Bahia
aprova megaprojeto de eólicas sem estudo completo de impacto ambiental
EM
UM VÍDEO de apresentação em seu site, a empresa Quinto Energy define o Complexo
Manacá, empreendimento de energia eólica e solar no semiárido baiano, como “o
maior do Brasil” e o “3º do planeta”. A previsão é instalar pelo menos 405
torres eólicas, com investimento de R$ 10 bilhões.
Mas
apesar de “colossal”, como descreve o narrador, o Complexo Manacá é tratado
pelo governo da Bahia como de baixo impacto ambiental e teve a licença prévia
aprovada sem a necessidade de apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e do
Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima).
Esse
conjunto de estudos técnicos detalha o impacto do empreendimento no ambiente,
incluindo diagnóstico ambiental, análise dos impactos na região e nas
comunidades e formas de monitoramento.
A
legislação federal considera eólicas de baixo potencial poluidor e permite
licenciamentos sem o estudo. Porém, determina que os parques precisam de
EIA-Rima quando instalados em locais sensíveis. Zonas próximas a unidades de
conservação ou com espécies ameaçadas de extinção, locais com vegetação
remanescente de Mata Atlântica ou com rotas de aves são alguns exemplos.
Um
cruzamento de dados realizado pela Repórter Brasil, a partir de coordenadas
geográficas fornecidas pelo Ministério do Meio Ambiente, revela que tanto o
município de Jaguarari quanto Campo Formoso, onde se planeja erguer o Complexo
Manacá, estão integralmente localizados em áreas consideradas prioritárias para
a conservação pelo governo federal. A região é classificada como de importância
biológica “extremamente alta” e “prioridade de ação”.
Em
grande parte localizadas na Caatinga, as duas cidades ocupam uma extensão de
serras com resquícios de Mata Atlântica e Cerrado, além de abrigarem as
nascentes de alguns dos principais rios do estado e de diversas espécies
ameaçadas de extinção.
A
Repórter Brasil mostrou que o município de Jaguarari, juntamente com a
Universidade Federal do Vale do São Francisco, contabilizou ao menos 63
nascentes na cidade. Porém, no relatório técnico para concessão da licença
prévia ao megaempreendimento, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos
da Bahia (Inema) considera apenas três nascentes.
Áreas
para conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade
brasileira no bioma Caatinga. Os pontos em vermelho indicam os municípios de
Jaguarari e Campo Formoso (Crédito: Isabel Harari/Repórter Brasil)Áreas
prioritárias para a conservação no bioma Caatinga. Em destaque, a mancha em que
estão incluídos os municípios de Jaguarari e Campo Formoso, localizados
integralmente em áreas de importância biológica e prioridade de ação
extremamente altas.
A
norma que incluiu os dois municípios dentro das áreas de preservação na
Caatinga foi assinada pelo então ministro de Meio Ambiente do governo Michel
Temer, Edson Duarte. Hoje, ele é o diretor de relações institucionais da Quinto
Energy. Ex-deputado federal pelo PV da Bahia, Duarte é um dos principais
defensores do projeto. Seu irmão, Edilson Duarte, figura entre os sócios da
empresa.
A
empresa vem sendo procurada pela reportagem desde o começo de junho, mas não
retornou até a publicação desta reportagem.
• Laços políticos e licença
simplificada
Embora
o governo estadual da Bahia não tenha exigido o estudo de impacto ambiental
completo à Quinto Energy, a Assembleia Legislativa da Bahia concedeu uma moção
de congratulação ao CEO da empresa, Rafael Cavalcanti, pelos seus “relevantes
serviços prestados ao meio ambiente e ao setor de energias renováveis no
Brasil”.
Sediada
em Salvador e com um portfólio de nove projetos de energia renovável na Bahia,
a empresa estima uma capacidade de 2,3 GW apenas de energia eólica com seus
“gigantes”, como a empresa descreve as torres de Manacá. Somada à capacidade de
produção de energia solar prevista pela empresa, é o equivalente a um quarto da
Usina de Itaipu, a maior hidrelétrica do país.
Segundo
a CNN, o ex-presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli procura aproximá-la
da estatal. À reportagem, Gabrielli confirmou que tem prestado consultoria à
empresa na área de hidrogênio. Em seu site, a Quinto Energy afirma que
implantação de um mega complexo de energia eólica e solar no sertão baiano tem
com foco a produção de hidrogênio verde em larga escala.
Outro
político que apoia os esforços da Quinto Energy é o também ex-ministro do Meio
Ambiente José Sarney Filho. “Quero parabenizar toda essa empresa que tem uma
importância que vai além do impacto econômico, mas principalmente pela
contribuição ambiental”, disse em visita à empresa.
A
documentação apresentada pela Quinto Energy ao estado inclui apenas um Estudo
de Médio Impacto Ambiental, o EMI. “O EMI é um estudo simplificado, que
facilita o licenciamento. O EIA é um estudo amplo, que requer mais tempo e
engloba mais detalhes, o que seria necessário dado o tamanho deste
empreendimento”, afirma Andrezza Oliveira, parte do movimento ambientalista
Salve as Serras, que encaminhou uma denúncia formal contra o projeto ao
Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), em janeiro de 2023.
Entre
outras questões, o documento cita a necessidade de preservação da região e pede
uma “investigação sobre a forma de licenciamento que tem desconsiderado as leis
e os danos dos empreendimentos”.
Em
resposta à Repórter Brasil, o Inema informou que o empreendimento é
classificado como de classe 4 – grande porte e pequeno potencial poluidor –
pelo decreto estadual 14.024/2012, o que dispensaria o EIA-Rima. A licença
prévia cita 690 aerogeradores, número previsto inicialmente pela empresa no
projeto apresentado ao estado.
O
próprio decreto, porém, cita resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(Conama) e do Conselho Estadual de Meio Ambiente da Bahia (Cepram) referentes a
empreendimentos eólicos. A norma estadual exige o estudo completo de impacto
ambiental a partir da instalação de mais de 120 aerogeradores.
O
atual presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, que participou da formulação da
primeira resolução do Conama sobre eólicas em 2001, explica que, conforme a
legislação federal, cabe aos estados definirem o grau de impacto ambiental de
cada empreendimento.
Mas
“existem exceções [na resolução atual] que muitas vezes não são respeitadas”.
Segundo ele, a presença dos municípios em uma área de conservação indicaria a
necessidade do EIA-Rima. “Alguns estados têm regras próprias com estudos com
outros nomes. Mas o licenciamento precisa ter análise técnica de estudos
ambientais, meio físico e sócio”, afirma.
Posição
reforçada pela ex-presidente do órgão e especialista em políticas públicas do
Observatório do Clima, Suely Araújo. Segundo ela, um empreendimento desta
dimensão, numa área ambientalmente sensível e com comunidades locais, com modos
de vida tradicionais, “deveria, sim, passar pelo rito completo com estudo de
impacto ambiental”. “Se o empreendimento é de grande porte, e a área é
sensível, quando eles vão exigir EIA-Rima?”, questiona.
Também
parte do Salve as Serras, a professora Maria Rosa Almeida Alves, que estuda
empreendimentos de energia renovável na região, acompanhou em novembro uma
Fiscalização Preventiva Integrada realizada pelo MP-BA, em conjunto com
técnicos do Inema. Ela conta que questionou os servidores do órgão estadual
sobre a necessidade de preservação da região, mas ouviu que “as áreas não
tinham relevância ambiental”.
A
Repórter Brasil apurou que, em outra reunião realizada em uma das comunidades
tradicionais do município, sem a presença de nenhum órgão público, o próprio
Edson Duarte teria minimizado os impactos ambientais do projeto.
“Ele
questionava tudo o que a gente dizia em relação aos impactos ambientais. O
tempo todo só reafirmava que o empreendimento vai gerar renda e que as pessoas
precisam ter dinheiro e que não vai ter prejuízo nenhum”, afirma Maria Rosa.
Questionado
pela reportagem, o Inema afirmou que “a Licença Prévia emitida atesta a
viabilidade locacional do empreendimento, tendo considerado as restrições
ambientais e a preservação dos atributos naturais da região”. Leia a resposta
na íntegra.
Segundo
fontes ouvidas pela Repórter Brasil, apesar de o processo de licenciamento ser
público, o estado tem dificultado o acesso aos documentos que fazem parte do
trâmite. Até mesmo funcionários de órgãos ambientais não conseguem verificar os
dados. Em março, o Grupo Ambientalista da Bahia (Gamba) solicitou formalmente
todos os processos de licenciamento de empreendimentos eólicos no estado, mas
até o começo de junho ainda não tinha recebido retorno.
“É
uma caixa preta, não há nenhuma transparência. Eu mesmo, como conselheiro do
Cepram, tenho tido muita dificuldade em acessar os processos de licenciamento
[de empreendimentos de energia renovável]”, afirma Renato Cunha, coordenador do
Gamba e membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente.
O
Ministério Público da Bahia, que acompanha o caso, também tem tido dificuldade
para acessar os documentos. “Nosso objetivo é obter o máximo de informações
possível e fazer com que os órgãos ambientais sejam muito criteriosos”, diz o
promotor Igor Clóvis Silva Miranda. Ele destaca que a energia renovável virou
uma política de Estado e ganha cada vez mais relevância.
No
ano passado, 4.534 hectares de Caatinga foram desmatados em razão de
empreendimentos de energia renovável, segundo o MapBiomas. A devastação foi 24%
maior em relação a 2022.
Neste
ano, 29 organizações, incluindo o Salve as Serras, encaminharam aos governos
estaduais e federal e à Justiça as
“Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável“, em que
classificam os processos de licenciamento na região como “insuficientes” para
compensar os danos.
Araújo
vê as salvaguardas como um caminho para que as fontes renováveis não sejam
deslegitimadas como importante componente da transição energética. “Apesar de
ser uma alternativa importante para a produção energética, eles não podem
simplificar os processos e excluir direitos”, afirma.
Fonte:
Repórter Brasil
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