quarta-feira, 26 de junho de 2024

FALÁCIA DO DISCURSO NEOLIBERAL: Protecionismo, déficits e intervenção estatal na economia dos Estados Unidos

O economista sul-coreano Ha-Joon Chang, no brilhante livro “Chutando a Escada”, faz uma análise poderosa a respeito das políticas econômicas dos países hoje desenvolvidos e a forma como construíram sua indústria. Faz ainda uma crítica profunda à falácia do discurso neoliberal adotado por esses países, principalmente na segunda metade do século XIX, quando barreiras tarifárias ultra protecionistas eram estabelecidas aos importadores e políticas de livre mercado eram impostas aos países em desenvolvimento – como se tivessem promovido sua economia as utilizando, quando na verdade nunca o fizeram. 

Esse artigo fará uma leitura do histórico de intervenções econômicas dos presidentes norte-americanos na economia e mostrará a incoerência e a hipocrisia entre o discurso neoliberal adotado por eles e as práticas reais de estímulo econômico com viés keynesiano.  

Quando acompanhamos a política econômica das administrações desde Franklin D. Roosevelt até Joe Biden, percebemos que os Estados Unidos podem ser tudo, menos liberais. Hayek foi um dos principais economistas da chamada “Escola Austríaca” da economia. Essencialmente liberal e discípulo de Ludwig Von Mises, outro emblemático economista austríaco, acreditava que o Estado deveria se abster de tentar influenciar os rumos da economia e corrigir suas eventuais distorções, deixando espaço para a livre iniciativa empresarial fomentar o crescimento econômico e garantir níveis máximos de emprego no longo prazo. 

Os economistas da Escola Austríaca denunciavam o risco inflacionário que poderia acompanhar políticas fiscais expansionistas e por esse ser um efeito colateral inaceitável acreditavam que as recessões apresentadas pelo ciclo econômico natural não deveriam ser enfrentadas pelo Estado. A recessão futura, empurrada para frente pelos estímulos fiscais de momento, requereria ainda mais estímulo econômico e energia para ser debelada. No futuro, as pressões inflacionarias decorrentes das intervenções governamentais seriam acompanhadas de inflação e aumento da dívida pública.  

Na obra intitulada “Keynes x Hayek”, o jornalista Nicholas Wapshott descreve de maneira contundente a forma como o debate entre o pensamento econômico keynesiano e hayekiano, ou seja, de intervenção estatal em momentos de crise em oposição à não interferência na economia, decorreu ao longo do último século e como os ensinamentos de John Maynard Keynes foram adotados pela maioria dos países desenvolvidos para combater crises que o livre mercado e a falta de regulação criaram. 

O raciocínio liberal pressupõe ainda que, quando os indivíduos buscam seus próprios interesses em decisões diárias, sejam gestores de multinacionais ou trabalhadores assalariados, todos juntos tendem indiretamente a promover o bem-estar geral e o crescimento econômico, ou, como descreve Nicholas Wapshott, “o bem público era o somatório dos interesses próprios individuais de todos os indivíduos combinados”. 

Hayek e a Escola Austríaca defendiam que, no longo prazo, o mercado entraria em equilíbrio entre a oferta de bens e serviços e a demanda por eles com os preços livres refletindo essa tendência de equilíbrio, e que qualquer tentativa de influenciar os preços teria resultados prejudiciais. Ou seja, quando o Estado controla os preços sobre bens e serviços, está na verdade privando os indivíduos de seu poder de escolha e negociação, restringindo sua colaboração para a economia se desenvolver e distorcendo a realidade. É justamente a soma das liberdades individuais de escolha dos cidadãos que gera o acúmulo geral de conhecimento sobre o mercado capaz de, naturalmente, estabilizar e desenvolver a economia.  

Sabemos que grandes corporações e empresas multinacionais sim, essas defendem com muita determinação seus próprios interesses em decisões diárias, mas será que o somatório das decisões dessas empresas, num ambiente sem regulação estatal, resultaria no bem-estar social geral e no progresso econômico? Bill Clinton, o quadragésimo segundo presidente dos Estados Unidos, atuou para desregular o mercado financeiro e os derivativos durante sua gestão. Todos nós sabemos o que ocorreu sete anos após ele deixar o governo. Na prática, o mercado financeiro avançou por conta própria ao longo de quase uma década antes de registrarmos o maior terremoto financeiro desde 1929, a crise de 2008.   

·        Efeito multiplicador 

A queda no desemprego e o aumento da demanda agregada que surgiriam a reboque dos estímulos fiscais governamentais podem ser traduzidos pelo aumento do contingente de trabalhadores recebendo salários, consumindo produtos e serviços, pagando mais impostos e fazendo a roda da economia girar. 

Esse efeito dos investimentos públicos sobre o crescimento da atividade econômica foi elaborado por Richard Kahn, principal discípulo de Keynes e explicado em sua famosa Teoria Geral. Na breve definição dos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro Maria Isabel Busato e Norberto Montani Martins, o efeito multiplicador sobre a renda “é a razão entre uma mudança no produto e uma mudança exógena do gasto ou do tributo”.  

Para os professores, “o debate sobre multiplicadores fiscais se torna relevante, pois a ele está associado um desenho de política fiscal que leve em consideração os diferentes impactos que as rubricas do orçamento público podem ter no crescimento econômico, tendo como objetivo estabilizar ou impulsionar a demanda agregada e suavizar as flutuações econômicas”.  

A Teoria Geral não seria assimilada pela maioria dos demais economistas e líderes governamentais se não fosse o conceito de efeito multiplicador. Embora não adotado abertamente por nenhum dos políticos considerados neoliberais, é difícil encontrar um que não admita que o expansionismo fiscal interfere positivamente no crescimento econômico.  

·        Não tão liberais assim 

Ha-Joon Chang descreve a construção do setor industrial norte-americano no século XIX apresentando evidência claras de protecionismo e de construção de barreiras à entrada de produtos estrangeiros. Segundo Paul Bairoch, citado por ele, em “Economics and World History: Myths and Paradoxes”, as barreiras tarifárias nos Estados Unidos visando à proteção de sua indústria nascente chegavam a 45% em 1820 e foram de até 48% em 1931 e só a partir de 1950, com uma indústria já desenvolvida e as forças geopolíticas e econômicas consolidadas, começam a diminuir. 

A partir do período mencionado pelo economista sul-coreano, o histórico de ações voltadas ao intervencionismo estatal na economia americana é muitas vezes superior ao histórico de não intervenção ou mesmo de desregulação. Logo, o senso comum de que os Estados Unidos seriam um mercado liberal, forjado na livre iniciativa de seus empreendedores, é inverídica. 

Nos anos 1930, por exemplo, o país aprova a Lei Smoot-Hawley que visa proteger a indústria nacional da concorrência internacional frente aos impactos da crise de 1929. Como lembra o professor brasileiro André Nassif, “os países não hesitavam em recorrer a políticas protecionistas generalizadas e desvalorizações competitivas de suas moedas, com o intuito de transferir seus problemas internos de desemprego aos demais países”. Ao protecionismo que surgiu em decorrência da quebra da bolsa, medidas protecionistas por todos os lados acompanharam, num modelo de proteção que ficou conhecido como “beggar-thy-neighbor”, ou “empobreça seu vizinho”. 

Ainda na década de 1930, Roosevelt aprova o programa de investimentos públicos chamado de New Deal. O novo presidente estava tão desesperado por soluções que Keynes se viu num ambiente propício para recomendar algumas ações. Entre elas recomendava que “alternativamente, a autoridade pública deve ser chamada para criar ingressos adicionais através de gasto público”.   

Na década de 1940, Roosevelt apresenta uma segunda carta de direitos no Estado da União de 1944 garantindo ao cidadão americano “o direito à proteção adequada contra os medos econômicos da velhice, doença, do acidente e do desemprego”, reforçando os ideais de intervenção pública na economia através de expansionismo fiscal. No mesmo período, em um bem-vindo alinhamento ideológico entre presidência e parlamentares, o congresso americano apresenta o projeto de lei do “pleno emprego”, reforçando a ideia de que o governo deveria “fornecer o volume de investimentos e gastos federais que possam ser necessários para assegurar o pleno emprego”.  

Nos anos durante a Segunda Guerra Mundial e após ela, vemos uma determinação inabalável do Estado norte-americano na manutenção do aquecimento econômico por políticas fiscais expansionistas. Como veremos mais a frente, a máquina pública não estava direcionada apenas ao setor bélico e de segurança, e sim a setores estratégicos da indústria, principalmente questões envolvendo inovação, tecnologia e produtividade. 

·        Bretton-Woods 

Entender o momento econômico mundial na década de 1940, sobretudo a predominância norte-americana em questões tanto geopolíticas quanto comerciais, requer que se entenda a forma como esse novo sistema econômico internacional foi criado.  

O acordo de Bretton-Woods foi o resultado de uma negociação envolvendo delegados de dezenas de países que debateram, ao longo de 1944, a criação das bases para o desenvolvimento de um novo sistema econômico internacional. O foco original seria estabilizar as pressões econômico-comerciais que resultaram da segunda grande guerra e fomentar o crescimento econômico no mundo.  

O economista grego Yanis Varoufakis, afirma na obra prima “O Minotauro Global”, que Keynes abordou com os demais assessores a ideia da criação de um mecanismo de compensação às nações deficitárias através de ajuda financeira vinda das economias superavitárias, como uma forma de redução da desigualdade e aumento da cooperação entre os países. A visão progressista de Keynes foi preterida no encontro em diversos momentos. Tentou ainda sugerir que a utilização do dólar como moeda de troca internacional desequilibraria novamente a balança de poder no mundo após a guerra. 

Foi vencido em seus argumentos e o dólar, ligado ao valor do ouro, seria estabelecido como moeda de troca internacional. Varoufakis aborda essa questão fazendo uma análise interessante sobre a criação de mecanismos de reciclagem de excedentes comerciais na Europa e Ásia, trabalhando em função da economia americana.  

Para o economista grego, os déficits orçamentário e comercial americanos poderiam ser sanados pela combinação envolvendo a reciclagem de excedentes comerciais e o fluxo de dólares que retornava para os Estados Unidos camuflados de investimentos.  

Em outras palavras, é fácil ter déficits sucessivos e abundantes quando você é capaz de socializar o risco com o restante do mundo e quando outras nações arcam com a necessária entrada de capital para um novo ciclo de expansionismo fiscal se iniciar. 

·        De Eisenhower a Nixon 

Embora em 1946, com o fim vitorioso da guerra e o crescimento exponencial dos gastos públicos, tenha ocorrido a suavização da lei do pleno emprego e um leve abandono das ideias keynesianas, poucos seriam corajosos para acreditar que o mercado do país não dependeria mais de intervenções estatais e políticas fiscais favoráveis. Após Bretton-Woods e o sistema de reciclagem de excedentes, a sociedade americana dependeria ainda mais dos déficits orçamentários.  

Em 1947, Truman discursa no Estado da União sobre a necessidade de ampliação dos gastos públicos para a construção da infraestrutura do país a fim de contornar mais uma crise. Novamente, uma interferência keynesiana.  

Após a gestão de Truman, assume a presidência o General Dwight D. Eisenhower. Seus principais assessores econômicos eram oriundos da Sociedade de Mont Pèlerin, da Escola Austríaca, liderada por Ludwig Von Mises e Friedrich Von Hayek, um Think Thank liberal criado por Hayek para fazer frente ao crescimento do pensamento keynesiano. Porém, mesmo esses assessores percebiam que a indústria não poderia ficar sem a sustentação do orçamento público.  

Com esse raciocínio, defendiam que, em caso de uma crise que pusesse em risco a supremacia industrial dos Estados Unidos, alguma intervenção precisaria estar presente. Por isso, em 1954, Eisenhower corta impostos na ordem de US$ 7 bilhões em favor da retomada do crescimento.  

A administração Eisenhower apostava no que se chamou de “keynesianismo empresarial”, uma forma de fazer o governo atuar na economia e ao mesmo tempo informar que continuava pró-mercado – verborragia típica da confusão de conceitos que permeou e continua permeando a política norte americana e que foi exportada para todo o planeta.  

Em 1956, o governo inicia a construção de uma ampla rede de rodovias, no mais absoluto sentido keynesiano de investimento para ampliação da demanda agregada. Para agradar aos conservadores e confundir ainda mais suas percepções sobre os rumos da economia e o orçamento, Eisenhower trabalhou seu discurso para afirmar que os investimentos em rodovia eram necessários para a segurança do país, dando nome ao programa de “rodovias de defesa nacional”. 

Em 1957, a Guerra-Fria escala e os gastos com “defesa” são ampliados. Eisenhower termina sua presidência tendo investido mais recursos públicos na “indústria bélica” americana do que Roosevelt durante toda a Segunda Guerra Mundial. Até aqui, a ideia de um orçamento público equilibrado é mera conversa para países em desenvolvimento não usarem as mesmas escadas que os desenvolvidos utilizaram para subir ao patamar em que estão atualmente, como escreveu belissimamente Ha-Joon Chang. Principalmente quando você é capaz de convencer o mundo a financiar seus déficits.  

Porém, como atitude emblemática da incoerência entre o discurso em defesa do livre mercado e as verdadeiras atitudes, Eisenhower declarou querer reduzir os gastos públicos até o último centavo em seu último ano de presidência e equilibrar o orçamento para salvar seu nome entre os conservadores. E de fato trabalhou incansavelmente até seu último momento na Casa Branca para reequilibrar o orçamento.  

Fez um trabalho tão bem-feito nesse sentido que junto a um superávit de US$ 269 milhões, conseguiu que Richard Nixon perdesse as eleições para John Kennedy. 

Com Kennedy na presidência, os Estados Unidos talvez tenham visto pela primeira vez um presidente que apresentava coerência entre o discurso e a ação orçamentária.  Tanto que sua plataforma econômica foi escrita com a participação de um dos grandes seguidores de Keynes, Kenneth Galbraith. 

A orientação keynesiana de Kennedy não se escondeu ao longo de sua presidência, assim como não se esconderam as ações pela garantia das liberdades civis e a inclusão de cidadãos alijados da política americana à vida no país. Também foi um presidente que atuou para cortar impostos e aquecer a economia em momentos importantes.  

Após seu assassinato, Lyndon Johnson continuou orientado pela política econômica keynesiana prescrita por Kennedy, ampliando as políticas de bem-estar social, como o Medicare para cidadãos acima dos 65 anos.  

Para Wapshott, com Kennedy e Lyndon Johnson, “a produtividade cresceu, o salário líquido real dobrou em comparação com os anos Eisenhower e o desemprego baixou de 4,5% em 1965 para a média de 3,9% nos quatro anos subsequentes”.  

Em 1969, Richard Nixon chega enfim à Casa Branca prometendo o tão sonhado equilíbrio orçamentário e uma orientação hayekiana da economia. Assim como Eisenhower, ele nomeia no Conselho de Consultores Econômicos da presidência assessores conservadores.  

·        A confusão da Era Nixon 

Os cortes de gastos promovidos por Nixon levam a uma pequena recessão e o presidente não demora muito a mudar de opinião sobre se precisaria intervir ou não na condução da economia. Como relaciona sua primeira derrota para Kennedy ao desempenho econômico e ao nível de emprego deixado por Eisenhower, agora tenta acelerar o ritmo de gastos públicos para reaquecer uma economia que entrara em recessão. Afoito e impressionado pelo fantasma da baixa popularidade, pediu aos assessores que desenvolvessem um orçamento que gerasse o tão sonhado emprego. Mais keynesianismo levantou protestos tanto de republicanos quanto de democratas.  

·        Choque do Petróleo de 1973 

Em 1973, irritada com a postura norte-americana na guerra do Yom Kippur, a OPEP reduz a oferta de petróleo e aumenta deliberadamente os preços, afetando a economia mundial e principalmente a estadunidense. O primeiro choque do petróleo causa um efeito até então nunca visto na economia norte-americana, uma persistente estagnação com aumento do nível dos preços.  

A estagflação, até então um fenômeno econômico desconhecido para os economistas do país, causa o aumento das críticas ao orçamento deficitário e pedidos por mais austeridade fiscal e responsabilidade com os impostos. Porém, o susto durou pouco tempo e, em 1975, Gerard Ford tenta combater a estagflação, sem sucesso, com um novo programa de redução de impostos. No ano seguinte, é a vez de Jimmy Carter aprovar uma nova lei do pleno emprego, garantindo que o governo deveria atuar para quem quisesse trabalhar estivesse de fato empregado. 

·        Novo Choque do Petróleo e Paul Volcker 

Em 1979, a drástica mudança de posicionamento geopolítico do Irã motiva a OPEP a provocar um novo choque do petróleo. Na tentativa de combater a inflação, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve eleva abruptamente e em escala nunca vista os juros nos Estados Unidos.  

A recessão provocada por dois choques do petróleo e pelo chamado “choque volcker” provoca não apenas desemprego e redução dos investimentos no mundo, mas recessões históricas nos países com dívidas atreladas ao dólar. Países em desenvolvimento, sobretudo na América Latina, viram suas dívidas com credores estrangeiros explodirem culminando no período de pior crescimento de seus produtos internos brutos na década entre 1980 e 1990 e a chamada “década perdida” da América Latina ganha o selo de qualidade do Federal Reserve americano.  

Esse período emblemático da história da economia latino-americana conta ainda com a saída da maioria dos países de regimes políticos ditatoriais, o abandono de práticas econômicas desenvolvimentistas e a entrada do Fundo Monetário Internacional e sua propaganda das medidas do Consenso de Washington, segundo a qual os países poderiam crescer mantendo políticas de austeridade fiscal.  

Importante frisar que, mesmo após sucessivos déficits nos orçamentos americanos e a adoção na maior parte do século XX de políticas de protecionismo internacional e expansionismo fiscal nos Estados Unidos, a recomendação de organismos internacionais de que seria benéfico aos países em desenvolvimento cortar gastos para atrair investimentos e crescer a partir disso foi amplamente aceita por economistas e intelectuais latinos.   

Na confusão causada pela política monetária de Volcker, os Estados Unidos elegem Ronald Reagan como presidente. Sua política externa coincidiu com a última década da existência da União Soviética e, embora o clima geopolítico fosse de absoluta dominância americana, os gastos com “defesa” permaneciam elevados. André Nassif chama a atenção para um aspecto desse intensivo investimento na segurança nacional, “o programa armamentista de Reagan, ao mesmo tempo que promove uma revolução tecnológica na indústria fornecedora de artefatos bélicos para a defesa militar americana, opera, na prática, como uma política industrial não declarada, com estímulos e investimentos maciços no complexo eletrônico, aeroespacial e das telecomunicações”.  

Observando os setores com mais investimentos citados por Nassif é possível imaginar o efeito que os gastos públicos não causaram na cadeia produtiva do país, na empregabilidade e na liderança na produtividade do trabalho e na produção de tecnologia e como influenciaram a dominância de seus produtos no comércio internacional. É também em função dos investimentos em “defesa” que os Estados Unidos assumem a liderança de inovação no mundo.  

·        O Estado empreendedor 

A economista italiana Mariana Mazzucato escreve em “O Estado Empreendedor” a respeito da percepção que o mundo tem dos Estados Unidos como nação que conseguiu alcançar um elevado padrão de riqueza através da liderança do setor privado. E demonstra lucidamente qual foi o verdadeiro caminho percorrido pelo país na construção da economia que vemos hoje.  

Nas palavras dela, “o que se descobre é que, além de ser uma sociedade empreendedora, um lugar onde é culturalmente natural criar e expandir um negócio, os Estados Unidos são também um lugar onde o Estado desempenha um papel empreendedor, fazendo investimentos em áreas radicalmente novas”.  

Para a economista, foi primordial que o Estado estivesse assumindo o risco em determinadas etapas do processo de inovação da indústria americana porque a iniciativa privada não o assumiu. Ela avança sobre o tema envolvendo o risco dos investimentos em inovação tratando justamente de investimentos na área de segurança nacional americana, que foram hora camuflados hora aproveitados pela indústria para fins comerciais e de disputa internacional.  

·        De Reagan a Trump 

Os gastos públicos acelerados de Reagan fizeram Herbert Stein apontar a incoerência entre discurso e prática, em 1985, afirmando que a revolução conservadora seria o sonho de republicanos que não estão no governo, mas não o foco daqueles que estão.   

Acreditando que a redução dos impostos estimularia novos investimentos privados e ajudaria no aquecimento da economia, Reagan promoveu uma redução importante das tarifas. E funcionou. Novamente, o desemprego caiu e o crescimento econômico chegou. Com a economia avançando, os liberais cantaram vitória afirmando que as desregulações promovidas por sua administração eram responsáveis por liberar o mercado de amarras do governo e estimular a economia.  

Afirmavam que um governo menor estaria ligado ao sucesso econômico de Reagan. O que não falaram foi que os gastos públicos, principalmente ligados à “defesa nacional” saltaram de US$ 267 bilhões para US$ 393 bilhões em 1988 e que o déficit público subiu para assustadores US$2,8 trilhões.  

Porém, não é o que vemos na propaganda, sobretudo na década de 1980 com o surgimento do Consenso de Washington, que propagandeava às nações em desenvolvimento que o equilíbrio orçamentário e as políticas fiscais contracionistas, além do livre comércio de bens, eram o caminho para o desenvolvimento econômico. 

A verborragia do livre mercado foi disseminada entre 1980 e 1990 nos Estados Unidos concomitantemente ao impulsionamento de gastos públicos e déficits orçamentários crescentes. Isso diz muito sobre o modelo de dominação comercial e político americano no sentido de chutar a escada, como diria Ha-Joo Chang.  

Em 1989, George Bush pai assume a presidência. Enquanto concorria contra Michael Dukakis nas eleições de 1988, verbalizou inúmeras vezes sobre os benefícios do “small government”. Assusta que alguns candidatos republicanos nos Estados Unidos, mesmo após sessenta anos de gastos públicos volumosos e déficits orçamentários históricos numa política econômica claramente intervencionista, falem abertamente sobre o papel diminuto que o governo terá em sua administração.  

Porém, sob Bush, o governo não foi tão “small” quanto a propaganda dizia que seria. Assustado com a aproximação de uma recessão e a perda de arrecadação, apresenta a Lei de Reconciliação Orçamentária, aumentando impostos em alguns setores e simulando cortes de gastos em algumas áreas.  

A impopularidade de Bush favorece o candidato democrata Bill Clinton, que assume a presidência em 1993 com uma campanha baseada no equilíbrio orçamentário e na construção de superávits primários.  

Em raros anos de coerência entre o discurso e a administração, os Estados Unidos viam realmente um presidente empenhado no controle do orçamento, tanto que entrega três superávits fiscais anuais seguidos durante sua gestão. Com a verba acumulada pela economia, consegue diminuir razoavelmente a dívida pública americana. Embora tenha sido keynesiano em alguns momentos, não podemos afirmar que a doutrina foi plenamente adotada em seu governo.  

Porém, tomou medidas gravemente liberais e, em 1999, atuou para desregular o sistema bancário, os fundos de investimento e os derivativos. Em resumo, talvez o momento mais equilibrado do orçamento americano aliado a um dos pilares do liberalismo, a desregulação, tenha contribuído para uma das piores tragédias econômicas que o mundo já produziu, a crise do subprime em 2008. Muito se especula sobre as causas do terremoto no sistema de crédito, mas ninguém tem dúvida quanto à responsabilidade do mercado atuando num sistema sem regulação.  

Clinton entregou a Casa Branca, um orçamento equilibrado e superávits fiscais sucessivos a George W. Bush, em 2001. Este assume um orçamento superavitário com bastante recurso em caixa e inaugura sua presidência com uma irresponsabilidade clássica. Com maioria nas duas casas, aprova uma redução de impostos no valor US$ 1,35 trilhão tentando aquecer a economia e manter sua popularidade.  

Bush definitivamente não deu sorte. Ainda em 2001 a bolha da internet estourou e o maior ataque terrorista da história do país paralisou a economia americana. Nesse cenário de caos, os assessores econômicos pisam no acelerador fiscal junto com o presidente e os gastos públicos são impulsionados no ritmo da exploração da matéria pela mídia.  

Com carta branca para gastar como quisesse, Bush não pensou duas vezes em abandonar o livre mercado para abraçar Keynes em sua essência. Mais gastos destinados à “defesa” foram aprovados. Em 2002 os superávits promovidos por Clinton eram lembrados quase como um devaneio no imaginário dos analistas econômicos.  

No último ano de Bush, os Estados Unidos percebem que a linha de pensamento hayekiana, de que o livre mercado autoregulado e sem interferência governamental levaria ao crescimento econômico, não funciona. A falta de regulação no mercado financeiro, liberado por Clinton sete anos antes, cobra seu preço mais alto com a crise de 2008. Nesse momento, lembra Wapshott que todos os assessores econômicos que uma vez haviam externado o desejo dos Estados Unidos adotarem políticas de desregulação reconhecem o equívoco da falta de regras para determinados setores.  

Nesse momento podemos lembrar do raciocínio liberal hayekiano de que a livre iniciativa individual perseguindo seus próprios interesses geraria o desenvolvimento. Vimos como a livre iniciativa do sistema bancário americano ajudou o mundo.  

Yanis Varoufakis aponta esse momento da história como um potencial ponto de inflexão a respeito de como o mundo se comportará nas próximas décadas. A predominância norte-americana pode ter sido perdida para a China e demais nações em desenvolvimento justamente pela prática liberal promovida por Bill Clinton.  

A reboque da crise, a mídia reacende o discurso keynesiano e Bush aproveita o momento para fazer o que fez durante toda sua administração, aumentar os gastos públicos a fim de conseguir algum crescimento econômico e salvar sua combalida popularidade.  

Em 2009, Barack Obama assume pela primeira vez e imediatamente sanciona um superpacote de estímulo à economia no valor de US$ 787 bilhões. O objetivo declarado era promover a criação de 3,6 milhões de empregos. Mais afastado das propostas liberais e mais perto de Keynes, impossível. No final de 2009, aprovou um novo pacote de estímulo. O déficit orçamentário nesse ano foi de US$ 1,4 trilhões.  

Em 2020, Trump assume e anuncia um pacote impressionantemente grande de US$ 2 trilhões para enfrentar os efeitos da crise de Covid-19. Biden, em 2021, anunciou um pacote de estímulo econômico muito parecido, de US$ 1,9 trilhões. O somatório de sucessivas medidas de estímulo econômico ao longo do último século, desde o século XIX com o protecionismo apontado por Ha-Joon Chang, até os déficits apresentados por Nicholas Wapshott e a crítica contundente de André Nassif e Mariana Mazzucato não deixam dúvidas a respeito da natureza da economia norte-americana e o fato dela estar tão afastada do livre mercado, do pensamento de Hayek e de Mises, quanto poderia. Também ajudam a construir um contraponto importante ao discurso de que os Estados Unidos são uma nação forjada pelo empreendedorismo e pelo investimento da iniciativa privada em inovação. 

Os Estados Unidos são um país construído sim com ajuda da sociedade, dos imigrantes e dos empreendedores, mas com muita participação do Estado e do orçamento federal e mais alinhamento prático com a visão econômica de Keynes do que com iniciativas governamentais de promoção do livre mercado.   

A confusão política atual assimilada pelo senso comum a respeito do alinhamento americano com a política neoliberal pode ser fruto tanto da propaganda exercida por FMI, Banco Mundial e pelo próprio governo dos Estados Unidos quanto à emergência de medidas de liberalização econômica nos países em desenvolvimento na década de 1980 quanto pela miscelânia de discursos equivocados que parte da liderança política mundial dissemina atualmente pelas redes sociais, cientes ou não dos fatos históricos da América e que em grande parte servem ao reforço da polarização entre aqueles que são pró-mercado e os que defendem maior participação do Estado, mas que em nada contribuem para o crescimento da reflexão econômica. 

 

Fonte: Por Rafael Cabral Maia, no Le Monde

 

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