sábado, 29 de junho de 2024

Comunidade rural do Maranhão é ameaçada ao defender território tradicional

Agricultores rurais da comunidade tradicional Jussaral, em Urbano Santos, leste do Maranhão, denunciam o terror vivido diante do avanço da fronteira agrícola em suas terras. As lideranças comunitárias relatam invasões, desmatamento e ameaças violentas por parte de fazendeiros e jagunços. Segundo os moradores, eles tentam expulsar 85 famílias que vivem no território. 

Com o conflito cada vez mais acirrado nos últimos dias, mulheres defensoras de direitos humanos chegaram a ser ameaçadas de sequestro e estupro, segundo os relatos da comunidade.

Uma denúncia formalizada pelos trabalhadores no dia 19 de junho, no Ministério Público do Maranhão, em Urbano Santos, descreve que as crescentes tensões agrárias se intensificaram em 2023, quando Gladistone Antônio Dallan e Maikel José Gale Odorisse, conhecidos como “gaúchos”, compraram a fazenda Todos os Santos, nas imediações de Jussaral, com intenção de plantar soja e eucalipto. 

Os trabalhadores rurais alegam que foram informados de que estavam proibidos de fazer novas cercas na área de propriedade de Gladistone Antônio. O cercamento realizado antes de uma decisão liminar da Justiça tinha o objetivo de demarcar a área da comunidade, que estava sob constante movimentação e indícios de desmatamento iminente.  

No entanto, no dia 18 de junho ocorreu desmatamento na área tradicional em uma ação com a presença de policiais militares dando apoio ao fazendeiro, o que gerou indignação e levou ao conflito. Os trabalhadores declaram ter flagrado os jagunços da fazenda Todos os Santos cortando os arames e arrancando os mourões da cerca que divide a área de Gladistone e a área da sede da União dos Moradores do Povoado Jussaral de Urbano Santos.

“Eles estão invadindo as terras da comunidade Jussaral, estão desmatando a chapada que tem muito bacuri, onde a comunidade faz o extrativismo e retira o seu sustento”, denunciou, em entrevista à Amazônia Real, o líder rural Raimundo Rodrigues Viana, presidente da associação que representa os moradores da comunidade.

Eles vivem e produzem no local há pelo menos 100 anos e ocupam uma área de 2.400 hectares, dos quais 30% estão destinados à preservação ambiental.

“Eu queria que eles provassem que alguém do Jussaral vendeu terra para eles, entendeu? Eles compraram a fazenda e estão tentando grilar a comunidade Jussaral, então isso não é certo, as autoridades tem que ver isso. Quando  eles chegaram já encontraram a comunidade Jussaral naquele território ali, por que não respeitam os direitos da comunidade?”, questiona Raimundo.

Os moradores cobram do Instituto de Colonização e Terras (Iterma) um levantamento fundiário que verifique se as terras disputadas estão inseridas em alguma gleba de domínio público. Procurado pela reportagem, o Iterma não respondeu se irá realizar o levantamento reivindicado.

O Ministério Público também não respondeu se vai analisar a documentação da fazenda para identificar possível caso de grilagem e verificar se há irregularidades que possam ser constatadas e tratadas, de acordo com o pedido dos moradores de Jussaral.

As principais reivindicações são a verificação de existência de licença ambiental na área, fiscalização ambiental, inclusão das lideranças no programa de proteção, apuração da conduta de policiais militares supostamente envolvidos no acompanhamento do desmatamento e ameaças à comunidade. 

A Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema) e o sindicato local apoiam as famílias afetadas. A organização acionou a Comissão Estadual de combate e Prevenção à Violência no Campo, o Instituto de Colonização e Terras, a Defensoria Pública do Estado do Maranhão e a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão para acompanhar o conflito.

Para Diogo Cabral, advogado popular da Fetaema,  o avanço da fronteira agrícola que causa conflitos violentos no campo maranhense, como acontece em Jussaral, é estimulado pelo estado brasileiro. 

“O estado brasileiro induz uma forma de desenvolvimento para a região, com financiamento público (Plano Safra), pesquisa de ponta (Embrapa), infraestrutura (rodovia, ferrovia, portos), arranjos institucionais (isenções fiscais, liberação de terras públicas, flexibilização ambiental). Não há agronegócios sem estado”, afirma.

·        Ameaças atingem mulheres e idosos

Trabalhadores rurais da comunidade registraram boletins de ocorrência nos últimos dias alegando terem recebido ameaças de jagunços. Entre os que denunciam as ameaças de violência estão mulheres e idosos. As denúncias também foram feitas ao Ministério Público. 

Mayane Viana da Silva, lavradora de 20 anos, relata ter recebido de um jagunço a ameaça de ser capturada e estuprada caso fosse vista na área. Maria Melissa Viana é outra mulher que conta ter sido ameaçada de violência sexual. Segundo ela, jagunços disseram que iriam estuprar as mulheres na frente de toda a comunidade.

“Nós nos sentimos ameaçadas por eles. Esse foi o assédio sexual que sofremos na semana passada. Mas outras ameaças já acontecem há muito tempo, nós vivemos aterrorizadas”, diz.

Durante a ação do dia 18 de junho, outros moradores alegam que foram recebidos com ameaças de morte e avisados por policiais, encapuzados, de que eles estavam lá para proteger os “gaúchos” e não a comunidade. 

“A polícia disse para comunidade ‘não entre para cá, porque se vocês entrarem nós seremos obrigados a atirar em vocês, nós estamos aqui para proteger os gaúchos, não a comunidade’. Aí começou o conflito”, descreve Raimundo.

O líder rural afirma que o fazendeiro Gladistone afirmou ‘querer a sua cabeça’. “Eu estou ameaçado pelos gaúchos e pelos jagunços. Eles falaram que se eu não largasse de ser presidente da associação, eles iriam me pegar e me botar numa sala fechada, e lá não ia ter pai e nem mãe e nem mesmo a associação para me livrar do que eles iriam fazer comigo”.

Em março deste ano, os moradores de Jussaral chegaram a denunciar que os fazendeiros usaram cães da raça pitbull para intimidar a comunidade. Vacas e jumentos foram violentamente atacados pelos cachorros, segundo a acusação.

Questionada pela reportagem sobre as ameaças feitas por policiais durante o conflito, a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão informou que todas as ocorrências de conflitos no campo registradas no estado são investigadas, “buscando identificação e responsabilização no âmbito criminal dos envolvidos”.

A secretaria informou também que vai intensificar as ações de policiamento ostensivo, por meio da Polícia Militar, para prevenir ocorrências graves.

A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular respondeu à Amazônia Real que foi realizado o encaminhamento do caso da comunidade de Jussaral para análise e triagem no âmbito do Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos do Maranhão, gerido pela secretaria e executado pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH). 

A triagem já foi realizada e o caso está em análise pela equipe técnica, a partir das informações, relatos e documentos coletados.

Representantes da área de direitos humanos estiveram na região há uma semana para ouvir as denúncias sobre os conflitos socioambientais e violência no campo. “A partir das denúncias, foram tomadas medidas emergenciais, tais como solicitar a abertura de processos de investigação para averiguar as violações relatadas sobre ameaça e desmatamento ilegal; e tratar junto ao Judiciário e ao Ministério Público do Maranhão para que sejam estabelecidos limites nas atividades das partes envolvidas no conflito, evitando mais prejuízos, destruição de bens e o agravamento da disputa”, disse a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular.

Também procurada, a Defensoria Pública, que acompanha o caso juridicamente, informou que já foram adotadas medidas de proteção aos moradores de Jussaral em primeiro grau e, mais recentemente, foi apresentado um recurso no segundo grau, que se encontra pendente de julgamento.

“É importante afirmar que essa é uma ação que não depende unicamente da Defensoria. Existem vários caminhos que precisam ser percorridos em termos de manifestação judicial”, declarou o órgão. 

·        Impacto do desmatamento

A destruição dos bens dos moradores e  o desmatamento, principalmente de árvores e plantas utilizadas para extrativismo, como bacuri, pequi, fava danta, arruda, babaçu, araçá e a mangaba, acontecem todos os dias. O desmatamento afeta a comunidade, que além de viver do extrativismo, cuida de roças e faz criação de animais.

“É um sofrimento muito grande para a comunidade, que vem passando por um momento de calamidade e as autoridades não estão fazendo nada”, desabafa Raimundo.

“Nós somos pobres aqui, nós vivemos de roça e eles estão desmatando tudo com seguranças armados. Estão nos ameaçando e ninguém sabe mais o que fazer. Tem que ir na fazenda fazer eles pararem, porque nossas terras estão sendo destruídas, principalmente o bacuri. As autoridades têm que tomar providências, o mais rápido possível”, apela Maria Celene Rodrigues Viana, moradora da comunidade.

Além disso, os trabalhadores denunciam que estão proibidos de transitar livremente no território tradicional. “Botaram uma placa que diz que a comunidade não pode mais passar nem para um lado nem para outro. Nem buscar água para beber, pescar, passar pela roça”, lamenta Raimundo.

Maria Melissa Viana confirma que a comunidade não pode ir ao rio para pescar, o que pode afetar a alimentação. “Agora vamos morrer mesmo, porque estão proibindo a gente de ir no rio pescar um peixe para poder trazer para casa e alimentar tanto a gente quanto os nossos filhos. Quando chegarem  [autoridades] aqui, a comunidade estará toda morta de fome”.

De acordo com Maria Celene, há ainda o adoecimento psicológico entre as famílias, que não dormem direito porque estariam sendo vigiadas por drones a mando dos fazendeiros. “Estamos assustados. Tem uma turma de dia vigiando e outra de noite, ninguém dormiu aqui esses dias. Estamos desesperados pedindo socorro para as autoridades”.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais identificou que a área possui licença ambiental e autorização para supressão de vegetação. A secretaria alega que não há irregularidades quanto ao processo de licenciamento, mas que apura possíveis infrações ambientais por meio de monitoramento por satélites e vistoria in loco. 

“Serão tomadas as providências cabíveis com relação a autuação e multa em caso de detecção de algum crime ambiental”, diz o órgão público.

O Batalhão Ambiental da Polícia Militar realizou uma vistoria na área do conflito, na segunda-feira (24), e também não identificou ilegalidades. Os documentos  e licenças necessárias às atividades de desmatamento foram concedidos pelos órgãos ambientais e apresentados à equipe do Batalhão durante a fiscalização. 

Procurado pela Amazônia Real, o fazendeiro Gladstone Antônio afirmou que a supressão da vegetação está com a licença ambiental autorizada. “Inclusive teve uma patrulha da Polícia Ambiental na fazenda para averiguar sobre essas denúncias falsas e nada de ilegal foi constatado”, disse.

Sobre as ameaças aos moradores, Gladistone declarou que são falsas e que não tem nenhum jagunço contratado, mas sim colaboradores nas funções de operador, mecânico e serviço gerais. Segundo ele, as denúncias são distorcidas com o objetivo de causar comoção na opinião pública.

O fazendeiro disse ainda não ter histórico de violência e nem de ameaça a qualquer pessoa, e que jamais toleraria qualquer atitude dessas vinda de seus colaboradores.

“O que está acontecendo é que o presidente do Jussaral, junto com alguns de seus irmãos, alguns familiares e alguns da comunidade, levantam mentiras e falsos testemunhos a todo momento, como é o caso da licença ambiental”, disse.

Questionado sobre as denúncias de ameaça de violência sexual contra as mulheres, o fazendeiro também nega as declarações. “Em relação à denúncia de violência sexual feita por essa moça, queremos dizer que é mentira, essa denúncia é gravíssima, inadmissível que alguém tenha inventado uma acusação desse nível tão alto. E que estamos tomando as medidas necessárias para o esclarecimento da verdade e também buscando uma maneira para que esse menino não fique com algum trauma e nem um abalo psicológico”.

Maikel José Gale Odorisse, o outro fazendeiro citado na denúncia feita ao Ministério Público, não foi localizado pela reportagem para falar sobre as acusações.

Vice-presidente da União dos Moradores do Povoado Jussaral de Urbano Santos, André Rodrigues Gomes reforça a agonia de não ter uma ação concreta das autoridades para proteger as terras e os moradores. 

“Estamos no maior sufoco aqui. Estamos precisando de uma ajuda emergencial o mais rápido possível. Estão desmatando tudo e não podemos fazer nada com medo de morrer”.

 

Fonte: Amazônia Real

 

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