segunda-feira, 3 de junho de 2024

Aula no terreiro: projeto leva estudantes para visitar comunidade de candomblé

Alunos do Centro de Ensino Médio (CEM) 2 de Planaltina viveram uma experiência de contato com a arte e a cultura afro-brasileira na última terça-feira. Por meio do projeto Ogbon Mimo — Sabedoria Sagrada, 68 estudantes da escola participaram de uma visita guiada à casa de candomblé Ilê Odé Axé Opo Inle, em Planaltina.

Em uma espécie de tour dividido em estações, os visitantes aprenderam sobre os orixás, os instrumentos musicais e a culinária da comunidade, e apreciaram fotos, quadros, desenhos e peças artesanais de países africanos. A ideia é promover o respeito à diversidade e desconstruir preconceitos e combater a intolerância religiosa. A iniciativa conta com apoio da Fundação Palmares e do Ministério da Cultura, em sintonia com a Lei nº 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas.

O Babakekere (pai pequeno, o segundo na hierarquia da casa) e produtor do projeto, Renato Gomes, explica que a iniciativa surgiu como forma de apresentar aos estudantes o universo do terreiro de candomblé, quebrando barreiras por meio da vivência. A comunidade já realizava visitas às escolas, levando conhecimento sobre a cultura e as religiões africanas, mas sentiu necessidade de expandir para a experiência prática. "É diferente a gente ir às escolas de os alunos estarem dentro do território. Além da parte da religiosidade, tem a história, a cultura e a influência da música africana na construção do Brasil", destaca.

Entre os aspectos centrais para a comunidade do terreiro, estão a culinária e a música. "Tudo o que fazemos é em volta da cozinha, envolve alimentação, porque é o mais importante na nossa religião. A musicalidade caminha junto com a culinária, e tudo termina em festa, com a história dos orixás sendo contada por meio da música e da dança", compartilha. Ele acrescenta que os costumes da comunidade buscam estabelecer uma relação harmoniosa com os orixás e promover a integração entre as pessoas, sem distinção: "A casa de candomblé acolhe as pessoas, não escolhe, vivemos como uma família", enfatiza Renato.

•        Respeito

Elias Viana, Ojú Ilê (anfitrião da casa) e produtor do projeto, complementa que a iniciativa busca combater a desinformação e o preconceito enraizados na sociedade, com a intenção de promover o respeito e a diversidade religiosa.

"A proposta é desmistificar a demonização sobre as religiões de matriz africana. Quando os estudantes chegam aqui, recebem um banho de informações, de cultura, no que diz respeito à contribuição da África na construção da sociedade brasileira. A gente entende que as pessoas têm o direito de escolher suas religiões, levando em consideração que o país é laico, então o nosso projeto trabalha nessa perspectiva", enfatiza.

Um fato que chamou a atenção dos organizadores foi que o interesse dos alunos em conhecer a comunidade aumentou à medida que as visitas da escola foram acontecendo. "Nas duas turmas que vieram antes, a média foi em torno de 40 alunos. Agora, o número aumentou para 68. Então, a gente percebe que está tendo uma divulgação na escola e na família daqueles que já fizeram a visita", aponta Elias Viana.

Durante o tour, os estudantes tiveram contato com a história dos povos africanos, a escravidão no Brasil e os significados de artefatos e de costumes dessas populações. Além das palestras, eles foram conduzidos às casas sagradas, cada uma representando um orixá, que foi interpretado por membros da comunidade. Também conheceram a arte e a culinária, por meio de exposições e da degustação de pratos típicos, como acarajé e manjar. Por fim, os estudantes participaram da apresentação do grupo de percussão Afoxé Omo Ayó.

•        Experiência

O produtor Elias Viana procurou professores de história, sociologia e artes, que se dispuseram a acolher a proposta.

Danilo Monteiro, que leciona sociologia no CEM 2 de Planaltina, trabalha questões étnico- raciais com os alunos e viu, no Ogbon Mimo, uma oportunidade de continuar o aprendizado. "O terreiro representa uma pequena África dentro do Brasil. Achei muito interessante que os pais também deram liberdade para eles fazerem a visita, porque a gente sabe que há uma demonização das religiões de matriz africana. Então, nada melhor do que conhecer pela vivência para quebrar os estereótipos e preconceitos", ressalta.

Tailane dos Santos, de 18 anos, considerou a experiência muito proveitosa. "Já visitei outras comunidades africanas, mas eram da umbanda. Em um terreiro de candomblé, é a primeira vez. Foi algo novo. O que mais gostei foi aprender sobre os orixás", diz.

Assim como Tailane, Gabriel Oliveira, 18, também havia visitado um terreiro antes. Mesmo assim, para ele, foi inovador, "muito interessante e diferente". Após as explicações da comunidade, ele sentencia: "É muito importante não falar mal das religiões, sem antes conhecê-las".

As visitam prosseguem até 11 de junho.

<><> Saiba mais

### A casa

» O Ilê Odé Axé Opo Inle (Casa do Caçador cuja Força provém de Inle) é uma comunidade tradicional de matriz africana da nação iorubá, fundada em 1996. Com cerca de 150 membros, é uma das maiores do Distrito Federal e Entorno.

### Legislação

» O Estado laico no Brasil foi estabelecido na Constituição de 1891, determinando a não interferência estatal em assuntos religiosos. Na Constituição de 1988, a liberdade religiosa foi garantida no artigo 5°. Em 2003, a Lei nº 10.639 determinou a obrigatoriedade do ensino da história e na cultura afro-brasileira nas escolas. Apesar da legislação, o Disque 100 — canal de ouvidoria de violações aos direitos humanos — recebeu, em 2023, mais de 2 mil denúncias relacionadas à intolerância religiosa, representando um aumento de 80% em comparação a 2022. Segundo o canal, as religiões de matriz africana são as mais afetadas por esse tipo de violência.

 

•        Intolerância religiosa não cabe no Brasil plural

Qual é o dano pessoal que a opção religiosa de alguém pode causar ao próximo? A indagação se impõe diante da reação de pelo menos 200 mil brasileiros que deixaram de ser seguidores da cantora Anitta. Ela revelou ao público que aderiu ao candomblé, expôs a sua iniciação na afrorreligiosidade e tornou-se alvo da intolerância religiosa. Foi o suficiente para o afastamento dos fãs e de ácidas críticas por meio das plataformas digitais. Mas as ofensas não suprimem o valor artístico da cantora, uma celebridade do funk carioca, com valores reconhecidos nacional e  internacionalmente.

A intolerância religiosa é lamentável comportamento que se arrasta desde o século 16, quando chegaram ao país os primeiros grupos de negros sequestrados em vários povos do Continente Africano, para serem escravizados no Brasil, pelos colonizadores europeus. Nos tribunais de Justiça do país, as ações motivadas por intolerância religiosa somam 33% (176 mil) entre as relacionadas ao racismo, segundo levantamento da startup Jus Racial. A instituição constatou que no Supremo Tribunal Federal (STF), a intolerância religiosa representa 43% de 1,9 mil processos contra o racismo.

A reação dos (ex) fãs de Anitta é mais uma demonstração da repulsa de parcela da sociedade aos valores dos legados africanos. Trata-se de comportamento recorrente no país. A demonização do povo negro e de sua religiosidade está ancorada no racismo. Enquadra-se entre as afrontas à Constituição de 1988, que garante a liberdade religiosa no país, a igualdade de direitos a todos os cidadãos, independentemente da origem étnico-racial. Ofende também o arcabouço legal dos direitos humanos. Porém, nenhum marco legal tem conseguido impedir a violência contra as instituições e aos adeptos das religiões de matrizes africanas. Denúncias levadas aos fóruns internacionais de direitos humanos também não surtem efeito mitigador desse comportamento.

Nas religiões de matrizes africanas, não há restrições ao gênero, à cor da pele, à condição socioeconômica, ao status social, ao grau de escolaridade e a tantos outros paradigmas que dividem a sociedade em castas e motivam disputas por espaços, muitas vezes, insanas e mortais. Entendem como fundamentais o respeito entre as pessoas, a preservação da vida, o direito de escolha, inclusive, religiosa, de pensamento, de expressão. A ausência de preconceitos é uma das razões que tem elevado o número de adeptos aos terreiros.

A falta de letramento racial está entre as causas do racismo e das atitudes violentas, preconceituosas e intimidadoras contra os adeptos do candomblé e da umbanda em todo o território nacional. A Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas públicas ou particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio, não é cumprida. A educação é uma das formas mais eficazes de quebrar os estigmas, forjados em inverdades, consolidados em relação ao povo negro, suas culturas, práticas de fé, hábitos e costumes.

A hegemonia das vertentes de religiões cristãs não autoriza uma cruzada racista, intolerante, agressiva e violenta contra pretos e pardos nem contra a afrorreligiosidade. Há espaço para todas no país, sob o manto da Constituição Cidadã. O Brasil é um país plural, mas seu povo ainda carece de praticar o respeito à diversidade e aos direitos humanos.

 

Fonte: Correio Braziliense     

 

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