política alinhada a esses princípios, terão imensa vantagem no plano
(agora) das eleições municipais que se avizinham.
O
campo democrático (se conseguir converter essa agenda semiconsciente e latente
das maiorias em agenda consciente e manifesta) é quem está melhor posicionado
para capitalizar essa verdadeira onda democratizante e civilizatória afinal,
excluídos os escorregões ou traições neoliberais, essa agenda é supostamente a
sua própria…
O
maior problema do campo democrático e da esquerda em particular (um
esquerdismo) é sucumbir a uma agenda voluntarista, muitas vezes de aparência
ideológica (o discurso radicalizado) cuja meta parece ser “fazer a cabeça do
povo” com o intuito muito nobre de politizá-lo para o enfrentamento ao
fascismo, o que desconsidera o fato de que esse povo é, de fato, quem tem
sustentado e com resiliência os melhores índices de aprovação do governo, sendo
a maioria nucleada por ele quem incinerou a PEC do estupro. Resta, portanto,
saber quem está e quem não está politizado e qual é a agenda da politização no
mundo real da garantia da democracia hoje!
Como
a PEC do estuprador fartamente demonstrou, portanto, a agenda que enfrenta e
vai derrotar o fascismo está além dos limites habituais entre a esquerda e a
direita e encontra unidade, não nesse discurso ideológico falsamente
radicalizado e típico da classe média de esquerda, que lhe garante, tão
somente, votos minguados para os legislativos tornando ”nos” minoritários ao
ponto de sermos incapazes até mesmo de barrar PECs (⅓ dos votos!).
A
agenda que enfrenta e vai derrotar o fascismo é a da garantia de direitos e a
da construção ativa da civilidade e do bem estar social pelos Executivos
comandados pelo campo democrático. É isso que consubstancia a agenda solar e
amplamente consensual perante a qual a extrema direita é incinerada em praça
pública como os vampiros dos filmes de horror.
Noutras
palavras, se a sociedade entender claramente que a agenda da extrema direita é
a da incivilidade, da perda de direitos e do mal-estar social dificilmente essa
força poderá disputar o topo da política.
Além
da hipnose perpétua do discurso falsamente radical, (pois esse é o discurso
classista da classe média de esquerda) nada pode causar mais dano ao campo
democrático e à esquerda em particular do que a ameaça a direitos como os da
saúde e da educação. Tal atitude desacredita o governo e sinaliza para as
maiorias mais despertas (as que defendem direitos) uma verdadeira orfandade da
sua representação civilizatória no Estado.
Por
outro lado, devemos constatar que quem está emparedada é a extrema direita que,
ao se exprimir claramente e sem fake news, produz rejeição e asco da sociedade
como um todo, muito além da tradicional clivagem direita/esquerda. Duas
ferramentas são fundamentais para ela em sua tentativa inglória de manter seu
capital político, a mentira que manipula uma espécie de boa fé pública (ou a
burrice atávica de tantos) e a baixa publicidade e transparência do que faz e
propõe, pois tem que agir discretamente e às sombras em seus propósitos na
esperança de que os seus projetos legislativos não sejam conhecidos de todos.
É
exemplo disso, pois está na contramão do que a sociedade claramente deseja, o
projeto que volta a permitir o trabalho infantil e que tramita na CCJ. Esse
projeto ainda não produziu o mesmo escárnio que a PEC do estuprador pois não
galgou visibilidade suficiente sobretudo na gente pobre que é a sua principal
vítima.
Então,
o que de mais importante há hoje a ser feito para o enfrentamento da extrema
direita por parte dos Poderes Executivos do campo democrático (União, estados e
municípios) é em primeiro lugar trabalhar para materializar a agenda
civilizatória do bem estar social na capilaridade do local onde vivem as
pessoas. Para os Legislativos e para a sociedade civil a tarefa, e não é fácil,
é a de expor quem a extrema direita de fato é para que a sua combustão
espontânea se dê aos olhos de todos.
A
PEC do estuprador mostrou que há um paiol seco para receber as propostas
medievais da extrema direita.
Isso
significa que o que visivelmente politiza a sociedade (e ao que parece os
níveis de politização são altos para o que a história nos exige) deve ser – e
de forma sistemática e maciça – a ação dos governos do campo democrático no
sentido de assegurar direitos e de materializar a civilidade e o bem estar
social no Brasil.
As
melhorias dos níveis de aprovação de Lula se prendem, portanto, (e isso é
politização) à colheita do que, de forma assistemática, o governo vem
plantando. Mas essa melhoria da avaliação é, pelo menos ainda, incipiente
justamente pelo fato de que as (muitas) iniciativas não estão amarradas a um
projeto claramente inteligível de construção do bem estar social com
participação popular.
Por
isso, a tentativa de Elon Musk de achincalhar o Brasil, a do Ministério da
Fazenda de testar a força dos movimentos da Saúde e da Educação na defesa do
piso constitucional (nunca dantes ameaçados) ou as PEC da privatização das
praias e a do estuprador protagonizadas pela extrema direita demonstraram que é
imprescindível para as lutas:
(a)
a visibilidade pública do dado projeto de retrocesso (que emerge na geleia
geral dentro e fora do governo) e
(b)
uma prontidão de emboscada pelas forças democráticas dos projetos de retrocesso
de cada momento, exatamente como se deu no caso da PEC do estuprador, prontidão
essencialmente protagonizada pelos movimentos de mulheres; sempre que a ocasião
exigir.
Na
quadra atual, o que temos que responder é como daremos a necessária
visibilidade à PEC do trabalho infantil para que ela também sofra a mesma
incineração pública que sofreu a PEC do estuprador.
Se
conseguirmos converter a vontade latente semiconsciente da sociedade em vontade
manifesta e consciente essa luta será demolidora para os fascistas e terá o
condão de produzir um inabalável consenso em favor da democracia intimidando
até mesmo os sonsos que agem no governo.
¨
Sim! É possível vencer
a hipocrisia moral. Por Fausto Salvadori
Para
quem luta pelos direitos humanos, perder é comum. Para não enlouquecer, a gente
faz o Darcy Ribeiro e diz que nossas derrotas são como vitórias, porque de
fato odiaria estar no lugar da gente horrível que costuma nos vencer. Mas,
porra, precisamos de vitórias. Até porque as derrotas em nosso campo significam
sofrimento demais para populações inteiras.
Por
isso, vamos celebrar a vitória que a mobilização das mulheres conquistou nos
últimos dias sobre o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto ao crime de homicídio e proíbe qualquer
possibilidade de aborto legal após 22 semanas de gestão, recebendo por isso os
merecidos apelidos de PL do Estupro ou da Gravidez Infantil. A mobilização nas
redes e nas ruas já
fez o centrão tirar o pé do projeto e levou diversos nomes do governo Lula a se
manifestarem a favor dos direitos humanos dentro de um assunto controverso, o
que infelizmente não é comum. Foi uma vitória pequena, parcial e provisória,
mas ainda assim uma vitória. É feia, mas é uma flor. E precisamos celebrar.
Precisamos
celebrar porque foi a primeira vez em muito tempo que uma bandeira dos direitos
humanos conseguiu fazer frente à extrema-direita dentro do que o jornalismo
hegemônico (não o da Ponte!) chama de “pauta de costumes”. Um nome péssimo,
porque passa a impressão de que se trata de algo menor, como se estivesse em
questão o uso de ketchup na pizza ou se o feijão deve ser colocado em cima ou
ao lado do arroz, quando diz respeito a direitos fundamentais.
Pois
é nas pautas de direitos que a gente tem tomado um 7 a 1 atrás do outro, porque
o rolo compressor da extrema-direita se mostra tão devastador que muitos
políticos que deveriam estar ao nosso lado evitam confrontá-la em nome da
própria sobrevivência política. Rifar os direitos humanos se tornou uma prática
recorrente do governo Lula e de muitos petistas, em questões tão diferentes
como a memória do golpe de 1964, a Lei Orgânica das Polícias Militares ou o fim das saídas temporárias de presos, que teve voto favorável até de Maria do
Rosário, deputada tradicionalmente alinhada aos direitos humanos, mas que
preferiu jogar sua trajetória fora para não prejudicar a candidatura à prefeitura de Porto Alegre.
Essa
postura supostamente “realista” do governo recebe o apoio de um campo do
petismo, minoritário porém barulhento, que passou a desprezar tudo o que
envolva as lutas pelos direitos de mulheres, negros, indígenas e população
LGBTQIAP+, chamando a tudo pejorativamente de “pautas identitárias” e dizendo
que o governo tem mais é que ignorá-las, porque só serviriam para fortalecer o
poder da extrema-direita. Além de culpar as vítimas pela existência de seus
algozes, essas correntes desqualificam essas bandeiras como divisivas ou
irrelevantes, agindo como se o racismo, o machismo ou a LGBTfobia não
existissem no Brasil e tivessem sido inventados pela Fundação Ford ou pela Open
Society.
Seja
por convicção ou estratégia, quem defende que o governo do PT deveria abaixar a
cabeça diante da extrema-direita nas pautas de direitos fundamentais (ou de
“costumes”, ou “identitárias”, como esse povo fala) argumenta que é impossível
vencê-la nessa área. Que a esquerda só teria a perder com esse enfrentamento e
que Lula teria mais é que dar uma rasteira em todos os grupos que
simbolicamente estiveram ao seu lado na subida da rampa.
É
um argumento que eu não aceitaria mesmo que fosse verdadeiro. Se for para
vencer passando por cima dos negros, das mulheres, dos indígenas e da população
LGBTQIAP+, aí eu volto ao Darcy Ribeiro e digo que é melhor perder do que estar
ao lado dos vencedores, de uma esquerda que já virou extrema-direita há muito
tempo.
Mas
a escolha não precisa ser entre perder ou vender a própria alma para vencer. O
que a mobilização dos últimos dias demonstrou, da forma como conseguiu acuar e
calar os defensores da criminalização da escolha das mulheres, é que a
extrema-direita não é invencível como pensam e que pode haver espaço para
combatê-la mesmo nos temas em que parece levar vantagem.
Num
governo de compromisso como o atual, precisamos mais do que nunca de movimentos
sociais fazendo barulho nas ruas e nas redes, de trabalhadores fazendo greve, e
de jornalismo críticos, como a Ponte, apontando sempre que o governo vacilar ou
nos trair. A
Ponte defendeu o voto em Lula em 2022, mas sempre deixamos claro que não deixaríamos nossa visão
crítica de lado. “Não precisamos de puxa-saco”, disse Lula.
Pena que muitos se esqueçam disso, incluindo aí o próprio Luiz Inácio.
Então,
se a semana que passou fosse um episódio de He-Man, ou da She-Ra, a gente
poderia encerrar com um dos dois primos dizendo:
“Olá,
crianças, no episódio desta semana aprendemos que a extrema-direita não é
invencível e pode, sim, ser enfrentada e até vencida, inclusive nos temas de
direitos humanos. Não se esqueçam disso. E lembrem-se: pauta de costumes de cu
é rola. São pautas de direitos. E é tudo pelo que vale a pena lutar.”
Fonte:
Outras Palavras/Ponte Jornalismo
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